O último
Prós e Contras, de
15-10-2018, teve
como mote o movimento #MeToo.
Acessoriamente
deu-nos uma
ideia da dimensão da
decadência do debate político.
Para quem não
conhece: o Prós e Contras
é um programa de debates emitido semanalmente na RTP1, apresentado
por Fátima Campos Ferreira
e animado por um painel de 6
convidados não residentes que dão as suas opiniões sobre um tema
proposto e que às
vezes acabam a ofender-se uns aos outros; tem uma plateia de
estúdio que também participa no debate; e usa mecanismos telefónicos
para pedir opinião aos telespectadores.
O programa começou mal, ao
lançar o
seguinte mote: «O movimento
Mee Too contribui para a igualdade entre homens e mulheres?». A
pergunta enviesou
a discussão logo à
partida. Perguntar se uma
coisa, qualquer coisa,
contribui para igualdade entre homens e mulheres é
uma indagação que
tem sempre lugar, pela simples razão de que praticamente tudo na
nossa sociedade é atravessado pelas
desigualdades
de género. Estas
desigualdades
têm
milhentas facetas – físicas,
sexuais,
laborais,
culturais,
… –, tendo algumas
delas uma componente
essencial:
a violência. A
multiplicidade destes comportamentos sociais justifica
o recurso a múltiplas
frentes e instrumentos de luta para acabar
com eles.
Quanto ao #MeToo,
é
um movimento que
milita
contra a
violência sexual e o assédio
sexual, usando como
arma de combate a
denúncia e o julgamento em praça pública. Estávamos
portanto perante um tema invulgarmente claro e preciso.
Alguns dos
intervenientes directos no
programa contornaram a
pergunta proposta pela
apresentadora. Já o mesmo
não aconteceu com os espectadores, que, postos
perante a limitação de responderem «sim» ou «não»,
tomaram
o mote
à letra: à pergunta «O
movimento Me Too contribui para a igualdade entre homens e
mulheres?», a esmagadora
maioria (mais de dois
terços!) respondeu «não».
Não sei dizer se o fizeram
por boas ou más razões, mas
o facto é que, dentro
do lacónico leque de respostas possíveis, esta
parece-me ser
a única resposta
correcta, como passo a explicar.
A denúncia dos
abusos, assédios e violações, acompanhada de julgamento em praça
pública por virtude dos meios utilizados (redes sociais em roda
livre), não pode visar a simples igualdade de género do
ponto de vista institucional, legal ou moral.
Para ser eficaz, tem de provocar
uma revolução nas relações
entre homens e mulheres. Quando
digo «revolução» não estou a fazer
figuras de estilo – quero dizer exactamente: revolução.
Na
nossa sociedade, as
relações sociais entre homens e mulheres
são relações de poder.
Como
todas as relações de poder, só podem ser desfeitas através de uma
revolução. Ora uma
revolução social nunca se fez, em tempo algum da História que eu
saiba, com paninhos quentes. Faz-se geralmente com barricadas,
paralelepípedos da calçada, fuzis, guilhotinas, deportações,
cocktails Molotov …
Como
a moral
ortodoxa do
século XXI recusa a
crueldade e a
violência físicas, esta
tentativa de revolução
abdicou da guilhotina e optou pelo tipo de crueldade e violência
mais na moda hoje em dia:
o julgamento em praça pública, que é tão eficaz a destruir a vida
duma pessoa como um varapau ou uma deportação para ilhas remotas.
Este facto
histórico,
apesar de não ter sido expresso,
dividiu o
painel de opinadores do Prós
e Contras em dois campos: uns,
com Isabel Moreira à cabeça, defendendo
que não colhe o
argumento do risco
de acusações e julgamentos
injustos; outros, com Raquel Varela na
vanguarda, chamando
a atenção para o rol de injustiças (no caso de falsos testemunhos)
e exageros (no caso de
uma
simples manobra de sedução ser
confundida com assédio, sejam lá quais forem as
fronteiras entre uma e outro)
a que o #MeToo
pode dar origem, se é que não deu já.
A ambos os lados
parece ter escapado o essencial: o movimento Me Too promove
uma revolução e as revoluções, repito,
não se fazem com vénias e
tagatés
– têm de fazer rolar
cabeças, a torto e a direito, com razão e sem razão, com
justiça e sem ela; por
outras palavras e sem rebuços: têm
de instalar
um clima de terror
capaz de vencer os aparelhos de
poder e impedir qualquer
movimento contra-revolucionário; têm de tolher o inimigo num verdadeiro
estado de pânico
paralisante que
o incapacite para qualquer reacção eficaz.
O
#MeToo
não busca a igualdade; é
uma brigada de guerrilheiras
que – com pesadas
armas de arremesso – combate a opressão;
combate-a
no escritório, em casa e
nas ruas,
o que é muito diferente de
legislar a igualdade sentadinho numa cadeira do Parlamento e com
muito respeitinho pela legislação precedente.
Só um inocente
pode pretender
alcançar a igualdade
permanente
antes de
uma revolução pôr
de rastos os bastiões da opressão
(mas, como se sabe, os
reformistas não pensam
assim). É
estranho, mas tudo leva a crer que nenhum
dos ilustres opinadores
presentes no Prós e Contras
leu e entendeu os 120 Dias de Sodoma,
onde fica claro que
o poder
só tem uma forma de
ser exercido em permanência:
com base na força bruta e no
medo – não existe nenhuma outra maneira de impor uma só vontade e um só mando a mais de
metade da humanidade. E por
isso mesmo o poder só
tem uma forma de ser
desalojado: pela força bruta e pelo medo, que
é a única linguagem que ele próprio entende.
