18/02/18

O crime compensa

Limito-me a constatar factos: o crime compensa. Não falo do pequeno crime do carteirista, do agressor, do frango roubado no supermercado – esse pode compensar ou não, consoante os caprichos do acaso. O que compensa segura e impunemente é o crime em larga escala, aquele que rende milhões de dólares, que afecta a vida de milhões de pessoas, que apenas pode ser praticado graças a uma maquinaria complexa que envolve aparelhos de Estado, gabinetes de advogados, equipas de marketing, … 
 
Compensa o assassínio em massa por envenenamento: o dos químicos lançados no pão e em centenas de outros alimentos da dieta básica; o da água engarrafada em plástico; o dos refrigerantes que transformam o corpo num campo de batalha química e biológica. Compensa com lucros de milhões de euros e beneficia de apoios estatais. É um crime sádico, porque morrer de cancro é um martírio atroz que se arrasta durante meses, terminando num sofrimento irremediável. É um crime consciente e calculado, porque ninguém, nos dias de hoje, pode dizer: «oh, desculpem lá qualquer coisinha, eu não sabia».
 
O assassínio em massa não se limita a envenenar os cidadãos. É acompanhado do roubo dos bens públicos, porque a invalidez, a doença e a morte pesam enormemente sobre o Sistema Nacional de Saúde (SNS). Quando umas quantas empresas produtoras de químicos nocivos levam para casa lucros astronómicos, não é só o consumidor individual que paga os lucros do criminoso – todos os contribuintes estão a pagar os custos de saúde pública daí resultantes. O mal causado pelas empresas assassinas, ainda por cima, é desnecessário; não encontra uma única justificação – durante séculos foi possível fazer o comércio de produtos frescos ou conservados sem adição de químicos letais. O único motor para o uso de venenos nos alimentos e no ambiente é a ganância.

 

O Estado protege este tipo de criminosos de forma descarada. Mantém um vasto leque de mecanismos encarregados de «regular» e proteger as associações de criminosos. E age como mercenário contra quem esteja disposto a oferecer uma alternativa benévola. Se alguém quiser produzir vegetais por métodos biológicos e vendê-los no mercado, tem de obter certificado; mas o Estado irá cobrar-lhe a peso de ouro a certificação, de modo que os produtos em causa chegam ao mercado com um custo artificialmente aumentado, afastando o público do seu consumo – é uma forma muito eficaz de proteger a indústria de adubos químicos, de pesticidas e insecticidas, de transgénicos. Em muitos casos (por exemplo, o pão) proíbe a utilização de matérias-primas sãs, de forma a proteger os grandes industriais da panificação. Se o Estado, ao invés, durante um período de transição, subsidiasse a produção biológica sã, a prazo iria poupar rios de dinheiro no SNS, no combate aos desastres ecológicos, na limpeza da água proveniente dos lençóis freáticos, … 
 
Só o papel mercenário do Estado permite explicar como é possível que a indústria farmacêutica, responsável por uns bons 20 % das entradas nas urgências dos hospitais1, possa continuar a fazer estragos – em muitos casos estragos de morte –, sem que lhe caiam em cima os investigadores judiciais e os tribunais; e que, ao mesmo tempo, as ervanárias sejam proibidas de afixar rótulos e anúncios nas embalagens dos seus produtos naturais, explicitando os respectivos benefícios. Boa parte das indústrias assassinas, que por regra têm uma dimensão global, não sobreviveriam à concorrência dos pequenos produtores de bens sãos, se não fossem energicamente protegidas pelo Estado.
 
