14/02/18

Novo anedotário neoliberal (2)

todos os dias em horário nobre, num televisor perto de si


Este artigo continua uma série onde já tratei do problema da automação, modernização e robotização do trabalho, no quadro da crítica à campanha neoliberal que pretende justificar o desemprego massivo e a precarização do trabalho com uma suposta transformação radical da sociedade e do processo produtivo. Abordo agora outro aspecto dessa campanha: a concorrência no mercado internacional de trabalho e a «flexibilização» das leis laborais.1
[Nota: este artigo teve de ser totalmente revisto e corrigido em 16-02-2018, devido a diversos erros de transcrição e recolha de dados. Peço desculpa aos leitores pelo lapso.]

2. A concorrência internacional não justifica a «flexibilização» das leis laborais nem os salários de miséria

O argumento neoliberal diz que se praticarmos salários «altos» e não «flexibilizarmos» as relações contratuais, os investidores fogem para outras paragens; em consequência ficamos sem trabalho e o país é fustigado por todos os diabos do inferno. Como vamos ver, esta afirmação está recheada de erros e omissões.

O que se passa com a distribuição dos rendimentos?

Olhando para um país no seu todo, as contas do PIB dão-nos uma ideia aproximada de como a riqueza produzida pelos trabalhadores é distribuída entre Capital, Trabalho2 e Estado
  
Os gráficos seguintes medem os níveis de rendimento da população em percentagem do PIB:
«remuneração do Trabalho» = salários em bruto + contribuições sociais;
«remuneração do Capital» = excedente bruto de exploração (EBE);
«remuneração do Estado» = impostos sobre a produção.
A distribuição dos rendimentos na Alemanha, muito semelhante à da França e de vários outros países do Centro, em 2017 deu 51 % dos rendimentos ao Trabalho e 39 % ao Capital; o Estado recolheu em impostos cerca de 10 % da riqueza produzida. Aliás, 10 a 12 % do PIB é o valor médio arrecadado pelo Estado na maioria dos países durante a fase de produção, com excepção da Bulgária e Finlândia (14 %), Dinamarca e Islândia (15 %), Croácia (18 %), Hungria (16 %), Portugal, Eslovénia e Estónia (13 %), Suíça (6 %).
O gráfico seguinte, respeitante à República Checa, é muito semelhante, mas os níveis de rendimento surgem invertidos:à saída da fase de produção o Capital arrecada muito mais rendimento do que o Trabalho.


Ao olharmos para este tipo de gráficos, é necessário estarmos prevenidos contra algumas armadilhas (como sucede com todos os indicadores macroeconómicos):
  • Em primeiro lugar, o Trabalho é uma categoria que representa milhões de cidadãos e respectivas famílias; o Capital é uma categoria que representa uma minoria da sociedade. Na vida real, a massa salarial global representada nos gráficos acima tem de ser dividida por milhões de pessoas; ao passo que o nível de rendimento do Capital é dividido entre uma minoria social. Temos aqui, logo à partida, um desequilíbrio de rendimentos na ordem dos milhões.
  • A estatística oficial dá-nos o valor em bruto dos rendimentos. Isto significa que a estes valores, na vida real, serão abatidos os impostos directos sobre o rendimento (revertendo para o que chamei «rendimentos do Estado»). Este abatimento tem muito que se lhe diga, porque a carga fiscal sobre o Trabalho é mais pesada do que a carga fiscal imposta ao Capital. Mas há ainda outro factor fiscal mais pesado: os impostos sobre o consumo. Ora como mais de dois terços do consumo é feito pelas famílias, o rendimento final (líquido) dos trabalhadores não deixa margem para poupanças. Do lado das empresas, se os patrões ou accionistas decidirem fazer novos investimentos fixos (por exemplo, abrir uma fábrica nova), esse investimento é extraído dos rendimentos do Capital e posto a render – no mesmo sentido em que, se o trabalhador resolver comprar um carro para ir trabalhar todos os dias a 80 km do seu local de habitação, esse custo será extraído do seu rendimento.
  • A distribuição dos rendimentos segundo o PIB é duplamente enganadora, pois subentende os níveis de remuneração, mas não exprime o custo de vida. Se o trabalhador A ganhar 5000 euros/mês mas no seu país um pão custar 5 euros, e se o trabalhador B ganhar 500 euros/mês mas no seu país um pão custar 0,50 euros, é bem possível que, levando em conta o custo de vida nos respectivos países, A e B se encontrem ao mesmo nível de rendimento real. Contudo, esta equivalência descamba completamente se, por exemplo, o trabalhador A estiver sujeito a uma pressão cultural que o obriga a exibir um smartphone topo de gama e a pagar dispendiosas rodadas de bebidas aos amigos todos os fins de semana, enquanto o trabalhador B não está sujeito a essa pressão. Quando se trata de comparar as condições de vida e rendimento entre trabalhadores de diferentes partes do mundo, a coisa não é tão simples como mostram os indicadores macroeconómicos de que estamos a servir-nos aqui – temos de cruzar uma multiplicidade de informações.

