20/06/11

His master's voice

[artigo em fase de construção, adiantando-se aqui o rascunho pela urgência do tema e por falta de tempo para o concluir duma assentada]

Com um misto de alívio, angústia e esperança, vejo um número crescente de pessoas descobrirem que a comunicação social, hoje em dia, não passa de uma máquina de propaganda ao serviço do regime, exactamente no mesmo sentido em que o era durante os tempos do fascismo – ou, se preferem, do Estado Novo –, embora o faça por vias completamente diferentes.

Alívio, porque a tomada de consciência do papel manipulador, mitómano, engajado, da Voz do Dono representa um avanço notável da consciência política individual.

Angústia, porque este salto qualitativo da consciência é correlativo ao crescendo monstruoso da reacção do poder político, financeiro e neoliberal à contestação popular. O poder instituído muscula-se, baixa a máscara, chama às armas todas as forças militarizadas (dentro do coração das democracias mais «avançadas» do mundo!) e ideológicas para reprimir e iludir o descontentamento popular.

Mas, sejamos realistas, na maioria dos países europeus o descontentamento e a fúria populares não atingiram ainda uma massa crítica que permita falar dum processo revolucionário em curso. No entanto, este processo está à vista, parece iminente, aflora pontualmente em certas regiões que constituem um rastilho para toda a Europa. O poder dominante procura a todo o custo evitar que o público seja informado do que se está a passar na Espanha, na Grécia, na Islândia e noutros lugares da Europa. A Voz do Dono da Europa, no seu tradicional chauvinismo eurocêntrico, que pressupõe uma distinção abissal entre «nós» e «eles», ainda admitiu durante algum tempo que o público tomasse conhecimento dos pormenores desse acontecimento «exótico» que são as revoluções democráticas do Norte de África; mas agora até isso é silenciado.

O mecanismo da Voz do Dono


Como funciona essa transformação da informação em propaganda do regime? Como é possível que haja censura e que os mecanismos de informação se tenham transformado em máquinas de propaganda do poder instituído, numa sociedade oficialmente pluralista e sem gabinetes de censura?
Tentarei explicar este fenómeno resumidamente – não através de sofisticadas retóricas e filosofias, mas sim através da experiência pessoal e directa.

O ambiente das redacções
Há cerca de duas ou três décadas, a redacção dos jornais tornou-se um lugar repleto de jovens estagiários (que, diga-se de passagem, trabalham como escravos mal pagos 9-12 horas por dia), donde foi expulsa a massa de profissionais seniores que costumava lá estar a vigiar e ensinar uns poucos estagiários.

Por conseguinte, temos em primeiro lugar que o complexo trabalho técnico, profissional e ético dos jovens jornalistas deixou de ter tutores. O estagiário encontra-se aparentemente entregue a si próprio.

Em segundo lugar, vemos um local de trabalho cheio de jovens ainda pouco seguros de si mesmos, maleáveis, fáceis de controlar e influenciar, desejosos de ganharem currículo a todo o custo, para poderem fazer carreira num mercado de trabalho cada vez mais superlotado. A cada trimestre as escolas produzem dúzias de formandos, e cada um destes é uma ameaça fatal ao jovem jornalista estagiário que já conseguiu uma cadeira em frente duma secretária soterrada em pilhas de recortes de jornal e terminais de computador.

Em terceiro lugar, a corrosão economicista das empresas de comunicação levou a que o jornalista deixasse de ser repórter, passando a ser mera correia transmissora de «notícias» e «verdades» provenientes duma misteriosa caixa negra, situada algures em parte incerta. O redactor (chamem-lhe jornalista ainda, se quiserem, mas de facto ele já não passa de relator) é um funcionário multitask que permanece sentado horas a fio diante de um teclado de computador, escrevendo e fazendo consultas na Internet, ao mesmo tempo que comunica frenética e ininterruptamente por telefone, nunca tirando o auricular do ouvido durante o dia inteiro.
Através desse telefone, as «fontes» bombardeiam-no com «notícias», recados, encomendas, «dicas». Sondam-no, e ele sonda-as. Fazem-no crer-se um eixo da maior importância na rotação do mundo. Negoceiam, aliciam-no, seduzem-no, trocam notícias por favores e favores por notícias. E o nosso jovem jornalista venera essa «fonte» como se dela jorrasse a palavra divina, todo-poderosa, omnisciente e vingativa.

