24/11/25

O 25 de novembro e as forças da ordem

 


Durante várias décadas a elite política portuguesa instalada no poder teve o bom senso de não levantar demasiadas ondas quanto ao 25 de novembro de 1975 – o golpe militar que pôs fim ao PREC (Processo Revolucionário em Curso, 1974-1975). Este ano, porém, a direita mais descerebrada fez questão de celebrar a data, soprar as velinhas e cantar parabéns a si mesma. Esta iniciativa, por sua vez, desafiou um leque variado de autores a analisarem mais a fundo os acontecimentos históricos de novembro de 1975.

Incapaz de me aventurar na investigação histórica e documental da questão, tenho de me contentar com a intuição simplória que me caracteriza, enunciando, de forma muito sintética, em 20 palavras, o essencial dessa reviravolta histórica: o 25 de novembro de 1975 é o momento em que o aparelho repressivo foi reinstaurado e reinvestido de autoridade.

Para se compreender melhor o que pretendo significar, recuemos um pouco. As pessoas que a partir do dia 25 de abril de 1974 ousaram tomar em mãos a organização da sua própria vida, discutir as possíveis soluções para a construção de um futuro melhor e pôr em marcha uma transformação social radical, foram as mesmíssimas pessoas que ainda na véspera não ousavam sequer comentar no café de bairro coisas tão simples como o preço dos transportes públicos (onde os havia…).

Como foi isto possível? Como se compreende que, no espaço de 24 horas, fossem adoptadas atitudes tão opostas entre si? Na minha opinião (sintética, repito, e por isso potencialmente limitada) este salto qualitativo deveu-se à paralisação do aparelho repressivo do Estado. De um dia para o outro, passou a ser possível exprimir ideias, anseios e projectos de vida, sem por isso perdermos o emprego ou sermos presos e torturados. As paredes deixaram de ter ouvidos. O patrão foi fechado à chave na casa de banho, os deputados foram fechados à chave no edifício do Parlamento, enquanto os trabalhadores se apoderavam do produto (e do valor) do seu próprio trabalho, dos processos de trabalho e dos fins da produção. Não havia nenhum aparelho repressivo para os fazer «regressar à ordem».


As espingardas (os soldados) passaram a estar ao lado do povo, e não contra ele; a polícia e a GNR não só se fizeram ausentes, como chegaram ao ponto de amuar, paternalmente convencidas de que assim estariam castigando a população. Foi isso que tornou possível derrubar, de forma aparentemente tão fácil, as hierarquias, o Estado, a «autoridade».

Com o desaparecimento das «forças da ordem», as hierarquias do Estado (isto é, o próprio Estado) começaram a definhar – sem etapas intermédias!

Só após a reinstauração do aparelho repressivo foi possível à elite política, ao sr. Frank Carlucci, ao Grupo dos 9, a Mário Soares, a Sá Carneiro e a Álvaro Cunhal instalar aquilo que, de resto, eles próprios tinham projectado desde o início: um Estado liberal, democrático-representativo, de direito.

Gostaria de abordar um segundo factor essencial: em 25 de abril de 1974 ainda havia muita gente analfabeta e a maioria do povo tinha uma educação política próxima do zero, ou da apatia (exceptuando os lugares-comuns e mitos induzidos pelo Estado Novo e pela Igreja). Esta aparente fraqueza revelou-se afinal uma força formidável.

Não ter educação política significava não estar na posse de um conjunto de fórmulas que, além de propor uma interpretação da história e da sociedade em que vivemos, apresenta receitas para a sua transformação. E é neste sentido que a fraqueza aparente de um povo ignorante se tornou uma força arrebatadora que – não fosse a intervenção de um golpe militar contra-revolucionário – teria emergido vitoriosa.

Este quadro circunstancial (analfabetismo e défice de educação política) permitiu que as massas em luta não se perdessem nos labirintos bizantinos do debate teórico e se focassem no essencial: a identificação e defesa dos seus próprios interesses. Esta capacidade de focar os próprios interesses é inata em todos os seres humanos e não carece de aprendizagem (embora possa ser «desaprendida») – chama-se política.

Assisti sobejas vezes, com espanto e admiração, à forma como, no espaço de poucas horas, as assembleias populares tinham a capacidade de identificar os interesses comuns; como, de forma fulgurante, encontravam soluções práticas eficazes e as executavam, à margem ou até contra a burocracia estatal.

Este quadro circunstancial, como é evidente, jamais poderá repetir-se. Mas deixa-nos uma lição acerca da genialidade das massas trabalhadoras e dos malefícios do paternalismo político de certas elites. Quando a torre de marfim insiste em não descer à terra, a massa imensa dos proletários encarrega-se às vezes de derrubá-la.

Nas assembleias populares, os operários, as mulheres, os soldados rasos, podiam não conhecer a distinção teórica entre capital fixo e capital variável, entre mais-valia absoluta e relativa, mas tinham a capacidade de compreender instantaneamente as suas implicações na vida real. Tinham também a desconcertante capacidade de fazer uma coisa considerada pelos teóricos muito difícil: fundir pensamento e acção. Esta capacidade é, a meu ver, a conditio sine qua non para mudar o mundo.

Não é por acaso ou por artifício «artístico» que encabeço o meu blog com esta frase de Almada Negreiros: «Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa: salvar a humanidade».

Mudar o mundo é uma coisa difícil de pensar, executar e teorizar quando temos uma espingarda apontada à nuca. A falência do aparelho repressivo foi uma coisa imprevista, um efeito colateral do golpe militar de 25 de abril. Esquematicamente, podemos dizer que foi esta a sucessão causal dos acontecimentos: golpe militar a 25 de abril → paralisação do aparelho repressivo → PREC.

A reinstauração das «forças da ordem» fez esta sequência inverter caminho. O perigo, agora, passados 50 anos, consiste precisamente em que a reversão se complete, levando-nos a algo reminiscente do pré-25 de abril.

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