24/10/12

Isto não é um trabalhador

Cada vez que me pronuncio sobre a situação política e social caem-me em cima uns quantos académicos cheios de dúvidas existenciais: perguntam-me «o que é isso de trabalhadores e capital», queixam-se de maniqueísmo, afirmam que a democracia e o Estado somos todos nós, enfim, um ror de dúvidas existenciais.

Muito sinceramente, preferia não ter de responder a este tipo de argumentos. Afinal de contas, trata-se de responder a técnicos altamente qualificados, alguns deles professores universitários na área das «ciências» humanas e políticas. Explicar-lhes o que é um trabalhador do ponto de vista teórico é no mínimo constrangedor.

No entanto, ao cabo de consecutivos ataques e interpelações, creio que sou de alguma forma obrigado a responder. Vou fazer um pequeno esforço nesse sentido, mas apenas responderei a uma parcela da argumentação proposta, porque para ir mais além necessitaria de várias semestres de esforço árduo.
No fundo, o que está aqui em causa, o que atrapalha estes meus opositores e lhes provoca cólicas existenciais, é a forma de representar a realidade quando esta se alarga a uma dimensão muito vasta e complexa.

1. Isto não são seis maçãs

Aqui está um método muito prático e eficaz para representar a realidade. Embora qualquer pitecantropo consiga executar este método pictórico e compreendê-lo, ele exige um alto nível de abstracção, um cérebro sofisticado. A prova é que o pitecantropo reconhece as maçãs, mas um cão não as reconhece, tal como não reconhece a sua imagem no espelho.

A facilidade com que nós, humanos, realizamos este tipo de operações de representação da realidade é tão grande que... às vezes é necessário que alguém se lembre de juntar uma legenda, para nos trazer de volta à terra – por exemplo: «Isto não são seis maçãs» [subentenda-se: isto não é a realidade, é apenas uma representação da realidade].

Entretanto, como Vilém Flusser teve a bondade de nos explicar em Filosofia da Caixa Negra, podemos subir um degrau no nível de abstracção e representar a mesma realidade da seguinte forma:

«Era uma vez 6 maçãs verdes dispostas em 2 linhas horizontais de 3, dentro de um quadrado branco traçado a negro.»

Não só subimos um degrau nos métodos de abstracção, como ainda por cima entrámos na época histórica. Parabéns a você.

Mas, insiste Flusser, isto ainda não é nada. A escrita só atinge o cúmulo da abstracção com a invenção da ciência:

9 maçãs de 60px * 68px
cor: 139R 204G 56B 255A
continente:
1 quadrado de 188px * 188px

É esse grau máximo de abstracção que nos permite lidar com realidades infinitamente mais extensas e complexas, as quais o nosso pobre pitecantropo jamais poderia representar pictoricamente:

M = 943,2 maçãs (3*sin(85)) * (3,2*cos(6))
cor 139R 204G 56B 255A
continente:
polígono: l1,2,3,4 = (M + 5)-2 ; alpha1,2,3,4 = 90º

De repente o método pictórico, que parecia uma solução prática óptima para representar a realidade duma forma abstracta, revela-se impraticável. Temos de recorrer a um nível de abstracção muito mais elevado para representar níveis mais vastos e complexos da realidade.

É claro que, chegados a este ponto, podemos sempre fazer finca-pé. Podemos impedir que a nossa imagem do universo se expanda infinitamente para além do universo do pitecantropo. Podemos perguntar: 9? o que é isso? nunca vi um objecto chamado 9. E é claro que quem fizer esta pergunta terá sempre razão: não existe nenhum objecto chamado 9; nem nenhum objecto chamado quadrado; nem um chamado expoente; nem um chamado ângulo alfa. São tudo abstracções sem existência real, ou material.

Quando o nível de abstracção atinge um certo nível, o desmancha-prazeres pode sempre recusar a expansão do universo e reconduzir-nos à humilde dimensão do pitecantropo. O problema é que eu não creio que essa dimensão, por mais legítima que seja, nos leve a algum lado interessante. Mas lá que ela é legítima, é.

2. Isto não é um trabalhador

Vejamos outro exemplo:

«Era uma vez dois clãs, os trabalhadores e os capitalistas, que se encontravam aos sábados para jogar à bisca e comer maçãs verdes dentro dum quadrado cor-de-rosa.»

Aliás podemos subir ainda mais um pequenino grau na abstracção e dizer:

«Era uma vez um planeta em que só havia duas coisas aos sábados: o trabalho e o capital. No preciso momento em que escrevo estas linhas só existem duas coisas, porque hoje é sábado.»

