todos os dias em horário nobre, num televisor perto de si
[Nota: este
artigo teve de ser totalmente
revisto e corrigido em
16-02-2018, devido a diversos
erros de transcrição e recolha de dados.
Peço desculpa aos leitores pelo lapso.]
2. A concorrência internacional não justifica a «flexibilização» das leis laborais nem os salários de miséria
O argumento
neoliberal diz
que se praticarmos salários «altos» e
não «flexibilizarmos» as
relações contratuais, os
investidores fogem para outras paragens; em
consequência ficamos sem trabalho e o país é fustigado por todos
os diabos do inferno. Como
vamos ver, esta afirmação
está recheada
de erros e omissões.
O que se passa com a distribuição dos rendimentos?
Olhando para
um país no seu todo, as contas do PIB dão-nos
uma ideia aproximada
de como a riqueza produzida
pelos trabalhadores é
distribuída entre Capital, Trabalho2
e Estado.
Os
gráficos seguintes medem
os níveis de rendimento da
população em percentagem do
PIB:
«remuneração
do Trabalho» = salários em bruto + contribuições sociais;
«remuneração
do Capital» = excedente bruto de exploração (EBE);
«remuneração
do Estado» = impostos sobre a produção.
A distribuição
dos rendimentos na Alemanha, muito
semelhante à
da França e de vários outros países do Centro,
em 2017 deu
51 % dos rendimentos ao
Trabalho e 39 % ao
Capital; o
Estado recolheu em impostos cerca de 10 % da riqueza produzida.
Aliás, 10 a 12 % do PIB é o valor médio arrecadado pelo
Estado na maioria dos países durante a fase de produção, com excepção da Bulgária e
Finlândia (14 %),
Dinamarca e Islândia
(15 %), Croácia (18 %), Hungria (16 %), Portugal,
Eslovénia e
Estónia (13 %),
Suíça (6 %).
O
gráfico seguinte, respeitante à República Checa,
é muito semelhante, mas os
níveis de rendimento surgem
invertidos:à saída da fase de produção o Capital arrecada muito mais rendimento do que o Trabalho.
Ao olharmos para
este tipo de gráficos, é
necessário estarmos
prevenidos contra algumas armadilhas (como sucede com todos os indicadores macroeconómicos):
-
Em primeiro lugar, o Trabalho é uma categoria que representa milhões de cidadãos e respectivas famílias; o Capital é uma categoria que representa uma minoria da sociedade. Na vida real, a massa salarial global representada nos gráficos acima tem de ser dividida por milhões de pessoas; ao passo que o nível de rendimento do Capital é dividido entre uma minoria social. Temos aqui, logo à partida, um desequilíbrio de rendimentos na ordem dos milhões.
-
A estatística oficial dá-nos o valor em bruto dos rendimentos. Isto significa que a estes valores, na vida real, serão abatidos os impostos directos sobre o rendimento (revertendo para o que chamei «rendimentos do Estado»). Este abatimento tem muito que se lhe diga, porque a carga fiscal sobre o Trabalho é mais pesada do que a carga fiscal imposta ao Capital. Mas há ainda outro factor fiscal mais pesado: os impostos sobre o consumo. Ora como mais de dois terços do consumo é feito pelas famílias, o rendimento final (líquido) dos trabalhadores não deixa margem para poupanças. Do lado das empresas, se os patrões ou accionistas decidirem fazer novos investimentos fixos (por exemplo, abrir uma fábrica nova), esse investimento é extraído dos rendimentos do Capital e posto a render – no mesmo sentido em que, se o trabalhador resolver comprar um carro para ir trabalhar todos os dias a 80 km do seu local de habitação, esse custo será extraído do seu rendimento.
