07/06/11

Assembleia popular do Rossio - breve sociometria caseira

Comunicação social = Voz do Dono

A comunicação social, que aliás deve passar a chamar-se «A Voz do Dono», tudo tem feito para silenciar alguns dos acontecimentos mais importantes não só da actualidade portuguesa mas também da história mundial. E quando não cala, mente.

No caso da Grécia, a Voz do Dono transmite diariamente os recados do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu. Em compensação, há 12 dias que esconde da opinião pública um facto essencial da vida política grega e até europeia: a Praça Syntagma, em Atenas, encontra-se há duas semanas pejada de gente que expressa a sua fúria e grita «basta». É «apenas» meio milhão de pessoas que não arreda pé; a gritaria dessa massa de gente é brutal; as imagens e os sons da praça encontram-se on-line, como já noticiei anteriormente aqui; mas a Voz do Dono permanece surda, cega e muda.

No caso da «acampada» e assembleia popular do Rossio, a Voz do Dono decidiu ignorá-la, com raras excepções. No entanto as excepções foram mais prejudiciais que benéficas, porque os jornalistas nem se deram ao trabalho de lá ir sondar e publicaram toda a sorte de aldrabices, provavelmente emprenhados de ouvido pelos seus/suas amantes políticos que constantemente enviam recados seminais por telefone, como bem sabe quem já trabalhou numa redacção de jornal.

A assembleia foi classificada pela Voz do Dono (e por alguns blogs igualmente mitómanos) como uma cambada de freaks em festa.

Tenho pena dos historiadores do futuro – ver-se-ão impossibilitados de sondar e avaliar os últimos 35 anos de história portuguesa, deparando-se com milhares de páginas e telejornais carregados de palermices adversas à realidade. A comunicação social tornou-se um castelo de mitómanos. O historiador do futuro ver-se-á perante um hiato de barbárie pré-histórica, visto que não pode confiar na crónica escrita.

Em benefício do público actual e dos historiadores vindouros, aqui vai um pequeno retrato sociométrico das pessoas presentes na assembleia do Rossio.

Retrato sociométrico (caseiro) da assembleia popular do Rossio de Lisboa

A amostra foi concebida e realizada pelo Bilioso Incondescendente, no sábado, 4 de Junho de 2011, durante os trabalhos da assembleia. Esta não foi das mais concorridas, mas ainda assim a amostra é de 169 pessoas (mais de metade dos presentes nesse dia, creio eu), escolhidas propositadamente entre as que se encontravam mais perto da mesa da assembleia, de forma a eliminar os curiosos de passagem.

O inquérito anónimo abarcava: género; idade; nacionalidade, residência; actividade escolar (estudante ou não); situação laboral (empregado, desempregado, precário, reformado); profissão; alguns índices de propriedade (casa própria, carro); laços com a banca (empréstimos bancários, cartão de crédito). O preenchimento não foi assistido, e daí derivaram alguns erros, como se verá adiante.

Género: Em primeiro lugar constatamos que a paridade entre mulheres e homens é perfeita.
Surge um inquirido de sexo indefinido e um transexual.

Nacionalidade e residência:  79% dos membros da assembleia são portugueses; 10% são espanhóis; encontraram-se casos isolados de 1 a 3 pessoas doutras nacionalidades (it, cv, br, fr, mx, ar, hu, be, de, sn). A maioria reside em Lisboa (78%); outros, nas linhas de Sintra, Cascais e Setúbal; algumas pessoas de Castelo Branco para sul, até ao Algarve; há residentes (raros) noutros países. É provável que boa parte dos residentes estrangeiros (nomeadamente os espanhóis) sejam estudantes Erasmus, mas não nos lembrámos de introduzir atempadamente esse factor no inquérito.

Vejamos agora dois factores que deitam por terra as mitomanias da Voz do Dono:

Dados etários:
média das idades = 29 anos
média de 90% da população (retirando os extremos) = 32 anos
mediana das idades = 29 anos
moda (idade mais frequente) = 28 anos

Como se pode ver no gráfico por grupos etários, não se trata de forma alguma de um bando de «putos» em férias, mas sim de uma distribuição variada de idades, à excepção dos grupos etários acima dos 61 anos.

Profissões: também neste aspecto as mitologias da Voz do Dono caem por terra.
A profissão mais recorrente (moda estatística) é a de docente, bolseiro ou investigador.
Contámos 67 profissões diferentes que não iremos discriminar aqui para não tornar isto enfadonho, mas que incluem os mais diversos sectores; fraca representação operária e agrícola, mas ainda assim presente; grande representação do mundo audiovisual, cineastas, fotógrafos (não de passagem); bastantes arquitectos e paisagistas; 2 jornalistas.
Apenas 1 médico e 1 advogado, o que me parece muito típico da ausência de envolvimento destas categorias profissionais na vida política portuguesa, ao longo de quase um século – é praticamente impossível encontrar um advogado na vida cidadã e democrática, a não ser que lhe ofereçam um cargo político.
27% dos inquiridos estudam (não distinguimos aqui entre estudantes trabalhadores ou não). Como se vê, nem pouco mais ou menos a assembleia do Rossio se parece com uma RGA (reunião geral de alunos).