Mais uma vez o desmancha-prazeres pode dizer que «o trabalho» não existe, pode até dizer (com toda a propriedade, note-se bem), que «os trabalhadores» não existem – ou, se preferem: «Isto não é um trabalhador.»


3. 6 maçãs jamais serão maniqueístas

Por azar, o nosso último exemplo só tem 2 objectos (trabalho e capital) e por isso, se aceitarmos o horrendo exercício de juntar poesia com lógica, podemos extrapolar para cima do nosso exemplo a categoria de maniqueísmo (parte poética) com a justificação (parte lógica) de que ninguém nos garante que em certos casos o trabalho não possa ser confundível e redutível ao capital e vice-versa.

Quanto ao exemplo das 6 maçãs, desgraçadamente já não podemos chamar-lhe maniqueísta, porque esta categoria só se pode aplicar nos casos em que há 2 objectos em jogo. Mas como, ainda assim, 1 não é redutível nem confundível com 2, que não é redutível nem confundível com 3, que (…) não é redutível nem confundível com 6, podemos chamar-lhe hexeísta.

Temos portanto, segundo os nossos arguentes, que o conceito de trabalhadores é maniqueísta, mas o conceito de maçãs é hexeísta.

4. Isto não é um trabalhador, é um gajo que vive dos rendimentos do trabalho

Este argumento, que me foi apresentado há pouco tempo, deixou-me perplexo. Ter-me-á escapado aqui alguma coisa, mas de facto e muito sinceramente não consigo esclarecê-lo.

5. Isto não é um capitalista, é um gajo que vive dos rendimentos do capital

Bom, está bem, o argumento não foi apresentado, mas não podemos deixar de extrapolar a sua proposição a partir do anterior.

6. Isto não é uma conversa de alto nível intelectual

O mais curioso de tudo isto é que quando vou à tasca lá do meu bairro conversar com os meus vizinhos, humildes assalariados comuns de baixa extracção sem diploma, e lhes falo de «trabalhadores», toda a gente sabe exactamente do que estou a falar, sem sombra de dúvidas nem mal-entendidos. Mas quando falo com alguns ilustres doutores que dão aulas na universidade, muitos deles dizem-me que não sabem o que é isso de «trabalhadores», eu que me explique se for capaz – ou senão, que me cale para sempre.

7. E agora, contra todas as expectativas... eis um trabalhador abstracto e outro concreto

Existe realmente (espantem-se) uma categoria abstracta designada «Trabalhadores». O universo que lhe corresponde é o do «Trabalho». Grosso modo, «trabalhadores» designa aquelas pessoas que dependem da sua energia anímica e física para obterem um rendimento, subsistirem e produzirem. Estas pessoas fazem parte da cadeia de produção entrando nela com uma máquina pessoal e intransmissível que se chama «força de trabalho». Por isso pertencem a esta categoria os empregados, os desempregados, as donas-de-casa, o tasqueiro que trabalha ao balcão da sua loja das 8 da manhã à meia-noite, etc.

Em contrapartida, «Capitalistas» é outra categoria abstracta que procura designar todos aqueles que obtêm um lucro a partir da posse ou do aluguer de bens e máquinas impessoais e transmissíveis, incluindo a força de trabalho alheia. O universo que lhes corresponde é o do «Capital». Os bens e máquinas podem ser da mais variada espécie: terras, prédios de apartamentos, máquinas, oficinas, fábricas, o dinheiro dos outros (ou seja um banco), etc. O lucro que o capitalista arrecada é formado pela apropriação dos excedentes produzidos pela força de trabalho alheia.

No caso limite encontramos o especulador financeiro. Este senta-se a uma secretária, agarrado a um telefone ou a um terminal de computador, para dentro dos quais grita compulsivamente: «compra, vende». Aparentemente este sujeito trabalha sozinho com a sua maquineta e não está a explorar o trabalho de ninguém. Esta aparência é porém muito ilusória – para obter os capitais com que especula, ele, ou alguém por ele, teve, nalgum ponto da cadeia produtiva, de sacar excedentes produzidos pelos trabalhadores, transformá-los em capital e investi-los na bolsa, em títulos de dívida, ou no que se queira. Toda a produção faz parte duma cadeia social contínua.

Existe um sistema de equações muito simples: se não forem produzidos excedentes, as pessoas comem o que produzem e não sobra nada; se forem produzidos excedentes, o mais certo é que alguém (que não os produziu) se aproprie deles e os transforme em capital.