-
A distribuição dos rendimentos segundo o PIB é duplamente enganadora, pois subentende os níveis de remuneração, mas não exprime o custo de vida. Se o trabalhador A ganhar 5000 euros/mês mas no seu país um pão custar 5 euros, e se o trabalhador B ganhar 500 euros/mês mas no seu país um pão custar 0,50 euros, é bem possível que, levando em conta o custo de vida nos respectivos países, A e B se encontrem ao mesmo nível de rendimento real. Contudo, esta equivalência descamba completamente se, por exemplo, o trabalhador A estiver sujeito a uma pressão cultural que o obriga a exibir um smartphone topo de gama e a pagar dispendiosas rodadas de bebidas aos amigos todos os fins de semana, enquanto o trabalhador B não está sujeito a essa pressão. Quando se trata de comparar as condições de vida e rendimento entre trabalhadores de diferentes partes do mundo, a coisa não é tão simples como mostram os indicadores macroeconómicos de que estamos a servir-nos aqui – temos de cruzar uma multiplicidade de informações.
Espreitemos agora
o caso português.
A
partir de 2012 a intervenção
da Troika reforçou
um
processo em curso desde
2003: a
aproximação entre os rendimentos do Capital e do Trabalho, com
prejuízo para o Trabalho. Esta tendência é ainda mais gravosa do que parece,
porque os níveis de
rendimento estão a ser
calculados em percentagem do PIB, de modo que a
queda do produto nacional
mascara uma
queda ainda mais acentuada da
massa salarial.
Em suma,
olhando para o conjunto dos
países europeus, encontramos
dois paradigmas na distribuição dos rendimentos3:
-
paradigma do Centro – países onde a massa salarial total é mais elevada do que a remuneração do Capital:Bélgica, Dinamarca, Alemanha, França, Luxemburgo, Holanda, Áustria, Finlândia, Suécia, Reino Unido, Islândia, Suíça;
-
paradigma da Periferia – países onde os lucros do Capital são superiores à massa salarial:Bulgária, República Checa, Irlanda, Grécia, Itália, Lituânia, Polónia, Roménia, Eslováquia, Malta, Hungria
-
deixo à parte um grupo de países onde a repartição de rendimentos evolui de forma errática: Letónia, Noruega, Chipre.
Deve assinalar-se que entre os países periféricos encontramos várias excepções ao
paradigma da Periferia:
Portugal, Espanha, Estónia, Eslovénia, Croácia. Devem ser examinados com cautela, pois cada um deles tem diferentes razões para ser uma excepção. De resto, em todos eles
(com a possível excepção da Croácia) as políticas de austeridade estão
a reconduzi-los ao paradigma da Periferia.
Após a
crise de 2007-2008, a
instalação de políticas de austeridade na Periferia resultou
benéfica
para os trabalhadores dos
países do Centro, tomados
no seu conjunto. Este fenómeno é bastante
claro em países como a
Alemanha e a França, mesmo
que também aí tenha havido algumas medidas de austeridade.
As mil e uma maneiras de fazer baixar os salários
Infelizmente são muitas e diversificadas as
formas de pressionar os salários para baixo. Entre elas contam-se: o
incentivo à migração mal paga; a deslocação (ou ameaça de
deslocação) das unidades de produção para países mais pobres (ou
seja, com salários miseráveis); a criação artificial de
desemprego em massa (por exemplo, lançando para o desemprego
milhares de funcionários públicos, não por razões financeiras ou
funcionais, mas sim como instrumento deliberado de redução dos
salários e dos direitos laborais); a redução drástica dos
investimentos produtivos; a criação de sindicatos «amarelos»; o
namoro institucional a partidos de esquerda, com vista a ajudar a
refrear uma previsível onda futura de reivindicações sociais; a
elaboração de leis laborais desastrosas a longo prazo, a troco de
alguns benefícios económicos imediatos; a deslocação do
investimento de ramos económicos de elevada tecnologia e valor
acrescentado, para actividades económicas que usam mão-de-obra pouco especializada e mal paga (turismo, construção
civil, colheitas de agricultura intensiva, …). A lista é demasiado
longa para ser aqui analisada na sua totalidade.