Situação no mercado de trabalho:
desempregados: 18%
precários: 33%
reformados: 1%
estudantes:  27%
trabalhadores-estudantes: 7%

Propriedade e finanças:

Convém lembrar que o facto de o preenchimento do inquérito não ter sido assistido introduz algumas dúvidas de que falarei adiante.


estudantes precários desempregados
cartão de crédito 33% 27% 29%
empréstimo bancário 13% 30% 16%
carro próprio 13% 25% 23%
casa própria 26% 39% 16%

Considerações pessoais

[versão revista em 23-06-2011]

Género:
A paridade entre homens e mulheres é perfeita. Mas... não se entusiasmem – esta realidade pertence apenas à assembleia popular do Rossio, não pode ser linearmente extrapolada para outros ambientes socioculturais de Portugal.
Tenho de reconhecer que coloquei mal a questão, do ponto de vista das ideologias e moralidades actuais – perguntei pelo sexo e não pelo género. Entretanto convém referir que classifiquei como género indefinido uma resposta deixada em branco na secção «sexo»; outra, assinalada com um «T» na mesma secção, interpretei-a como «transexual».

Relações laborais:
Muitas pessoas deram respostas múltiplas, apresentando-se como desempregadas e precárias. Inseri estas respostas na categoria «desempregado». Adopto portanto o princípio de que um precário pertence à categoria dos «desempregados efectivos». Esta posição é contrária à do último Census, que encaixou os precários na categoria das pessoas com emprego (o que me parece indefensável, técnica e politicamente).

Importa notar o seguinte: desempregados e precários juntos totalizam 51% dos inquiridos.
Considero este dado significativo; mas não esqueço que estas pessoas são as que naturalmente têm mais disponibilidade e motivação para comparecerem às assembleias populares.

Existe actualmente um regresso a certos conceitos medievais – o precário, dentro do regime político e económico em que vivemos, encontra-se em posição semelhante à do jornaleiro que todos os dias às 7 da manhã tinha de ir bater à porta do latifundiário para saber se nesse dia tinha trabalho ou não.
Também ficamos sem saber se alguns professores precários (anuais) se terão declarado como empregados ou como precários.
Reconheço que não introduzi no inquérito uma opção importante: a dos que, por vontade própria (e não imposta pelo mercado de trabalho) trabalham intermitentemente por conta própria, a recibos – situação que conheço muito bem por ser a minha há longos anos.

Várias pessoas, na secção «profissão», declararam-se «estudante»; a seguir, verificando que existia uma secção «estudante», riscaram (ou não) a resposta anterior e assinalaram a situação de estudante. Temos aqui uma interessante confusão entre os conceitos de profissão e de estudo; por outras palavras: entre a noção de vínculo laboral no mercado de trabalho e a de aprendizagem da disciplina de trabalho. Para mim, a escola moderna é sobretudo um local de aprendizagem da disciplina do trabalho e do mercado (e só acessoriamente um local de aquisição de conhecimento).
Conheço casos de pessoas que fizeram da situação de estudante uma arte permanente de viver, trabalhar e sustentar-se (beneficiando de bolsas durante décadas a fio), mas são casos raros.

Habitação:
Na secção «casa própria» constatei problemas de entendimento. A expressão «casa própria» opunha-se no passado a «casa arrendada» – estabelecendo a distinção de laços específicos de propriedade e mercado. Creio que muitos jovens confundiram a expressão, pensando que lhes estávamos a perguntar se viviam em casa dos pais ou se eram independentes (dos pais). Admito que tenha havido aqui erro meu – deveria ter escolhido uma expressão menos dúbia.
Resultado: temos de duvidar dum dos dados que mais saltam à vista no quadro estatístico: a elevada percentagem de estudantes com «casa própria».

Fica também clara a falta que faz aqui o esclarecimento sobre os níveis de rendimento e propriedade da família – mas neste aspecto particular foi opção minha não importunar os inquiridos com perguntas desse tipo.

Além das fraquezas e erros evidentes do próprio inquérito, o conjunto de equívocos nas secções de emprego, profissão e propriedade também deixa em aberto a hipótese de um défice de consciência política e pessoal.

