12/09/13

Uma política para as artes? (7)

[continuação da série sobre artes e cultura; ver artigos (1), (2), (3), (4), (5), (6)]

A experiência adquirida ao longo das últimas décadas mostra que, apesar de tudo o que diz a maledicência tão comum na cultura portuguesa, é possível desenvolver uma política útil de apoio à criação artística e os seus resultados podem atingir um nível notável. Infelizmente o apoio à divulgação internacional desses resultados não foi o devido, deixando isolados quer os artistas quer o próprio esforço de financiamento público.
É preciso ter em conta que o resultado dos apoios públicos pode (consoante as circunstâncias) levar anos a revelar-se.
Tentemos sumariar as linhas gerais do que ficou dito nas secções anteriores e esboçar algumas conclusões genéricas.


Distinção entre arte mainstream e arte de vanguarda (resumo e conclusão)

A arte mainstream caracteriza-se pela presença de um poder económico e organizativo. Este poder é exterior ao corpo de pessoas que produz a obra; é ele que detém os meios de produção; é ele que, em última instância, decide ou veta os conteúdos, as formas, a estética, o mercado a que se destina a obra; é ele que controla a transformação do valor artístico em valor monetário ou financeiro.
A arte vanguarda, em princípio, não se sujeita a esse poder; procura gerir-se a si própria – por isso é potencialmente subversiva. Caracteriza-se também pela aposta na experimentação e no risco.
O apoio financeiro e institucional às artes deve incidir sobre a arte de vanguarda e respectivas actividades experimentais.
Se admitirmos que o Governo atribua apoios financeiros à agricultura, à indústria, ao comércio, ao turismo, temos de admitir que faça o mesmo em relação à indústria das artes mainstream e entertainment. Sendo o modo de produção semelhante em ambos os casos, os apoios do Ministério da Cultura não deveriam servir para favorecer negócios privados.


O problema da memória (resumo e conclusão)

Uma das prioridades de topo a considerar é a protecção da memória colectiva. Instituições como a Biblioteca Nacional, a Torre do Tombo, a Cinemateca Nacional, os museus, as salas de teatro com condições plenas de exibição, etc., não podem ser diminuídas nas suas capacidades e dotações orçamentais. A perda de memória implica a morte cultural; sem memória colectiva não há produção actual.


O problema dos limites de verba (resumo e conclusão)

Um dos principais problemas que enfrentamos está na magreza das verbas disponíveis. Um orçamento da cultura anoréctico vomitará sempre carradas de injustiçados – se não forem uns serão outros e vice-versa. O que de mais estúpido se pode fazer nesta situação é desatarem todos à batatada entre si. O que de mais inteligente se pode fazer é promover uma campanha sistemática, contínua, prolongada, de debate sobre os limites ridículos do orçamento para a Cultura, numa linguagem que toda a gente entenda – e não numa linguagem destinada a ganhar pontuação académica.


Sobre os critérios de atribuição de apoios (conclusões dispersas e incompletas)