A cantilena da concorrência internacional
Os ideólogos do neoliberalismo querem fazer-nos
crer que entrámos numa nova era, na qual estaríamos sujeitos a um
conjunto de inevitabilidades decorrentes da concorrência entre
diversos mercados de trabalho. Sendo certo que essa concorrência
existe, e que existem diferentes estágios de desenvolvimento
económico, social e político de país para país; sendo certo que o
Capital sempre procura tirar partido das situações onde pode
extrair maiores lucros, não é menos certo que não existe aí nada
de novo. O choque entre países e economias com diferentes custos
laborais tem séculos de existência. Os exemplos são inúmeros e um
dos mais espectaculares é o choque entre a produção à custa de
mão-de-obra escrava no Sul dos EUA e o resto do mundo
industrialmente avançado. Sem dúvida os teares mecânicos das zonas
industrializadas tiravam partido do algodão americano produzido a
baixo custo, mas ao mesmo tempo a existência de um modo de produção
passadista (o esclavagismo) concorrente com o modo de produção
capitalista gerou contradições insustentáveis. O mundo
«civilizado» teve de forçar os latifundiários do Sul dos EUA a
transformar os escravos em proletários, porque a coexistência dos
dois modos de produção ameaçava arrastar o capitalismo para o
fundo – retirava-lhe uma importante quota de potenciais
consumidores que, para serem efectivamente consumidores, tinham de se
libertar da escravidão e tornar-se proletários.
Deixem-me recordar quem ganhou esta guerra: foi o
modo de produção capitalista, não foi o modo de produção
esclavagista.
Com o seu
olhar abstracto
e esotérico,
as propostas neoliberais apresentam-nos o seguinte
cenário: o trabalho em
Portugal é mais barato do que na Alemanha, de modo que a VW muda as
suas fábricas para cá; mas como os trabalhadores portugueses a
certa altura se tornam gananciosos, exigindo
um tempo mínimo
de descanso, salários
dignos, horas extraordinárias pagas, os
gestores da Autoeuropa
chateiam-se,
levantam
arraiais4
e constroem a Autobrasil;
aí, as coisas correm bem até ao momento em que um menino qualquer
levanta o dedo noutro canto
dessa grande sala que é o mundo: sr. doutor, estou disposto a
trabalhar ainda por menos que isso! E assim sucessivamente, em
direcção ao custo zero,
isto é, ao trabalho escravo.
Os ideólogos
neoliberais são zombies
renascidos
dos esclavagistas americanos;
levaram uma pancada na cabeça, morreram, e agora voltaram a acordar;
mas não conseguem lembrar-se como
e porquê foram
historicamente derrotados. Esqueceram que o Capital não vive apenas
da exploração do valor produzido pelo Trabalho, necessita
que esse valor seja consumido por quem trabalha. A exploração não
acaba no local de trabalho, com o pagamento de um salário. Esse
salário irá regressar ao bolso do Capital, por via do consumo.
Em
certo sentido eu até gostaria que o projecto neoliberal vencesse em
toda a parte, porque a deslocação massiva de indústrias e serviços
de alto valor acrescentado para os países da Periferia aceleraria a
tomada de consciência desses povos, provocaria uma onda de
reivindicações e revoltas que tenderia a colocar-nos a todos ao
mesmo nível de consciência e acção. Um aumento
ainda mais desenfreado dos lucros e do produtivismo
desequilibraria
de tal forma a repartição
de rendimentos e
desencadearia uma tal incapacidade de consumo,
que o resultado óbvio seria
a coordenação de acções revolucionárias em todo o mundo.
O problema é que este cenário teria custos humanos tão terríveis,
implicaria um sofrimento e uma miséria tão elevados numa fase
transitória, que ninguém no seu perfeito juízo pode desejar
semelhante maldade à humanidade, por maiores que sejam os
benefícios para as gerações seguintes. É preferível que o
enterro do modo de produção capitalista siga outras sendas.
O substituto moderno do esclavagismo
No tempo da escravatura, cabia ao dono dos
escravos alimentá-los, abrigá-los, instruí-los (ou não, consoante
lhe saísse mais barato cuidar deles ou deixá-los morrer e comprar
outros novos). O modo de produção capitalista acabou com tudo isso.