Os meus arguentes gostam de me atirar à cara com o exemplo simplório do trabalhador que conseguiu fazer umas poupançazitas e as guardou no banco – será também ele um capitalista? A resposta é tão simples como a pergunta: não! Em contrapartida, se o banco pegar no dinheiro dele e o usar para investir no sector produtivo ou em actividades financeiras especulativas, de forma a capturar os excedentes produzidos por alguém algures na cadeia social de produção, está a transformar essa poupança em capital – mas, atenção!, esta transformação é feita em proveito próprio (do banco, não do trabalhador). O mesmo objecto concreto (dinheiro) é reserva de excedentes para o trabalhador e capital para o banco. Pode ser difícil de engolir que um objecto possua duas naturezas distintas ao mesmo tempo, mas é mesmo assim.

Muito bem, já vimos algumas definições abreviadas das categorias abstractas em causa, com exemplos. Mas é claro que no dia-a-dia, na realidade social concreta e infinitamente diversificada, pode haver zonas cinzentas. Nada disso nos deve atrapalhar. Seria preciso cultivar um ódio de estimação contra a ciência, para que as particularidades sociais nos impedissem de construir uma teoria geral. E de resto, se dominarmos e compreendermos bem a teoria, acabaremos por verificar que mesmo os casos que pareciam cinzentos encaixam nela (condição sem a qual a teoria terá de ser considerada inadequada à realidade e por conseguinte revista).

8. Isto não é uma dívida

Recentemente, a publicação de um estudo sobre os gastos do Estado e a tributação dos trabalhadores para esse mesmo Estado veio ajudar a demonstrar empiricamente aquilo que alguns já tinham percebido na teoria: a dívida pública não é da responsabilidade dos trabalhadores, estes não devem nada a ninguém, e portanto não deviam ser chamados a pagar essa dívida.

Os meus arguentes gostam de me confrontar com um argumento que consideram muito inteligente: o Estado é de todos nós, o Estado somos todos nós; quem o dirige foi eleito por nós; portanto qualquer dívida contraída pelo Estado é uma dívida nossa.

Há meses que venho tentando perceber se este argumento é apresentado por ignorância, má-fé ou cinismo – ainda não consegui chegar a uma conclusão definitiva – a escolha é difícil.

9. Isto não é um Estado

O Estado é um dos conceitos abstractos mais sofisticados e complexos inventados até hoje. Mas é também, simultaneamente, a designação dada a um conjunto de mecanismos concretos e palpáveis, que exercem acções e produzem efeitos concretos na vida de cada cidadão. Tem funcionários e tem dirigentes de carne e osso. Tem departamentos que entram frequentemente em conflito uns com os outros; etc.

O problema que aqui se nos coloca é o seguinte: nas sociedades moderna e contemporânea, o Estado não é de todos nós, de facto – é só de alguns, embora se arrogue e simule ser de todos. Como alguém disse certeiramente: o Estado moderno é um comité de administração unificada dos negócios do capital.

A prova de que assim é pode ser verificada quotidianamente. Quando o actual Governo produz medidas tendentes a provocar desemprego (e quando ele próprio despede os seus funcionários para os tornar precários), não está a fazer um favor a toda a gente, mas apenas ao capital, que tem tudo a ganhar com a manutenção de um contingente de reserva de desempregados. Quando o Governo usa dinheiros que os trabalhadores depositaram nos cofres do Estado para cobrir a diferença entre o que certas empresas pagam aos seus trabalhadores e o ordenado mínimo nacional, está a fazer um favor ao capital e a defraudar o trabalho. Quando o Estado entrega a gestão e o fornecimento dos hospitais a empresas privadas que (para obterem um lucro) produzem saúde mais cara, está a gerir o negócio do capital, não o negócio do trabalho. Quando o Estado usa a sua prerrogativa do monopólio da força para emitir uma requisição civil, pondo termo a um conflito entre o trabalho e o capital em vez de o mediar, ou de usar a sua força para obrigar o capital a negociar com o trabalho, está a gerir o negócio do capital, não o do trabalho. Quando o Estado se endivida, sem que os trabalhadores necessitem ou beneficiem disso, para proporcionar juros usurários aos especuladores financeiros, está a gerir o negócio do capital, não o do trabalho.

O negócio do trabalho consiste em vender a sua força (física ou intelectual) para obter um rendimento e produzir bens. O negócio do capital consiste em alugar essa força, extraindo dela um lucro, ou seja, apropriando-se de uma parte dos excedentes assim produzidos.

O papel do Estado não pode ser dúplice - ou serve o trabalho ou serve o capital. Ainda que possam existir zonas cinzentas (dependendo da força reivindicativa dos trabalhadores em cada instante), isso não impede que de maneira geral e por regra o Estado moderno seja o comité de gestão unificada dos negócios do capital.

Por conseguinte, dizer que o Estado é de todos e que todas as dívidas do Estado são responsabilidade de todos nós é um argumento, no mínimo, cínico.

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