Propriedade e finanças:
As perguntas sobre as relações com as instituições financeiras tinham um fito: verificar o grau de enleamento das pessoas com as instituições financeiras.
Este fito nasceu da minha perplexidade, ao longo dos debates, perante a ilusão demonstrada por muitas pessoas segundo as quais a Troika (ou pelo menos o FMI) é boazinha e vem ajudar a gente.
O meu objectivo seria o de indagar a consciência da correlação entre a manietação pessoal imposta pelas instituições financeiras, e a manietação do país imposta pelas mesmas.
A expressão «ditadura financeira», formulada no projecto de manifesto, expressa esta manietação – mas note-se que esta parte do manifesto suscitou alguns pruridos numa parte da assembleia.
Tenho de reconhecer que não criei instrumentos de inquirição suficientes para esclarecer a dúvida.

Salta à vista o seguinte:
  • desempregados efectivos (desempregados+precários) com cartão de crédito: 56%
  • desempregados efectivos com dívidas aos bancos: 46%
Se considerarmos que os bancos não cedem empréstimos sem garantias (hipoteca de outras propriedades, emprego/salário estável, etc.), temos a clara medida da decadência do mercado de trabalho nos últimos anos – muitos dos trabalhadores que ainda há poucos anos podiam dar garantias aos bancos foram empurrados para situações de grave instabilidade financeira. Temos aqui uma prova clara de como a política neoliberal exigida pelas empresas financeiras (nomeadamente na hiperliberalização do mercado de trabalho) concorre para a bancarrota das mesmas.

Muita coisa fica por inquirir. Por exemplo, não se pode aqui detectar a correlação entre o tipo de propostas apresentadas à assembleia e a origem social e grupo etário dos proponentes – coisa que a mim, particularmente, me interessava inquirir objectivamente, pois nem sempre o expectável coincide na realidade, como se viu.

Muitas correlações gostaria de indagar. Mas eu não sou investigador nem bolseiro, não domino a ciência estatística nem tenho uma equipa de precários a trabalhar nos dados estatísticos... portanto quem quiser ofereça-se.

Finalmente, o interesse suscitado por este inquérito levanta outra pergunta: alguém se terá dado ao trabalho de fazer inquérito semelhante nos outros países (Espanha, Grécia, etc.) onde a população ocupa as ruas em pé de guerra?

8 comentários:

  1. Extremamente útil! Aguardo por estudo mais exaustivo (e com maior amostragem) na primeira oportunidade.
    Obrigado.

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  2. Achei o inquérito muito útil, aliás desde que o vi a circular e depois quando o preenchi.

    Não posso é concordar com a análise que faz no último parágrafo. Vou dar-lhe o meu exemplo, só posso falar por mim. Eu sou precária, sempre fui, neste momento sem qualquer actividade regular. Ou seja, estou também desempregada.
    Tenho pequenos biscates que me dão uns trocos, mas não constituem uma ocupação normal de freelancer.

    Só se tivesse uma actividade regular, que me permitisse subsistir é que poderia considerar-me freelancer e nesse caso teria dito trabalhadora independente.

    Também podia ter posto estudante, porque na realidade aproveito o tempo para frequentar cursos pós-laborais e continuar a formação.


    Ou então define-se desemprego como no INE e exclui-se qualquer pessoa que tenha trabalhado 1h no último mês. Só que isso só serve para iludir os números, não tem qualquer relação com a realidade.

    A minha conclusão é outra: é a de que seria necessária maior clarificação do que é cada um dos estatutos. E sim, um estudante que vive fora de casa pode precisar de um emprego part-time para sobreviver e se não o tiver é simultaneamente estudante e desempregado.
    As nossas vidas é que são bem mais complexas que simples cruzinhas...
    E isso não faz de nós iletrados!

    E já agora, porque raio é que, a uma resposta "transexual", o melhor que lhe ocorre é perguntar se é provocação militante?

    Ou bem que leva as respostas a sério ou então as pessoas sentem-se gozadas!

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  3. Bilioso Incondescendente08/06/11, 00:01

    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  4. Os historiadores do futuro, os que sejam sérios, também vão consultar os blogues.
    Bom trabalho!
    JR

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  5. Rui,

    Se disponibilizar a base de dados e o questionário usado terei todo o gosto em fazer mais algumas análises e devolver os resultados para publicação neste blog (se assim entender).

    JA

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  6. JA,
    não sei com quem estou a falar nem me forneceu o seu endereço de contacto.
    Estou disponível para ceder os dados (em Excel e em Access), com algumas pequenas excepções...

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  7. Rui,
    Pensei que pudesse disponibilizar os dados online (por exemplo, usando isto: http://www.box.net/)
    Se não o quiser fazer, diga-me para que endereço de email devo escrever.

    JA

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  8. Olá! Fiquei absolutamente encantado com o teu texto! muito obrigado pelo estudo realizado e que nós citámos no nosso último artigo.

    Um bem-hajas

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