Quantos me conhecem de muito perto sabem da minha
repugnância – vá, digamos, da minha desconfiança –
pela filosofia em geral. Esta atitude é tão vincada desde a minha
juventude que, ao deparar-me com a disciplina de filosofia na escola,
sem a qual não poderia progredir nos estudos, decidi abandoná-los
de vez – antes a ignorância que a cadeira de Filosofia, tal foi o
meu grito. Esta teima tem um senão: como quase nunca tive pachorra
para sofrer até ao fim esses marcos do pensamento ocidental (e bem
assim os do oriental), não me encontro em condições de fazer uma
crítica sistemática às respectivas obras. Aliás não creio que ela
vos faça falta.
Em todo o caso sou capaz de vos apontar muito
sinteticamente o busílis da questão, do meu ponto de vista: de modo
geral as obras filosóficas consistem em má poesia; têm quase tudo
da poesia, em quase tudo são poesia, excepto no que diz respeito à
qualidade literária ou poética e ao elevado discernimento inerente
à boa poesia. Em suma, na sua
esmagadora maioria os filósofos consagrados são maus poetas que,
por vergonha, se mascararam de mestres da lógica; mas que também
nisso não são grande espingarda.
Há no entanto excepções, ou pelo menos obras
cuja leitura me proporciona um enorme prazer, e por vezes
concordância. É um belo bónus a concordância, mas se me dá gozo
ler as crónicas e os ensaios de Vilém Flusser, por exemplo, isso
não implica necessariamente que eu esteja de acordo com todas as
ideias que ele defende. Flusser é um filósofo (isso ninguém o
nega, nem mesmo os que não lhe fazem a vénia) e é um poeta, não
há como negar, mas com a grande diferença, em relação à maioria
dos seus semelhantes, de ser um razoável poeta.
Não faltam filósofos cuja inépcia literária me
enerva fisicamente, ao ponto de atirar o livro pela janela. Mas
outros há que, precisamente por não quererem ser poetas
envergonhados (ou armar-se aos cágados, como se diz também) e usarem de uma
seriedade rigorosa nos seus métodos de análise, podem pousar em segurança na minha
estante. É o caso de Karl Marx e Albert Camus, entre outros. Certamente há neles também alguma poesia, como prova o simples facto
de a partir dos textos de Marx terem sido produzidas milhares de
interpretações. Nunca fiz as contas, mas não me admiraria que
houvesse da obra de Marx mais interpretações do que da 5.ª
Sinfonia de Beethoven, o que é prova bastante do carácter poético
da coisa. A estranha relação entre um electrão e um protão pode
ser entendida ou não, podem sobre ela fazer-se especulações quanto
ao que ficou por saber, mas nunca interpretações – a
interpretação é apanágio exclusivo das artes, das escrituras
religiosas e da tradução simultânea.
Ao lado de Marx, na mesma estante, foi acoitar-se
um outro filósofo e cientista: António Damásio. Em boa verdade foi
lá posto pelo acaso do meu desleixo, mas calhou bem: em ambos
encontro a mesma atenção à linha histórica (ou evolutiva, no caso
de Damásio) para chegar ao entendimento das coisas; a mesma primazia
dada às causas materiais para decifrar o imaterial; a mesma tónica
na praxis (ainda que apenas
de forma implícita em Damásio) para
aferirem o caminho teórico.
Tudo isto para
chegar por fim, ao cabo de 580
palavras!, àquilo que me traz aqui: ouvindo
dizer que tinha sido publicada em português
a última
obra de António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas,
corri a comprá-la.
Chegado a casa, atiro-me
a ela e
… tenho de confessar que
levei semanas a mastigar o livro, lenta e penosamente, até que, por
volta da página 254, me
dei por vencido: atirei-o para o fundo do saco onde diversos livros
aguardam a oportunidade de irem passear
à Feira da Ladra e encontrarem novos donos.