O grande problema, aqui chegados, é que nada no domínio das artes pode ser definido segundo uma fórmula matemática infalível. Apesar de termos tentado apresentar definições claras em relação a vários aspectos gerais e abstractos da produção artística, na prática há que ser muito cauteloso com a sua diversidade.
Feita esta ressalva, vejamos algumas conclusões gerais, postas por nenhuma ordem em especial:
  • Os apoios à produção artística com dinheiros públicos do orçamento da Cultura devem incidir preferencialmente sobre projectos e autores de vanguarda e experimentais, em prejuízo dos projectos e autores de cariz comercial ou mainstream (encaminhando estes, se necessário, para outra tutela).
    Nota importante: há casos em que a natureza do projecto não encaixa no critério aqui defendido, mas a falta de apoio poria em causa a memória colectiva. A título de exemplo: uma ópera clássica implica enormes meios de produção e investimentos de capitais e raramente conseguirá gerar receitas de bilheteira suficientes para cobrir os custos. [Nota: Estamos a falar de Portugal, não de outros lugares no mundo com plateias mais vastas.] O Ministério da Cultura deve apoiar estes casos – ainda que eles estejam ligados ao negócio privado –, eventualmente tentando promover formas alternativas de produção desses projectos.
  • Um dos factores que mais deve contar para a atribuição de apoios é a continuidade do trabalho. Um artista (ou grupo) que durante um período razoável mantém um índice de actividade e produção artística apreciável e contínuo não pode ser empurrado para o abandono de actividade por falta de meios técnicos e de subsistência; não pode ser apoiado ano sim, ano não, sem sofrer transtornos profundos na sua capacidade produtiva e no seu próprio desenvolvimento artístico.
  • O critério quantitativo deve ser completamente arredado. Embora o ponto anterior pareça quantitativo, na realidade o que ele interroga são os métodos e as práticas de trabalho artístico. Não faz qualquer sentido condicionar os apoios à quantidade de obras produzidas.
  • O critério de bilheteira ou de audiência – também ele quantitativo – deve ser decididamente abandonado duma vez por todas na atribuição de apoios. É completamente absurdo, para não dizer maldoso e mesquinho, sugerir que os artistas possam gostar de produzir trabalho para o esconder na gaveta. Muito pelo contrário, quem deve ser posto em causa perante o insucesso de bilheteira ou audiência devem ser os programas de apoio à divulgação e de formação e ensino na área das artes.
  • O critério «qualitativo» (artístico ou estético), por seu turno, só pode ser encarado como um vírus mortal. Julgar a qualidade artística do trabalho é um encargo vindouro, não um encargo actual. Na impossibilidade duma definição objectiva actual, a introdução deste critério resultará fatalmente subjectiva – isto é, favorecedora de sujeitos particulares.
    A imposição do critério da qualidade artística, sendo objectivamente impossível na actualidade, acaba por deslizar para a instituição de estratégias propagandísticas ao serviço do regime ou dos interesses privados de mercado.
  • [acrescentado em 14/09/2013:] A atribuição de apoios em função da ponderação da quantidade de prémios recebidos por um autor ou grupo é perversa. Em primeiro lugar, na maioria dos festivais a atribuição de prémios remete para o critério de avaliação actual da «qualidade artística», cujos perigos já foram apontados. Em segundo lugar, é um método cobarde: remete para outros júris a responsabilidade de avaliação do júri actual. Em terceiro lugar, quase sempre avalia obras isoladas e não a continuidade do trabalho, que é um dos principais critérios aqui defendidos.
    Uma parte dos festivais que atribuem prémios fazem parte do circuito mainstream ou andam nas suas margens; os custos de inscrição são frequentemente exorbitantes para os autores e grupos independentes. Em áreas pouco dadas à indústria das artes (por exemplo a performance) este critério pode parecer interessante; mas nas áreas dominadas pela indústria (cinema, música, etc.) resulta em mais um expediente para esmagar os autores independentes e de vanguarda, reforçando o círculo vicioso da premiação. O torneio medieval em que se procuram campeões não é a forma correcta de apoiar as artes do século XXI.
    De resto, num mundo em que o presidente dos EUA pode ganhar o Nobel da Paz, estamos conversados quanto ao valor e significado dos prémios.
  • Os júris encarregados de apreciar os projectos têm de dar prova de seguirem com atenção a produção artística, pelo menos na área que estão encarregados de avaliar. Seria inadmissível, por exemplo, que um membro do júri aprovasse o apoio a uma peça de teatro e depois não a fosse ver; igualmente inadmissível seria não ver um projecto que foi chumbado mas que encontrou outros meios de ser total ou parcialmente levado por diante.
  • Atribuir fundos de apoio à criação e não reservar meios financeiros e institucionais para a divulgação dentro e fora de fronteiras é mais ou menos o mesmo que cozinhar uma caldeirada rica de marisco e em vez de a servir à mesa ir despejá-la no caixote do lixo. É fundamental que as duas vertentes (produção artística e divulgação) caminhem a par e com o mesmo vigor.
  • Os projectos mistos que incluam iniciativas pedagógicas, de participação descentralizada das populações, ou outra iniciativa semelhante devem obter prioridade no apoio.
  • A dado momento os governos decidiram forçar a criação de «produtoras», fazendo passar uma grande parte dos subsídios por essas entidades. Ora isto é descaradamente uma política que força a prevalência do modo de produção capitalista nas actividades apoiadas pelo Estado. O efeito desta directiva a longo prazo só pode ser o de atrapalhar, empobrecer e habituar à dependência os artistas de vanguarda.
