todos os dias em horário nobre, num televisor perto de si
Está em curso uma nova campanha que visa
demonstrar a necessidade de reduzir os direitos de quem trabalha e
emagrecer (ou «flexibilizar», como se diz por aí) a legislação
laboral. Os temas centrais desta campanha são: 1) a automação,
modernização e robotização do trabalho; 2) a concorrência no
mercado internacional. Não é certamente por acaso que os
noticiários, debates televisivos e tribunas de opinião, congressos,
encontros mundiais, conferências, insistem obsessivamente em trazer
à baila, a propósito de tudo e de nada, esses temas. Trata-se
obviamente de uma campanha bem orquestrada, com ramificações
jornalísticas, académicas e políticas. O seu objectivo é
justificar a precarização do trabalho e desmantelar as protecções
e os direitos dos trabalhadores.
1. A robotização do trabalho
Para abreviar razões, digamos que todos os
argumentos propostos sob este tema se resumem nisto: os avanços
tecnológicos, em particular a introdução de robôs no desempenho
de tarefas produtivas, tornam o desemprego em massa inevitável.
Imaginemos uma oficina cuja produção assenta em
4 máquinas fotocopiadoras. Ao lado de cada máquina encontramos um
posto de trabalho. Cada um dos 4 trabalhadores passa 8 horas diárias
da sua vida alimentando a fotocopiadora com os originais a copiar, folha a folha. Este estado de
coisas corre beatificamente a contento de todos durante
anos a fio, até que um dia entra pela porta um vendedor ambulante
que se dirige ao patrão e lhe propõe o seguinte: olhe, você tem 4
máquinas, que têm de ser alimentadas por 4 trabalhadores, folha a
folha; proponho-lhe que troque tudo isso por esta máquina, mais
rápida que as suas 4 máquinas juntas, inteligente e automática; dá-se-lhe uma
resma de originais e ela encarrega-se de se alimentar a si própria. O gestor aceita a proposta, vende as máquinas velhas a
uma oficina congénere das Filipinas (onde a mão-de-obra é mais
barata e por isso não é preciso investir tanto em tecnologia
avançada), despede 3 dos 4 trabalhadores e adopta a nova máquina,
daí tirando acrescidos lucros e aumentada produção. Em suma, o
resultado final deste processo de modernização é que o patrão
ficou a ganhar e os trabalhadores ficaram a perder; eventualmente
(mas não é garantido) o consumidor poupou algum dinheiro. Mesmo o
trabalhador que teve a sorte de não ser despedido já não trabalha
a tempo inteiro: labora apenas meio dia e ganha metade do salário,
porque entra ao serviço de manhã, escolhe a resma de originais a
copiar, coloca-a no tabuleiro da máquina e a seguir pode vestir o
fato de banho e ir para a praia. Esta história, que não será
estranha à experiência de muitos dos meus leitores, exemplifica
aquilo que a propaganda neoliberal classifica de «transformação
inevitável do mercado de trabalho» (o chamado argumento TINA, There
Is No Alternative).
Só há um pequeno problema nesta história: ela
está mal contada; não chegou ao fim. É como quando uma pessoa
começa a contar uma anedota e estanca a meio – «oh, esqueci-me do
resto da história, desculpem lá». Eis o que falta contar: a fotocopiadora automática não caiu do céu. Nem
o patrão chegou um dia à oficina dizendo: ó Chico, pega numa
enxada e anda daí, vamos cavar um terreno que eu tenho ali adiante.
O Chico começa a cavar e pimba, a certa altura a folha da enxada
ressoa contra qualquer coisa dura, vai-se a ver o que é e …
heureca!, achámos uma fotocopiadora inteligente!
Lastimo informar que a coisa não se passa assim.
No mundo real é preciso ir ao mercado comprar a máquina. E como
chegou ela às mãos do vendedor? Graças a uma enxada num terreno
baldio, à cata de trufas? Também não. Alguém teve de fabricá-la. Como se trata de
uma máquina muito sofisticada, integrando meios altamente
tecnológicos, circuitos impressos, programação avançada, etc.,
para a sua conclusão foram necessários muitos materiais primários
(metais, plásticos, compostos sofisticados, etc.), muitos circuitos
impressos, muitos estudos, durante muitos anos – em muitas
unidades de investigação tecnológica –, enfim, um
sem-número de elementos produtivos vindos dos mais variados sectores
e das mais longínquas partes do mundo. Ora, para que tudo isto
aconteça, foi preciso criar novas unidades de produção, novos
centros de investigação, abrir novas minas para obter os novos
minérios de que se compõem os novos elementos da máquina –
enfim, criar postos de trabalho numa variedade tão vasta de ramos de
produção, que se torna difícil seguir a sua pista de cabo a rabo.
Por conseguinte, numa primeira aproximação ao fenómeno da
modernização e robotização, o que nós temos, olhando globalmente
para a coisa, não é uma perda de postos de trabalho, mas sim uma
transumância: os postos de trabalho tiveram de demandar novas
pastagens (assunto que levanta novas questões, das quais falaremos
noutra ocasião). Sabe-se lá se tudo isto não terá mesmo provocado
um acréscimo de postos de trabalho! Ou terão diminuído? Adiante.