É horrível, concordo, mas
não há volta a dar.
Sim, os
movimentos como o #MeToo
irão provocar muita injustiça, irão actuar de forma mais emocional
que racional, provocarão imensos estragos e
desconfortos em toda a
sociedade. Têm de o fazer,
sob pena de falharem o seu objectivo: o derrube do poder que oprime
as mulheres há séculos. Posso
até ter medo, posso recear
ser injustamente arrastado na maré de julgamentos em praça pública,
mas ainda assim terei
de me vergar à força desta maré revolucionária.
Séculos de
cultura de opressão entranhada
não se desfazem com um
cordial aperto de mão e pronto, ficamos amigos. Nem a
luta contra a opressão permite
que as pessoas, no auge
do combate, actuem de forma
muito racional, com punhos de
renda – os punhos neste caso têm obrigatoriamente de agredir.
Séculos de cultura opressiva
criaram
fantasmas que se radicam no fundo da mente, subterraneamente,
de tal forma que, quando
finalmente chega o momento da libertação, não existe forma
de adoçar o
comportamento da vanguarda
libertadora.
Se a revolução
não provocar estragos, isso
significa, pura e simplesmente, que vai
falhar.
Nesse sentido, a
negação dos possíveis estragos advogada pela ala de Isabel Moreira
soa-me
a traição. Haveria que dizer, diante
das câmaras: sim, vamos
provocar uma quantidade assustadora de estragos, vamos
fazer pirâmides de cabeças cortadas, vai
ser terrífico, aliás é
melhor que se rendam já, para apaziguar um pouco a fera, se tal é
possível. Infelizmente, a convicção reformista dessa ala está
de tal maneira arreigada,
que tem de
renegar a revolução – ainda
que o faça convicta de estar
a ser muito radical.
A ala de Raquel
Varela, por seu lado,
recusa de forma ainda mais
categórica o impulso
revolucionário. Em
plena batalha, com balas a silvar
dum lado e doutro,
coloca-se em terra de ninguém
e ergue o
estandarte da presunção de inocência, que ficaria muito bem em
qualquer outra parte, nomeadamente
nas bancadas do Parlamento ou
num cocktail
à beira-mar,
mas não em pleno acto
revolucionário – a
guilhotina e as pedras da calçada não podem ser levantadas sem a
suspensão de algumas
garantias institucionais, por definição.
É
nestas alturas que se vê quem está de facto disposto a arcar as
consequências terríveis de qualquer
acto revolucionário, não
importa qual.
E de repente, a
meio deste
debate do Prós e Contras,
surge o disparate rematado: começa-se a discutir se as crianças
devem ou não ser obrigadas a dar um beijinho aos avós. Confesso que
tive de usar o comando da televisão por cabo para voltar atrás e
verificar se tinha ouvido bem. Mas sim, era isso mesmo: passámos
da discussão da violência de género para a educação infantil
(até aqui tudo bem, se não
perdermos de vista o tema proposto)
e por fim entrámos num
tema estapafúrdio
que passou a galvanizar os
opinadores e as redes sociais nos dias seguintes:
devem ou não as crianças beijocar os seus maiores.
Dando
de bónus a estreiteza de quem
não vê que o beijo, neste
caso, é
metonímia – trata-se, no essencial, de saber se devem as crianças
ser obrigadas ou não a manifestar activamente
comportamentos de
consideração, respeito e estima pelos mais velhos –, dando
de bónus a atitude pueril de
quem não alcançou ainda a
idade de entender
que tudo na «natureza»
humana é educável e deve
ser educado, incluindo os
afectos, e que os afectos se
educam e constroem de forma funcional e material, não como sombras
ideais no fundo de uma caverna, o
facto é que a metonímia do
beijo se refere à indução
de padrões de comportamento emocional não disfuncional – ou
seja, trocando por miúdos em
benefício dos mais obtusos: quando
a avó entra em casa, a criança não pode
ignorá-la e continuar
com o nariz enfiado no comando da play-station;
tem de manifestar fisicamente
a sua consideração, seja com um beijo, com um passou-bem, com uma
vénia ou com uma flor.
Felizmente não sou filho de
nenhum dos
opinadores que consideram
criminosa a educação social e emocional.
A partir deste
ponto foi o descalabro: o painel do
Prós e Contras e as
redes sociais entraram em
modo de histeria, à
semelhança dos
doentes da bola ou dos
cônjuges
ciumentos. Sendo verdade que
Raquel Varela tem um notório gosto pela exibição de superioridades
morais, é completamente descabido acusá-la de fascista
(ou de epígona de Bolsonaro, o que vai dar no mesmo). Entrámos aí
em pleno reino do disparate
ao vivo, em directo e a
cores. Este disparate, para
se exercer, teve
de exibir, em contraponto à bravata da superioridade moral, a
bravata da superioridade judicativa. A
partir daí o debate
tornou-se um vómito, uma
pesporrência feita de superioridades morais e judicativas
e de ódios pessoais –
e o movimento #MeToo foi pura e simplesmente mandado às urtigas.
Enfim, é o
descalabro, para não dizer a
violação, do debate
político.
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