Limito-me a constatar factos: o crime compensa.
Não falo do pequeno crime do carteirista, do agressor, do frango
roubado no supermercado – esse pode compensar ou não, consoante os
caprichos do acaso. O que compensa segura e impunemente é o crime em
larga escala, aquele que rende milhões de dólares, que afecta a
vida de milhões de pessoas, que apenas pode ser praticado graças a
uma maquinaria complexa que envolve aparelhos de Estado, gabinetes de
advogados, equipas de marketing, …
Compensa o assassínio em massa por envenenamento:
o dos químicos lançados no pão e em centenas de outros alimentos
da dieta básica; o da água engarrafada em plástico; o dos
refrigerantes que transformam o corpo num campo de batalha química e
biológica. Compensa com lucros de milhões de euros e beneficia de
apoios estatais. É um crime sádico, porque morrer de cancro é um
martírio atroz que se arrasta durante meses, terminando num
sofrimento irremediável. É um crime consciente e calculado, porque
ninguém, nos dias de hoje, pode dizer: «oh, desculpem lá qualquer
coisinha, eu não sabia».
O assassínio em massa não se limita a envenenar
os cidadãos. É acompanhado do roubo dos bens públicos, porque a
invalidez, a doença e a morte pesam enormemente sobre o Sistema
Nacional de Saúde (SNS). Quando umas quantas empresas produtoras de
químicos nocivos levam para casa lucros astronómicos, não é só o
consumidor individual que paga os lucros do criminoso – todos os
contribuintes estão a pagar os custos de saúde pública daí
resultantes. O mal causado pelas empresas assassinas, ainda por cima,
é desnecessário; não encontra uma única justificação –
durante séculos foi possível fazer o comércio de produtos frescos
ou conservados sem adição de químicos letais. O único motor para
o uso de venenos nos alimentos e no ambiente é a ganância.
O Estado protege este tipo de criminosos de forma
descarada. Mantém um vasto leque de mecanismos encarregados de
«regular» e proteger as associações de criminosos. E age como
mercenário contra quem esteja disposto a oferecer uma alternativa
benévola. Se alguém quiser produzir vegetais por métodos
biológicos e vendê-los no mercado, tem de obter certificado; mas o
Estado irá cobrar-lhe a peso de ouro a certificação, de modo que
os produtos em causa chegam ao mercado com um custo artificialmente
aumentado, afastando o público do seu consumo – é uma forma muito
eficaz de proteger a indústria de adubos químicos, de pesticidas e
insecticidas, de transgénicos. Em muitos casos (por exemplo, o pão)
proíbe a utilização de matérias-primas sãs, de forma a proteger
os grandes industriais da panificação. Se o Estado, ao invés,
durante um período de transição, subsidiasse a produção
biológica sã, a prazo iria poupar rios de dinheiro no SNS, no
combate aos desastres ecológicos, na limpeza da água proveniente
dos lençóis freáticos, …
Só o papel mercenário do Estado permite explicar
como é possível que a indústria farmacêutica, responsável por
uns bons 20 % das entradas nas urgências dos hospitais1,
possa continuar a fazer estragos – em muitos casos estragos de
morte –, sem que lhe caiam em cima os investigadores judiciais
e os tribunais; e que, ao mesmo tempo, as ervanárias sejam proibidas
de afixar rótulos e anúncios nas embalagens dos seus produtos
naturais, explicitando os respectivos benefícios. Boa parte das
indústrias assassinas, que por regra têm uma dimensão global, não
sobreviveriam à concorrência dos pequenos produtores de bens sãos,
se não fossem energicamente protegidas pelo Estado.