Espreitemos agora o caso português. 

A partir de 2012 a intervenção da Troika reforçou um processo em curso desde 2003: a aproximação entre os rendimentos do Capital e do Trabalho, com prejuízo para o Trabalho. Esta tendência é ainda mais gravosa do que parece, porque os níveis de rendimento estão a ser calculados em percentagem do PIB, de modo que a queda do produto nacional mascara uma queda ainda mais acentuada da massa salarial. 
  
Em suma, olhando para o conjunto dos países europeus, encontramos dois paradigmas na distribuição dos rendimentos3:
  • paradigma do Centro – países onde a massa salarial total é mais elevada do que a remuneração do Capital:
    Bélgica, Dinamarca, Alemanha, França,  Luxemburgo, Holanda, Áustria, Finlândia, Suécia, Reino Unido, Islândia, Suíça;
  • paradigma da Periferia – países onde os lucros do Capital são superiores à massa salarial:
    Bulgária, República Checa, Irlanda, Grécia, Itália, Lituânia, Polónia, Roménia, Eslováquia, Malta, Hungria
  • deixo à parte um grupo de países onde a repartição de rendimentos evolui de forma errática: Letónia, Noruega, Chipre.
Deve assinalar-se que entre os países periféricos encontramos várias excepções ao paradigma da Periferia: Portugal, Espanha, Estónia, Eslovénia, Croácia. Devem ser examinados com cautela, pois cada um deles tem diferentes razões para ser uma excepção. De resto, em todos eles (com a possível excepção da Croácia) as políticas de austeridade estão a reconduzi-los ao paradigma da Periferia.
 
Após a crise de 2007-2008, a instalação de políticas de austeridade na Periferia resultou benéfica para os trabalhadores dos países do Centro, tomados no seu conjunto. Este fenómeno é bastante claro em países como a Alemanha e a França, mesmo que também aí tenha havido algumas medidas de austeridade.

As mil e uma maneiras de fazer baixar os salários

Infelizmente são muitas e diversificadas as formas de pressionar os salários para baixo. Entre elas contam-se: o incentivo à migração mal paga; a deslocação (ou ameaça de deslocação) das unidades de produção para países mais pobres (ou seja, com salários miseráveis); a criação artificial de desemprego em massa (por exemplo, lançando para o desemprego milhares de funcionários públicos, não por razões financeiras ou funcionais, mas sim como instrumento deliberado de redução dos salários e dos direitos laborais); a redução drástica dos investimentos produtivos; a criação de sindicatos «amarelos»; o namoro institucional a partidos de esquerda, com vista a ajudar a refrear uma previsível onda futura de reivindicações sociais; a elaboração de leis laborais desastrosas a longo prazo, a troco de alguns benefícios económicos imediatos; a deslocação do investimento de ramos económicos de elevada tecnologia e valor acrescentado, para actividades económicas que usam mão-de-obra pouco especializada e mal paga (turismo, construção civil, colheitas de agricultura intensiva, …). A lista é demasiado longa para ser aqui analisada na sua totalidade.