Este estranho trato de veneração das «fontes» chega ao ponto produzir cenas como esta: o jornalista sai à rua, dirige-se a uma praça onde um conjunto de pessoas se manifesta e discursa através de altifalantes; o jornalista está lá, pode ouvir o discurso se quiser; mas no preciso instante em que o discurso começa, o jornalista vira costas ao acontecimento e dirige-se a um canto mais sossegado, onde recebe o telefonema de alguém que lhe descreve a «realidade» do que está ali acontecer. A notícia que leremos no dia seguinte é um relato da «fonte», nunca o testemunho dos olhos desse mesmo jornalista (e dos nossos).

O relator da Voz do Dono tornou-se um relais. Vazou os seus próprios olhos em benefício da «fonte», qual condutor de autocarro do Outono em Pequim.

As novas formas de organização da propaganda política
A célula partidária clássica organizava-se mais ou menos assim: os membros de confiança da célula reuniam-se; discutiam politicamente o que se passava lá fora; chegavam a conclusões políticas, decidiam linhas de acção política; produziam um conjunto de instrumentos de propaganda (jornais, panfletos, contactos pessoais, etc.).
Estes instrumentos de propaganda não podiam (e jamais poderão) ser dúbios, pela sua própria natureza. Um instrumento de propaganda, seja ele de um partido, de um governo ou de uma pasta de dentes, não pretende alcançar a verdade, mas sim convencer o público e criar uma fidelidade.

Este tipo de instrumentos de propaganda tornou-se bacoco; foi votado ao ridículo das velharias. Aliás, a própria célula tornou-se coisa bacoca. O que se usa, hoje em dia, é ser «fonte» de alguém, algures.

Para ser mais concreto: o tarefeiro da célula clássica, aquele militante habilidoso, capaz de escrever um texto inflamado a mando da direcção partidária, capaz de pintar um cartaz, de imprimir um folheto numa máquina de stencil movida à manivela, foi transferido para a redacção de um jornal. Perdeu o cartão partidário. Passou a ser um profissional «independente» ao serviço da máquina do poder no seu conjunto.

Mas então esse relator, que vaza os seus próprios olhos em benefício da «fonte», é o paradigma da desonestidade?, perguntará o leitor atónito. Não. O relator é fiel à sua «fonte» – e portanto honesto, desse ponto de vista...

Prioridades políticas

Criar um órgão de comunicação independente do poder institucional
Os partidos portugueses à esquerda do PS parecem ter perdido por completo a capacidade mais essencial a toda e qualquer organização política que pretenda sobreviver: a capacidade de identificar a questão principal (ou determinante, para usar o conceito dialéctico) de cada momento histórico e, consequentemente, definir as prioridades.

Toda e qualquer propaganda política apenas pode assentar em duas coisas: a fidelização, se ela já existir; não existindo fidelização prévia, torna-se indispensável uma campanha intensa de informação; sem informação, toda a propaganda está condenada ao cesto dos papéis.

Ora os nossos supostos resistentes ao poder instituído tentam fazer passar a sua informação através da Voz do Dono – logo, jamais chegam a fazer-se ouvir; cada tentativa é distorcida e revertida a favor do Dono; muitas vezes a Voz do Dono apenas lhes dá voz por prever que o discurso resultará ridículo e contraproducente junto do público, seja por inépcia, seja por falta de informação prévia que o sustente.

Por outras palavras: quanto mais propaganda quisermos fazer através da Voz do Dono, mais contribuiremos nós próprios para propagandear o Dono.
A resistência portuguesa (ou os movimentos políticos e sociais de esquerda, se preferirem chamar-lhes assim) ainda não percebeu esta coisa básica:
  • «propaganda» = «voz»,
  • «poder instituído» = «dono»,
  • «Voz do Dono» = «propaganda do poder instituído»
Não é possível qualquer resistência sem um órgão de comunicação alternativo e independente do poder instituído!

Custa-me a crer, por vezes, que a resistência portuguesa actual nada tenha aprendido com a luta contra o fascismo, contra a censura, contra a mordaça. Mas este é o triste facto.

Qualquer resistente da velha guarda antifascista sabia que a informação (nesses tempos feita às escondidas, com perigo da própria vida) era a condição prévia a todo e qualquer tipo de resistência.

É definitivamente impossível apontar caminhos novos, alternativos, quando as pessoas a quem nos dirigimos estão embebidas duma visão totalmente mitómana da realidade, duma reinvenção orwelliana dos factos concretos e históricos.