O argumento seguinte do neoliberal de serviço
será este: está bem, olhemos para o fenómeno do mercado de
trabalho na sua totalidade e não apenas caso a caso, mas o facto
é que no total, como todas as indústrias se modernizaram, existe
uma redução global dos postos de trabalho – não pode haver
emprego para todos. Mais uma vez esbarramos num pequeno senão: os
factos invocados não são, até à data, factos coisíssima nenhuma!
Continuo à espera que me apresentem um estudo quantificado,
historicamente documentado, que demonstre factualmente
que o processo de modernização acarreta uma perda global de postos
de trabalho. Encontramos aqui
uma constante: o
argumentário neoliberal não se baseia
no estudo sério e científico da realidade, mas sim numa
fé cega e em anedotas avulsas
e mal contadas.
Se o argumento
neoliberal colhesse, isso quereria dizer que pelo menos desde o
século 18, nas sociedades
industrializadas, os postos
de trabalho não teriam parado de minguar
(sim, espantem!, o progresso tecnológico e a mecanização afinal
não são apenas coisa de
hoje, nem sequer de ontem!). Por esta altura já deveríamos estar
reduzidos a 347 postos de trabalho em todo o mundo! Ora,
não parece que tenha sido essa a consequência da modernização da
produção.
Já vimos que a
modernização dos processos produtivos implica mudanças, mas não a
diminuição do trabalho (pelo menos de forma demonstrada) –
o mundo do trabalho não constitui uma excepção divina às leis
mecânicas do
universo: não existe um perpetuum mobile que
permita produzir sem trabalho humano. Chegou
agora o momento de olharmos com seriedade para além
das anedotas
neoliberais e indagarmos
o essencial: as actuais ou
futuras transformações do
processo produtivo implicam uma alteração das relações de
trabalho? Por outras palavras: no processo produtivo, tal como o
conhecemos, existe um trabalhador – o
qual dedica uma enorme
quantidade da sua
energia e do seu tempo de
vida à produção de bens ou
serviços – e existe um capitalista que se apropria desse
produto e duma parte do
seu valor e os
mete ao bolso. A partir desta
relação germinal
entre Trabalho e Capital nascem
todas as outras: mercado de trabalho, emprego,
negociação colectiva, direitos dos assalariados, organizações
de classe, diversos traços culturais … um sem-fim de
coisas, todas elas decorrentes duma raiz comum: as relações entre
Trabalho e Capital ao nível das unidades de produção (e não ao
nível do éter ou
das abstracções neoliberais).
A
robotização das unidades produtivas muda de alguma maneira a
relação germinal
entre Trabalho e Capital? Que grandes transformações são essas? Os
trabalhadores passam a trabalhar com os pés colados ao tecto e a
cabeça para baixo, comandados
por uma nuvem de anjos vindos
do céu, enquanto os patrões baixam aos infernos e são assados num
espeto? Se assim for, se as relações fundamentais da nossa
sociedade sofrerem tão cabais
transformações por obra e graça de um robô, façam favor de
demonstrar. Senão, direi o seguinte: enquanto o essencial não
mudar, enquanto nos acharmos no
domínio das relações
capitalistas, não existe o mínimo motivo para emagrecermos os
direitos do Trabalho e a legislação laboral. Pelo contrário,
quanto mais sofisticados são os meios de produção,
tanto mais poderosos serão os meios de controlo da produção por
parte do patronato – e portanto mais
razões haverá para reforçar as precauções e os direitos dos
trabalhadores!
A conclusão a que nos leva a análise do
anedotário neoliberal não é a «flexibilização» do trabalho, é
o seu inverso, ou seja, a
necessidade de reforçar a protecção e as garantias dos
trabalhadores. Aliás, se olharmos para os últimos 200 anos de
indústria e relações capitalistas, o que vemos nós? Que o
progresso industrioso e tecnológico foi
acompanhado por um reforço contínuo das garantias dos
trabalhadores; que da contratação à jorna, passámos para as
relações contratuais estáveis; que
coisas tão abjectas como a exploração do trabalho infantil foram
proibidas; que da jornada de
trabalho de 12 a 14 horas, sem férias, com frequentes
mortes por exaustão em idade jovem no local de trabalho, passámos
para jornadas de 6 a 8 horas, com respeito por períodos
mínimos de descanso; etc. O progresso não pôde ser feito apenas do
lado das máquinas, teve de incluir quem trabalha; as
vantagens não couberam todas ao patronato, uma parte teve de ser
repartida com os assalariados. E foi assim o progresso até aos anos
1980, quando entrou em cena o neoliberalismo. Temos pois de concluir
que as propostas neoliberais são uma ameaça ao progresso, por mais
robôs que aí venham; e que a única forma segura de avançar pelas
belas sendas abertas à
produção pelas novas tecnologias
passa pelo reforço dos direitos e garantias do Trabalho, e não o
inverso.
(corrigido em 21-02-2018)
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