30/07/18

Moços de recados dos deuses menores marram num carvalhal


A medium-novela do Robles ultrapassou todos os limites do razoável. Pode dizer-se que o falatório à volta do Robles se resume nisto: a mesquinhez, a malvadez, o despudor e a hipocrisia juntaram os trapinhos e viveram felizes para sempre, num belo ménage à quatre. Ora, quando estas quatro criaturas atingem tão elevado grau de intimidade, daí em diante já nenhuma conclusão racional é possível. Passo a explicar.


Para quem não sabe do que se trata: Robles não é um carvalhal, como qualquer espanhol poderia pensar; é um ser humano, representante do BE (Bloco de Esquerda) e vereador da CML (Câmara Municipal de Lisboa); tem-se destacado na luta política pelo direito à habitação e à cidade; tem zurzido na especulação imobiliária e nas leis que a favorecem, nomeadamente a actual lei do arrendamento (dita «lei dos despejos») promovida por Assunção Cristas e outros correligionários do neoliberalismo. Eis senão quando, descobre-se que Robles comprou há 4 anos um prédio de habitação em Alfama e que, por efeito do fenómeno de especulação imobiliária que ele, Robles, tem combatido ao nível do púlpito político, o valor do edifício no mercado imobiliário quintuplicou. Perante este facto, todos aqueles que foram cúmplices ou apoiantes da «lei dos despejos» (e também umas quantas figuras de esquerda) pedem a demissão de Robles. Como brinde, acusam o BE de ser igual àqueles que critica, isto é, de apadrinhar especuladores imobiliários.

Mas as acusações verrinosas não ficam por aqui: alastram como bomba de estilhaços, disparando em todas as direcções. Assim, por exemplo, vem à liça um moço de recados dos deuses menores que dá pelo nome de Nuno Ramos de Almeida, para dizer que «a parte mais fascinante deste caso, é a Habita dizer que nada tem que ver com o Bloco» – afirmação tão despropositada no meio de toda a gritaria em curso, que fico sem saber exactamente o que Nuno Ramos de Almeida pretende com isto, mas parece-me ser ironia pura e simples, temperada de remoques e azedumes. Para quem não sabe do que se trata: a Habita é uma associação cívica que reúne moradores dos bairros de lata, moradores dos bairros do centro de Lisboa agora em dificuldades, pessoas incapacitadas de continuarem a pagar os empréstimos que contraíram para compra de habitação, famílias que foram despejadas, investigadores científicos, arquitectos, sociólogos, activistas de todos os quadrantes de esquerda (desde anarquistas até «socialistas», passando, claro está, por alguns militantes do BE) e, tanto quanto me é dado perceber no terreno (e não do fundo do meu sofá, como faz Nuno Ramos de Almeida), moradores que têm um ódio de estimação a todos os partidos e outros que votaram nos partidos de centro e centro-direita mas que agora, aflitos e despejados, se juntam à luta pelo direito à habitação tal como ela vem definida na Constituição. Só o milagre da estupidez (ou da cupidez) permite saltar do caso Robles para acusações insidiosas a uma associação cívica como a Habita, caracterizada precisamente pela sua lisura, diversidade, independência e autonomia.

Por diversas vezes a associação Habita tem ajudado os moradores em dificuldades a organizarem-se para, por exemplo, irem falar com os responsáveis políticos no Parlamento e nas câmaras municipais. Face aos acontecimentos descritos acima, é bem possível, daqui para a frente, que esses moradores, ao cruzarem-se com Robles nos corredores da CML, passem a ver nele um representante dos proprietários imobiliários; que deixem de olhá-lo como um paladino da luta pelo direito à habitação e à cidade. É uma chatice o pobre do Robles passar a ser visto dessa maneira, claro está, mas são assim mesmo as relações humanas, não há nada a fazer. Chama-se a isto um conflito de interesses. Não restam dúvidas de que não é um conflito de interesses caído do céu, qual piano atirado por São Jorge, para esmagar o vereador e o partido a que ele está ligado – foi o próprio Robles quem atirou o piano. O que conta em política não são as intenções, mas sim os efeitos objectivos das acções. Tal como não restam dúvidas de que quem criou a onda desatinada de especulação imobiliária nos últimos anos encontrou aqui a oportunidade de se vingar ferozmente de quem os tem combatido e denunciado.

Podem perguntar-me: então, face a este conflito de interesses, não acha que Robles devia demitir-se? 

Lastimo muito fazer-vos a desfeita, mas recuso responder a este caso particular, enquanto o princípio geral não for esclarecido e aplicado. Quero eu dizer: quando todos (= TODOS) os deputados da Assembleia da República com conflitos de interesses forem demitidos (advogados envolvidos em negócios de porta giratória entre o Estado e as empresas privadas, patos-bravos, novos-ricos, especuladores financeiros, administradores de fundações, consultores, administradores ou accionistas de parcerias público-privadas, agricultores subsidiados, vendedores de fármacos, de hospitais privados e de glifosatos, etc.), quando altas figuras políticas como Cavaco Silva, que usam informação privilegiada para jogarem na bolsa e quando o banco de que são accionistas vai à falência armam um torvelinho para ser o contribuinte a pagar os prejuízos do banco, quando toda essa canalha for demitida e processada judicialmente, quando se esclarecer porque carga de água (ou de interesses) vai António Costa a um programa televisivo de humor dizer que sim, que está toda a gente contra a perfuração petrolífera na costa portuguesa mas ela vai para a frente por vontade do Governo e acabou-se, não me chateiem mais com essa história, enfim, quando se fizer a limpeza de toda esta badalhoquice, então sim, ouvir-me-ão dizer: alto lá, não fechem ainda a porta, falta pôr o Robles no olho da rua.

Acessoriamente: este burburinho vem mesmo a calhar para entreter o público, de forma a não se dizer nem um pio acerca do plano de exploração mineira, petrolífera e fracking nos fundos marinhos portugueses, que o Governo quer fazer passar de fininho precisamente a partir de amanhã, juntamente com mais não sei quantos projectos terríficos, como o da Celtejo, o da Sonae, o loteamento da Quinta dos Ingleses, a renovação do licenciamento dos produtos químicos da Solvay e sei lá mais o quê (se não acreditam em mim, consultem o site governamental http://participa.pt). E... querem apostar em como existe um sem-número de ministros, autarcas, deputados, dirigentes políticos e moços de recados de deuses menores envolvidos em todas essas tramóias? E em como o que está em causa não são os «modestos» lucros à escala Robles, mas sim centenas de milhões, ou mesmo milhares de milhões?

Sim, demitam o Robles, mas, para evitar oportunismos mesquinhos, só depois de uma boa metade da Assembleia da República ter ido à vida e depois de impedirem todos os responsáveis políticos envolvidos em conflitos de interesses, que no limite têm como consequência, por exemplo, a destruição do Serviço Nacional de Saúde.

Menos acessoriamente, falta dizer o essencial: quem vendeu o prédio a Robles foi a Segurança Social, que teria a obrigação de, em vez de desbaratar o seu património, pô-lo ao serviço da habitação social. Porque será que todos esses moços de recados que andam por aí a coscuvilhar se esqueceram deste «pequeno» pormenor? Serão eles os mesmos que advogam a expurga do património da Segurança Social?

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[foto extraída de «Bar do Alcides»]
[declaração de desinteresse: não sou nem fui membro do BE nem de qualquer outro partido; não tenho nem nunca tive qualquer espécie de património, rendas, tenças, lucros ou dividendos]

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