A cantilena da concorrência internacional

Os ideólogos do neoliberalismo querem fazer-nos crer que entrámos numa nova era, na qual estaríamos sujeitos a um conjunto de inevitabilidades decorrentes da concorrência entre diversos mercados de trabalho. Sendo certo que essa concorrência existe, e que existem diferentes estágios de desenvolvimento económico, social e político de país para país; sendo certo que o Capital sempre procura tirar partido das situações onde pode extrair maiores lucros, não é menos certo que não existe aí nada de novo. O choque entre países e economias com diferentes custos laborais tem séculos de existência. Os exemplos são inúmeros e um dos mais espectaculares é o choque entre a produção à custa de mão-de-obra escrava no Sul dos EUA e o resto do mundo industrialmente avançado. Sem dúvida os teares mecânicos das zonas industrializadas tiravam partido do algodão americano produzido a baixo custo, mas ao mesmo tempo a existência de um modo de produção passadista (o esclavagismo) concorrente com o modo de produção capitalista gerou contradições insustentáveis. O mundo «civilizado» teve de forçar os latifundiários do Sul dos EUA a transformar os escravos em proletários, porque a coexistência dos dois modos de produção ameaçava arrastar o capitalismo para o fundo – retirava-lhe uma importante quota de potenciais consumidores que, para serem efectivamente consumidores, tinham de se libertar da escravidão e tornar-se proletários.
Deixem-me recordar quem ganhou esta guerra: foi o modo de produção capitalista, não foi o modo de produção esclavagista. 
 
Com o seu olhar abstracto e esotérico, as propostas neoliberais apresentam-nos o seguinte cenário: o trabalho em Portugal é mais barato do que na Alemanha, de modo que a VW muda as suas fábricas para cá; mas como os trabalhadores portugueses a certa altura se tornam gananciosos, exigindo um tempo mínimo de descanso, salários dignos, horas extraordinárias pagas, os gestores da Autoeuropa chateiam-se, levantam arraiais4 e constroem a Autobrasil; aí, as coisas correm bem até ao momento em que um menino qualquer levanta o dedo noutro canto dessa grande sala que é o mundo: sr. doutor, estou disposto a trabalhar ainda por menos que isso! E assim sucessivamente, em direcção ao custo zero, isto é, ao trabalho escravo.
 
Os ideólogos neoliberais são zombies renascidos dos esclavagistas americanos; levaram uma pancada na cabeça, morreram, e agora voltaram a acordar; mas não conseguem lembrar-se como e porquê foram historicamente derrotados. Esqueceram que o Capital não vive apenas da exploração do valor produzido pelo Trabalho, necessita que esse valor seja consumido por quem trabalha. A exploração não acaba no local de trabalho, com o pagamento de um salário. Esse salário irá regressar ao bolso do Capital, por via do consumo.
 
Em certo sentido eu até gostaria que o projecto neoliberal vencesse em toda a parte, porque a deslocação massiva de indústrias e serviços de alto valor acrescentado para os países da Periferia aceleraria a tomada de consciência desses povos, provocaria uma onda de reivindicações e revoltas que tenderia a colocar-nos a todos ao mesmo nível de consciência e acção. Um aumento ainda mais desenfreado dos lucros e do produtivismo desequilibraria de tal forma a repartição de rendimentos e desencadearia uma tal incapacidade de consumo, que o resultado óbvio seria a coordenação de acções revolucionárias em todo o mundo. O problema é que este cenário teria custos humanos tão terríveis, implicaria um sofrimento e uma miséria tão elevados numa fase transitória, que ninguém no seu perfeito juízo pode desejar semelhante maldade à humanidade, por maiores que sejam os benefícios para as gerações seguintes. É preferível que o enterro do modo de produção capitalista siga outras sendas.
 