Ao fim do dia o patrão paga um salário ao trabalhador e diz-lhe:
agora desampara-me a loja e amanha-te. É nesse
instante, ao sair da fábrica ou do escritório, que o assalariado se
transforma em consumidor – na rua ou na fábrica, empregado ou
desempregado, continua sujeito às relações capitalistas.
Num cenário neoliberal extremista, o salário
pode cair ao ponto de já não chegar para manter os níveis de
consumo mínimos (isto é, necessários à sobrevivência do sistema capitalista). É preciso então que algum factor providencial entre em
campo para salvar a pele do Capital. A direita e o centro esforçam-se para que esse factor providencial, em
países como Portugal, seja o Estado-providência, que acorre a
subsidiar os indigentes. Transforma-se em Estado-assistencialista.
Aliás, palpita-me que a ameaça de indigência
generalizada dos consumidores está na base de alguns dos apoios à proposta de criação de um Rendimento
Básico Incondicional (RBI) e a outras semelhantes.
Nada disto tem a ver com o «fim do trabalho» e outras cantilenas
semelhantes, mas sim com o pavor de ver a maquinaria do actual
excesso produtivo implodir por falta de consumo. É claro que todos
os truques propostos pelo neoliberalismo para atalhar essa ameaça
padecem de entropia, não podem ir longe, mas o desespero por
alcançar níveis óptimos de lucro imediato alimenta a fé cega do
neoliberalismo.
A necessidade imperiosa do internacionalismo proletário
Ainda que os mortos-vivos
da ideologia neoliberal estejam condenados à derrota, isso não
basta para que ela
aconteça. Aliás,
essa é
a grande lição do marxismo: não basta teorizar e filosofar, é
preciso agir e transformar o mundo; sem isso, todas as palavras são
vãs.
Na luta contra a
deslocação das unidades de produção, contra a precariedade,
contra a desregulamentação do trabalho, contra
a miséria salarial e humana, é
preciso que o internacionalismo, a solidariedade activa entre povos,
se faça sentir. Caso contrário, corremos o risco de ter de aturar a
queda no abismo neoliberal durante muitas gerações, demasiadas em
termos de sofrimento humano.
Na resposta aos
desafios postos pela crise da UE temos uma oportunidade rara de
revigorar esse factor crucial, por algum tempo esquecido no ideário
da esquerda revolucionária: o internacionalismo.
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Notas
1 A
maioria dos meus artigos tem um carácter didáctico muito simples (ou pelo menos pretende ter...). Não esperem daqui grandes elucubrações teóricas e académicas.
2 Para
o leitor que
desconhece a
terminologia Capital/Trabalho:
Capital é uma categoria de pensamento e razão crítica que
engloba o conjunto dos detentores de capitais, os
quais incluem designadamente
os meios
de produção, os
stocks de produtos e
os stocks de valores;
Trabalho
é uma categoria que engloba o conjunto dos assalariados, isto é,
as pessoas que vendem ao Capital
a
sua energia pessoal, sem a qual a maquinaria da produção não pode
funcionar. Ambas as
categorias são genéricas, sistemáticas
e abstractas; são grafadas
com maiúscula inicial, tal como quando falamos
de
Universidade,
Ordem dos Médicos, Portugueses, Primatas,
Reino Animal, etc., de
forma coerente
com a regra científica:
escrevem-se
com maiúscula inicial os reinos,
classes, ordens, famílias e
géneros.
3 A
totalidade dos gráficos não é aqui publicada, para não
empastelar o artigo, mas está disponível a pedido. De resto,
qualquer internauta pode descarregar os dados necessários à sua
construção nas mesmas fontes: base de dados da Eurostat,
http://ec.europa.eu/eurostat/data/database.
4 O
grito neoliberal de «aqui d'el-rei, que as exigências dos
sindicatos levam as empresas à falência e as enxotam para outros
países» é uma treta. Se uma empresa vai à
falência, ou se tem lucros zero, onde vai ela buscar dinheiro (ou
crédito) para abrir uma fábrica nova noutro lugar? É claro que
não se trata de ir à falência, nem sequer de minguar lucros.
Trata-se apenas de que estas empresas querem maximizar os lucros até
ao limite do esclavagismo.
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