Quando trazemos à baila o papel do Estado nestes
crimes, estamos a falar da mesma entidade que em todo o país (com
raras e honrosas excepções) espalha generosas quantidades de
glifosato nas ruas, estradas, jardins públicos e parques infantis. A
mesma que abate árvores a eito na cidade de Lisboa. A mesma que faz
de conta que nunca tinha reparado que as fábricas de celulose poluem
a eito e matam a granel. A mesma que reduziu quase a zero os
transportes públicos movidos a energias não poluentes na maior
cidade do país, substituindo-os por autocarros mal-cheirosos e
letalmente poluentes. A mesma que está disposta a licenciar a
transmissão de dados digitais na rede eléctrica, aprovando assim a
radiação concentrada de milhares de Hertz comprovadamente letais –
sem outra necessidade ou vantagem que não seja a de proporcionar
lucros fabulosos às companhias fornecedoras de electricidade, pois a
transmissão de dados digitais por rede eléctrica, segundo os
especialistas, será sempre de péssima qualidade.
Mas afinal quem são os assassinos?
O rosto visível do assassino em massa são os gestores e administradores das respectivas empresas. Mas estes, por sua vez, não existiriam se não fossem os accionistas e os bancos que forneceram crédito a essas empresas – bancos esses que, por sua vez, também nasceram por interesse dos respectivos accionistas. Portanto, em última análise, os responsáveis pelos crimes praticados – entre os quais se conta o genocídio em muitas partes do mundo – são os accionistas.
O accionista pode ser alguém de aparência
modesta que investiu o seu mealheiro na primeira coisa que lhe
apareceu à frente – frequentemente por intermédio de uma
sociedade financeira – e não pensa mais no assunto (a não
ser para receber os dividendos, claro está). A moral capitalista
permite-lhe matar sem olhar a quem e sem sequer pensar nisso.
SARL – sociedade anónima de responsabilidade
limitada. Não, não
se trata apenas de uma limitação da responsabilidade comercial.
Trata-se de uma limitação
muito mais funda, quase
ontológica: dispensa toda e
qualquer actividade cerebral. Todo
o accionista pode contribuir
alegremente para a abertura de uma fábrica de armamento que
permitirá
matar milhares de inocentes
algures e ainda assim afirmar
com uma placidez displicente:
«não tenho nada a ver com
isso; limitei-me a pôr
o meu dinheiro num fundo de
investimentos; o que eles fazem com o dinheiro, é
lá com eles».
Há no entanto um
pequeno problema neste raciocínio (se é que podemos chamar-lhe
assim): o accionista tem tudo a ver com o que acontece
ao seu investimento.
Pode não querer ter a
ver, mas confundir o querer
com o ser, isto é, a
vontade individual com a realidade dos factos, é uma patologia que
necessita de tratamento
urgente – é uma sociopatia
grave.
Não
é possível, excepto no caso
dos sociopatas, uma
pessoa comprar acções de
uma fábrica de químicos, ver a criança do vizinho assolada por
sofrimentos indizíveis provocados por esses químicos e continuar a
dizer com indiferença:
«não tenho nada a ver com isso, a minha responsabilidade é
limitada».
A Força Aérea nacionalista de Franco bombardeia Barcelona, 1938 |
Uma declaração de guerra com efeitos imediatos
Felizmente não conheço nenhum accionista (que eu
saiba). Se conhecesse, poderia sentir-me comovido, porque talvez essa
pessoa pareça simpática, cordata, maternal. Mas não conheço. Por
isso não me custa nada declarar aos senhores e senhoras accionistas
das indústrias assassinas: o que eu mais desejo é que morram e nos
deixem em paz; e que de caminho deixem todos os seus bens ao SNS, às
instituições e centros de investigação que lutam contra o cancro;
que doem os dividendos acumulados às populações que lutam contra a
sua própria extinção provocada por transnacionais de
irresponsabilidade ilimitada. Que morram e os seus retratos sejam
exibidos em lugares públicos com uma cruz negra em cima, para futuro
escarmento de candidatos a assassinos de irresponsabilidade
ilimitada.
Um mundo governado por sociopatas não é um mundo
onde eu queira viver. Por isso farei o que for necessário para o
transformar.
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Notas
1 Apenas
posso tomar por referência os raros países onde é feita esta
estatística, como sucede no Reino Unido. É claro que estes números
não são entregues ao conhecimento público, onde só chegam por
denúncia de algum profissional da saúde. Ver Vernon Coleman,
Stress Tóxico, ed. Livros
do Brasil, abril-2004.
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