Quando trazemos à baila o papel do Estado nestes crimes, estamos a falar da mesma entidade que em todo o país (com raras e honrosas excepções) espalha generosas quantidades de glifosato nas ruas, estradas, jardins públicos e parques infantis. A mesma que abate árvores a eito na cidade de Lisboa. A mesma que faz de conta que nunca tinha reparado que as fábricas de celulose poluem a eito e matam a granel. A mesma que reduziu quase a zero os transportes públicos movidos a energias não poluentes na maior cidade do país, substituindo-os por autocarros mal-cheirosos e letalmente poluentes. A mesma que está disposta a licenciar a transmissão de dados digitais na rede eléctrica, aprovando assim a radiação concentrada de milhares de Hertz comprovadamente letais – sem outra necessidade ou vantagem que não seja a de proporcionar lucros fabulosos às companhias fornecedoras de electricidade, pois a transmissão de dados digitais por rede eléctrica, segundo os especialistas, será sempre de péssima qualidade.
 
Fábrica de armas antes da II Guerra Mundial
 

Mas afinal quem são os assassinos?

O rosto visível do assassino em massa são os gestores e administradores das respectivas empresas. Mas estes, por sua vez, não existiriam se não fossem os accionistas e os bancos que forneceram crédito a essas empresas – bancos esses que, por sua vez, também nasceram por interesse dos respectivos accionistas. Portanto, em última análise, os responsáveis pelos crimes praticados – entre os quais se conta o genocídio em muitas partes do mundo – são os accionistas.
 
O accionista pode ser alguém de aparência modesta que investiu o seu mealheiro na primeira coisa que lhe apareceu à frente – frequentemente por intermédio de uma sociedade financeira – e não pensa mais no assunto (a não ser para receber os dividendos, claro está). A moral capitalista permite-lhe matar sem olhar a quem e sem sequer pensar nisso. 
 
SARL – sociedade anónima de responsabilidade limitada. Não, não se trata apenas de uma limitação da responsabilidade comercial. Trata-se de uma limitação muito mais funda, quase ontológica: dispensa toda e qualquer actividade cerebral. Todo o accionista pode contribuir alegremente para a abertura de uma fábrica de armamento que permitirá matar milhares de inocentes algures e ainda assim afirmar com uma placidez displicente: «não tenho nada a ver com isso; limitei-me a pôr o meu dinheiro num fundo de investimentos; o que eles fazem com o dinheiro, é lá com eles».
 
Há no entanto um pequeno problema neste raciocínio (se é que podemos chamar-lhe assim): o accionista tem tudo a ver com o que acontece ao seu investimento. Pode não querer ter a ver, mas confundir o querer com o ser, isto é, a vontade individual com a realidade dos factos, é uma patologia que necessita de tratamento urgente – é uma sociopatia grave.
 
Não é possível, excepto no caso dos sociopatas, uma pessoa comprar acções de uma fábrica de químicos, ver a criança do vizinho assolada por sofrimentos indizíveis provocados por esses químicos e continuar a dizer com indiferença: «não tenho nada a ver com isso, a minha responsabilidade é limitada».
 
A Força Aérea nacionalista de Franco bombardeia Barcelona, 1938
 

Uma declaração de guerra com efeitos imediatos

Felizmente não conheço nenhum accionista (que eu saiba). Se conhecesse, poderia sentir-me comovido, porque talvez essa pessoa pareça simpática, cordata, maternal. Mas não conheço. Por isso não me custa nada declarar aos senhores e senhoras accionistas das indústrias assassinas: o que eu mais desejo é que morram e nos deixem em paz; e que de caminho deixem todos os seus bens ao SNS, às instituições e centros de investigação que lutam contra o cancro; que doem os dividendos acumulados às populações que lutam contra a sua própria extinção provocada por transnacionais de irresponsabilidade ilimitada. Que morram e os seus retratos sejam exibidos em lugares públicos com uma cruz negra em cima, para futuro escarmento de candidatos a assassinos de irresponsabilidade ilimitada.
 
Um mundo governado por sociopatas não é um mundo onde eu queira viver. Por isso farei o que for necessário para o transformar. 

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Notas
1 Apenas posso tomar por referência os raros países onde é feita esta estatística, como sucede no Reino Unido. É claro que estes números não são entregues ao conhecimento público, onde só chegam por denúncia de algum profissional da saúde. Ver Vernon Coleman, Stress Tóxico, ed. Livros do Brasil, abril-2004.

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