O substituto moderno do esclavagismo

No tempo da escravatura, cabia ao dono dos escravos alimentá-los, abrigá-los, instruí-los (ou não, consoante lhe saísse mais barato cuidar deles ou deixá-los morrer e comprar outros novos). O modo de produção capitalista acabou com tudo isso. Ao fim do dia o patrão paga um salário ao trabalhador e diz-lhe: agora desampara-me a loja e amanha-te. É nesse instante, ao sair da fábrica ou do escritório, que o assalariado se transforma em consumidor – na rua ou na fábrica, empregado ou desempregado, continua sujeito às relações capitalistas. 
 
Num cenário neoliberal extremista, o salário pode cair ao ponto de já não chegar para manter os níveis de consumo mínimos (isto é, necessários à sobrevivência do sistema capitalista). É preciso então que algum factor providencial entre em campo para salvar a pele do Capital. A direita e o centro esforçam-se para que esse factor providencial, em países como Portugal, seja o Estado-providência, que acorre a subsidiar os indigentes. Transforma-se em Estado-assistencialista. Aliás, palpita-me que a ameaça de indigência generalizada dos consumidores está na base de alguns dos apoios à proposta de criação de um Rendimento Básico Incondicional (RBI) e a outras semelhantes. Nada disto tem a ver com o «fim do trabalho» e outras cantilenas semelhantes, mas sim com o pavor de ver a maquinaria do actual excesso produtivo implodir por falta de consumo. É claro que todos os truques propostos pelo neoliberalismo para atalhar essa ameaça padecem de entropia, não podem ir longe, mas o desespero por alcançar níveis óptimos de lucro imediato alimenta a fé cega do neoliberalismo.

A necessidade imperiosa do internacionalismo proletário

Ainda que os mortos-vivos da ideologia neoliberal estejam condenados à derrota, isso não basta para que ela aconteça. Aliás, essa é a grande lição do marxismo: não basta teorizar e filosofar, é preciso agir e transformar o mundo; sem isso, todas as palavras são vãs.
 
Na luta contra a deslocação das unidades de produção, contra a precariedade, contra a desregulamentação do trabalho, contra a miséria salarial e humana, é preciso que o internacionalismo, a solidariedade activa entre povos, se faça sentir. Caso contrário, corremos o risco de ter de aturar a queda no abismo neoliberal durante muitas gerações, demasiadas em termos de sofrimento humano.
Na resposta aos desafios postos pela crise da UE temos uma oportunidade rara de revigorar esse factor crucial, por algum tempo esquecido no ideário da esquerda revolucionária: o internacionalismo.

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Notas
  
1 A maioria dos meus artigos tem um carácter didáctico muito simples (ou pelo menos pretende ter...). Não esperem daqui grandes elucubrações teóricas e académicas.
2 Para o leitor que desconhece a terminologia Capital/Trabalho: Capital é uma categoria de pensamento e razão crítica que engloba o conjunto dos detentores de capitais, os quais incluem designadamente os meios de produção, os stocks de produtos e os stocks de valores; Trabalho é uma categoria que engloba o conjunto dos assalariados, isto é, as pessoas que vendem ao Capital a sua energia pessoal, sem a qual a maquinaria da produção não pode funcionar. Ambas as categorias são genéricas, sistemáticas e abstractas; são grafadas com maiúscula inicial, tal como quando falamos de Universidade, Ordem dos Médicos, Portugueses, Primatas, Reino Animal, etc., de forma coerente com a regra científica: escrevem-se com maiúscula inicial os reinos, classes, ordens, famílias e géneros.
 
3 A totalidade dos gráficos não é aqui publicada, para não empastelar o artigo, mas está disponível a pedido. De resto, qualquer internauta pode descarregar os dados necessários à sua construção nas mesmas fontes: base de dados da Eurostat, http://ec.europa.eu/eurostat/data/database.
 
4 O grito neoliberal de «aqui d'el-rei, que as exigências dos sindicatos levam as empresas à falência e as enxotam para outros países» é uma treta. Se uma empresa vai à falência, ou se tem lucros zero, onde vai ela buscar dinheiro (ou crédito) para abrir uma fábrica nova noutro lugar? É claro que não se trata de ir à falência, nem sequer de minguar lucros. Trata-se apenas de que estas empresas querem maximizar os lucros até ao limite do esclavagismo.
 

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