Actualmente não há uma só palavra dos jornais e da televisão que corresponda à verdade dos factos sociais, políticos e económicos. Tudo é mentira. E quem quiser repor a verdade dos factos terá de ser irremediavelmente cego para pensar que pode fazê-lo através da Voz do Dono. Seria o mesmo que pretender obrigar um rabino a rezar missa em latim.

[ao longo da próxima semana forneceremos aqui um link onde se poderão consultar exemplos da total e completa mitomania em que vive a Voz do Dono]

Todos aqueles que lutam contra a farsa da democracia representativa que hoje sofremos, todos os resistentes contra a injustiça social, contra o défice democrático, têm de se unir – não nos seus respectivos projectos e objectivos políticos, porque eles são naturalmente divergentes e porque isso não tem qualquer importância de momento, mas sim na construção de órgãos de comunicação e informação independentes do poder instituído. Não pôr isto como prioridade política é equivalente ao suicídio político.

Lutar com unhas e dentes pela independência e liberdade da Internet

A diferença de vulto entre os tempos da resistência antifascista e os tempos actuais é a invenção da Internet. De resto, a força da propaganda e da mitomania do regime é exactamente igual.

Dar prioridade à construção de órgãos de informação alternativos significa, por arrasto, lutar com unhas e dentes pela independência e liberdade da Internet.

Esta liberdade está hoje perigosamente posta em causa. Numerosos sites europeus de resistência já foram bloqueados e perseguidos policialmente. É urgente desenvolver acções políticas de defesa da Internet. E, pelo sim pelo não, preparar desde já redes digitais alternativas, visto que o próprio parlamento europeu já tentou várias vezes decretar o controle da liberdade na rede digital. Disso falaremos em futuro artigo.

3 comentários:

  1. nptraveller24/06/11, 00:20

    Excelente texto!
    No entanto, fiquei sem perceber bem como se processa esse controle sobre os jornalistas através das "fontes". De que natureza são essas "fontes", pode explicitar melhor? Relacionado com isto, nem todos os jornalistas são ou foram politicamente filiados, principalmente os mais jovens. Ou o "perdeu o cartão partidário" não é para tomar em sentido literal?

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  2. Sim, o «cartão partidário» é metafórico; alude ao facto de os meios de comunicação se situarem formalmente fora da esfera partidária. De resto, o artigo é todo ele esquemático, simplificado - é o preço que se paga por reduzir uma questão desta dimensão a duas páginas de ecrã. Quanto às fontes, só por si exigiriam trabalho de campo e uma longa dissertação. Talvez tudo isto ganhe outra verosimilhança quando eu tiver tempo para acrescentar os exemplos concretos.

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  3. Sim, embora alguns desses exemplos concretos já estejam referenciados no texto. Refiro-me aos casos da Espanha e da Grécia. Tudo o que vai aparecendo nos jornais ou na televisão são pequenas notícias selectivas e descontextualizadas.
    Por exemplo, sobre as manifestações espanholas, no mesmo dia que os Indignados abandonaram a Plaza del Sol, realizaram-se dezenas de manifestações em várias cidades espanholas, algumas bastante significativas, mas a imprensa portuguesa apenas noticiou o fim da acampada, sugerindo o fim do movimento 15M... Durante as manifestações do 19J li, em todos os jornais, sobre as razões da manifestação, mas em nenhum deles o motivo principal, segundo os próprios o Pacto do Euro Plus. O Público remetia para uma notícia do El Mundo, que mencionava o Pacto como motivo principal da convocatória, mas a notícia do Público omitia-o. Curioso também ninguém falar neste pacto, incluindo aqueles que reflectem sempre muito sobre a UE e as suas transformações...
    Sobre a Grécia, ao fim de 16 ou 17 dias de manifestações consecutivas, dois dias depois dos deputados gregos serem escoltados pela polícia à saída do parlamento, um dia depois de 60 representantes da UE terem fugido aos protestos de barco, aparece uma notícia sobre a ocupação do Min. das Finanças grego por 100 trabalhadores. Claro que não se disse que esse acto foi apenas mais uma consequência dos protestos dos Indignadxs gregos, inspirados no movimento espanhol. Dava a entender tratar-se de um acto isolado, perpetrado por 100 trabalhadores radicais, que apelavam a uma greve geral radical...!

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