Em toda a primeira parte do livro Damásio faz o
que lhe compete: tenta convencer o leitor de que tudo no espírito
humano, incluindo os sentimentos, a sociabilidade e a cultura, tem
antecedentes que remontam aos primeiros organismos vivos, há
milhares de milhões de anos. No centro desse processo evolutivo
Damásio coloca o conceito de homeostasia. À semelhança dos livros
anteriores, misturam-se neste as descobertas científicas e a
especulação filosófica. Mas este truque, que tão bem resulta nos
livros precendentes, descamba aqui numa caldeirada indigesta. O que é
que correu mal?
Em primeiro lugar, arrisco-me a dizer que tudo o
que Damásio diz naquelas 350 páginas poderia ser dito, com maior proveito, em 35. A Estranha Ordem das Coisas
traz à memória uma velha história: pediram
a um cientista que resumisse
em meia página uma certa teoria científica. O homem foi para casa,
atirou-se ao papel, escreveu, rasurou, rasgou, recomeçou, e nada –
passados dias o cesto dos papéis estava repleto, mas de resumo,
nada. Por fim dirigiu-se a quem lhe tinha feito a encomenda e disse:
«Não sou capaz. Por mais que faça, não consigo resumir esta
teoria em meia página. Ora, se uma teoria não pode ser resumida em
meia página de forma meridiana, então alguma coisa de errado se
passa com ela». E de facto, poucos anos depois, a comunidade
científica veio a descobrir que aquela teoria padecia de um erro
fatal. Pois bem, receio que o mesmo se passe desta vez com a teoria
proposta por Damásio no seu último livro. Há ainda outra
explicação: o homem de repente ficou caquético. Ou ambas as
coisas.
A hipótese da
caquexia é fortemente corroborada pelo inacreditável número de
vezes que ele se repete, retomando de cada vez as mesmas afirmações
– senão
mesmo capítulos inteiros –,
como se pela primeira vez as pronunciasse. Tentei
contar as repetições, anotando laboriosamente o livro, mas acabei
por desistir – até porque me estava a sentir arrastado para aquela
espécie de demência precoce. É
o tipo de lapso caquético que causa a maior estranheza – para
não dizer desconforto – a quem assiste.
O
livro está atafulhado de banalidades, de lugares-comuns, de
afirmações queriduchas sobre as relações humanas, derrubando de
caminho todas as barreiras cautelares
entre ciência, moralismo e ideologia. Esta caldeirada irritou-me a
tal ponto
o paladar, que raros foram os dias em que consegui papar mais de uma
página de seguida. Tomei-o como um remédio, às
colherzinhas e até onde
pude.
Por fim vem a
segunda parte do livro, aquela onde Damásio se aventura no domínio
da cultura e da civilização humanas, tentando
relacioná-las com os primeiros protozoários nascidos há milhares
de milhões de anos. Aí,
finalmente, percebe-se que o objectivo deste livro consiste
sobretudo em apresentar um
programa ideológico, por sinal mal amanhado.