    Se alguma regra houver a estabelecer aqui, será precisamente a inversa: um artista que está na dependência de uma «produtora» não deve candidatar os seus projectos a apoio financeiro do Estado – deve ser a «produtora» a desenrascar as verbas necessárias no mercado capitalista a que destina o produto.
    Nalguns casos aconteceu que grupos de artistas que estavam habituados a trabalhar juntos criaram a sua «produtora», como expediente burocrático para aceder aos subsídios. Nestes casos o estrago não foi tão grande, mas ainda assim há um factor importante a ter em conta: foram obrigados a adoptar formas de organização que lhes foram imposta de fora e os impedem de encontrar as soluções que mais lhes convêm.
    Por outro lado, a experiência comprova que uma empresa dedicada à gestão capitalista da produção artística acabará a prazo por obter vantagens esmagadoras na disputa com artistas que estão mais interessados em ocupar-se na sua arte do que na luta financeira. Esta fragilidade dos artistas (isolados ou agrupados) é evidente, desde o início, no que respeita aos apoios com fundos europeus.
  • É justo que o Estado exija uma prestação de contas rigorosa sobre a utilização dos apoios financeiros e institucionais atribuídos.
  • Uma das coisas mais destrutivas que se pode fazer na área da cultura é uma política de ziguezagues. Uma vez definidos os critérios e linhas gerais de apoio às artes, a sua implementação deve seguir uma linha coerente de continuidade, ainda que sujeita a sucessivos apuros. É aceitável, por isso, que o apoio às diferentes áreas e subáreas não avance ao mesmo ritmo logo de início.
  • Cada área da criação artística tem as suas especificidades – nomeadamente no que se refere à dificuldade de estabelecer definições e critérios.
    As artes de autoria individual (tipicamente a escrita e a pintura, por exemplo) colocam problemas de critério particularmente difíceis e exigem uma reflexão mais aprofundada das linhas gerais aqui propostas. O princípio da impossibilidade de aplicação de critérios de qualidade artística no apoio à criação dificulta ainda mais o estabelecimento de critérios no caso da autoria individual. No entanto as novas tecnologias (publicação na rede pública, etc.) podem ajudar a iniciar um caminho de apoio não financeiro nalgumas áreas (por exemplo na escrita) enquanto o estudo e debate da questão não chega a uma conclusão.
    Nas áreas de trabalho colectivo e pluridisciplinar – por exemplo, dança, performance, teatro e cinema – já existe experiência suficiente para definir rapidamente alguns critérios e métodos de apoio. É muito mais fácil identificar um percurso de investigação e trabalho fora do mainstream nestes casos do que no caso da autoria individual – por isso não vemos grandes motivos para hesitações na rápida instituição de apoios e critérios para essas áreas.
  • A remissão do encargo dos apoios estatais para as autoridades regionais – uma inovação introduzida pelos governos neoliberais – não me parece favorecer a definição de uma política coerente e contínua. Tão-pouco me parece dar garantias de combate aos vícios de amiguismo e favorecimento (antes pelo contrário), e menos ainda terá capacidade para promover uma ampla divulgação do trabalho artístico a nível nacional e internacional. Apesar desta impressão, admito que a questão deva ser estudada e debatida, mas não que sirva de empecilho à instituição duma política geral para as artes.
  • A divulgação internacional tem sido praticamente nula, à excepção de meia dúzia de autores, alguns deles ligados à indústria das artes. Mas a divulgação interna também não foi brilhante: após meses de trabalho investidos na construção duma peça de vanguarda, a obra é exibida em 1 ou 2 lugares em Portugal e a seguir cai no esquecimento.
  • Um dos erros cometidos durante a melhor época de apoio às artes foi a ideia (talvez importada do meio académico) de que cada projecto artístico proposto devia ser outro trabalho – isto é,completamente distinto dos anteriores. Assim a lógica de incentivos à criação artística introduz um factor perverso: os autores são obrigados a saltitar trimestral ou semestralmente de assunto em assunto, ziguezagueando duma linha de investigação para outra, sem nunca levarem nenhuma até ao fim. Obrigar os artistas a passarem de um assunto para o outro como moscas tontas é uma estratégia altamente destrutiva, mais adequada ao Facebook e às artes mainstream do que às artes de vanguarda. Se um autor quer passar 5 anos a investigar uma determinada via de trabalho e experimentação, é isso mesmo que deve ser apoiado.
    Pela mesma ordem de razões, o tempo de desenvolvimento e os prazos de apresentação de um projecto devem ser decididos pelo autor, e não pela agenda burocrática de um ministério (embora com limites impostos pelo bom senso e pelas normas gerais de orçamentação pública, já se vê).
  • Certas universidades do Brasil obedecem a um princípio ambulatório: o trabalho académico feito pelos investigadores dentro das universidades deve no período seguinte ser levado e aplicado junto das populações, num ciclo dentro e fora que os mantém em contacto permanente com a população. Princípio semelhante deveria ser adoptado no apoio aos projectos de criação artística, indo mais além da simples divulgação das obras – de resto, mesmo em Portugal, alguns agrupamentos periféricos (isto é, fora das grandes cidades) de produção e criação já há tempo adoptaram este método como condição privilegiada de apoio aos criadores. Este método tem vantagens evidentes mas deve ser aplicado com cautela, para não inviabilizar e ostracizar projectos que não poderiam ter uma vertente pedagógica ou qualquer outro tipo de abertura à participação exterior.


Esta colecção de pontos é um modestíssimo contributo para o início de um debate que, idealmente, deveria resultar numa proposta de política para as artes. São uma gota no oceano, mas tenho esperança de que contribuam para alicerçar o debate em bases muito menos confusas e líricas do que é costume.


[correcções e rectificações em: 
14/09/2013]

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