Se a primeira
parte já era difícil de decifrar, enovelada, repetitiva, na
segunda parte as incorrecções históricas, antropológicas e
sociológicas, os lugares-comuns ridículos brotam em
cornucópia. A lógica da
homeostasia é aplicada na segunda parte do
livro à cultura e à
civilização
como estratégia do tipo
varapau e cenoura. Aí encontramos pérolas como estas: o «objectivo
funcional útil [da homeostasia] teria igualmente aumentado o poder
de certos indivíduos e, por acréscimo, de certos grupos de
indivíduos em relação a outros» (p. 237); «num
período animista de culturas, seria pedido [aos deuses] não só que
ajudassem com o sofrimento pessoal, mas também que protegessem a
propriedade pessoal» (p. 242); «em última análise, a promessa de
continuação da vida após a morte podia anular
completamente os efeitos negativos de qualquer perda»
(p. 242, sublinhados meus); «as guerras são um caso especial, pois
tanto levam a remédios construtivos,
como a ciclos intermináveis de violência» (p.244, sublinhados
meus); «a religião e a
homeostasia estão convincentemente ligadas no que respeita à sua
origem» (p. 244; se estão à espera da demonstração científica
desta tirada, é melhor sentarem-se); «o facto de a história das
religiões estar cheia de episódios em que as crenças religiosas
levaram, e continuam a levar, ao sofrimento, à violência e às
guerras não contradiz, de modo algum, o valor homeostático que tais
crenças tiveram» (p. 245); «Marx não fazia ideia de como o mundo
se tornaria desumanizado e frio» (donde concluo que Damásio não
faz a mais pequena ideia do que era o horror, a miséria, o
sofrimento da vida proletária na
Inglaterra do
século XIX, já para não
falar das respectivas colónias),
«sobretudo o mundo que ele próprio viria a inspirar» (p. 245); «há
um sem-fim de benefícios homeostáticos a retirar do inquérito
filosófico», até porque
ele serve
para «solucionar os enigmas do Cosmos»
e satisfaz o sentimento «da
antecipação das
respectivas recompensas» (p.
250); «numa tentativa de
testar a minha hipótese geral podemos pensar em situações que
contradizem a ideia», e mais adiante, «o facto de que as crenças
religiosas também
podem provocar sofrimento em nada contradiz a hipótese» e
prontinhos, está demonstrado (p. 251-252); …
Referindo-se à
criação de sistemas morais e regimes políticos: «O repetido
encontro com o sofrimento causado pelo roubo, pela mentira, pela
traição e pela falta de disciplina seria um incentivo poderoso para
a invenção de códigos de conduta cujas recomendações e prática
teriam como resultado a redução do sofrimento» (p. 243) – o que,
sendo óbvio, me traz à memória o poderoso argumento que
um bêbado meu amigo não se cansou de repetir durante anos: se a
minha avó fosse estéril, eu não seria nascido. É de facto
imbatível este argumento, mas não me leva a lado nenhum.
Durante
toda a
segunda parte do livro a expressão «selecção cultural» é
repetida dezenas de vezes, até à exaustão. Fiquei sem saber bem o
que quererá
isso dizer ao certo – não por falta de pistas, mas porque tive medo de
desvendar o segredo, não
fosse sair dali um tipo de bigodinho estreito e franja alongada.
O que mais magoa
nisto tudo é que, entre tantos familiares, amigos, inimigos,
colegas, editores e críticos, ninguém tenha tido a coragem, a
amizade e a bondade de lhe
dizer: «Ó António, deixa-te disso, que
estás a ficar caquético.
Mete
o rascunho no saco
e vai gozar o que te resta de vida, que bem mereces. Após tanta
honraria, tanto louvor, tanta
medalha, tanta estima
espalhada pelos quatro cantos do mundo, não queiras perder a cara
como cientista e pensador». Não, deixaram-no espalhar-se ao
comprido e perder a cara.
Isto realmente custa.
Se este confrangimento
é ou não obra do mecanismo homeostático, isso já não sei dizer.
-----------------------
Adenda, 8/02/2018: aconselho vivamente a leitura da crítica «A Estranha Ordem das Coisas e a bizarra preguiça intelectual de António Damásio» (9/11/2017), por ser mais completa e competente do que esta; e porque satisfaz o espírito académico, não recorrendo a narrativas efabulatórias, como eu tenho o hábito de fazer.
-----------------------
Adenda, 8/02/2018: aconselho vivamente a leitura da crítica «A Estranha Ordem das Coisas e a bizarra preguiça intelectual de António Damásio» (9/11/2017), por ser mais completa e competente do que esta; e porque satisfaz o espírito académico, não recorrendo a narrativas efabulatórias, como eu tenho o hábito de fazer.
Sem comentários:
Enviar um comentário