19/10/18

O estupro do debate político



O último Prós e Contras, de 15-10-2018, teve como mote o movimento #MeToo. Acessoriamente deu-nos uma ideia da dimensão da decadência do debate político.
Para quem não conhece: o Prós e Contras é um programa de debates emitido semanalmente na RTP1, apresentado por Fátima Campos Ferreira e animado por um painel de 6 convidados não residentes que dão as suas opiniões sobre um tema proposto e que às vezes acabam a ofender-se uns aos outros; tem uma plateia de estúdio que também participa no debate; e usa mecanismos telefónicos para pedir opinião aos telespectadores.
 
O programa começou mal, ao lançar o seguinte mote: «O movimento Mee Too contribui para a igualdade entre homens e mulheres?». A pergunta enviesou a discussão logo à partida. Perguntar se uma coisa, qualquer coisa, contribui para igualdade entre homens e mulheres é uma indagação que tem sempre lugar, pela simples razão de que praticamente tudo na nossa sociedade é atravessado pelas desigualdades de género. Estas desigualdades têm milhentas facetas – físicas, sexuais, laborais, culturais, … –, tendo algumas delas uma componente essencial: a violência. A multiplicidade destes comportamentos sociais justifica o recurso a múltiplas frentes e instrumentos de luta para acabar com eles
  
Quanto ao #MeToo, é um movimento que milita contra a violência sexual e o assédio sexual, usando como arma de combate a denúncia e o julgamento em praça pública. Estávamos portanto perante um tema invulgarmente claro e preciso.

Alguns dos intervenientes directos no programa contornaram a pergunta proposta pela apresentadora. Já o mesmo não aconteceu com os espectadores, que, postos perante a limitação de responderem «sim» ou «não», tomaram o mote à letra: à pergunta «O movimento Me Too contribui para a igualdade entre homens e mulheres?», a esmagadora maioria (mais de dois terços!) respondeu «não». Não sei dizer se o fizeram por boas ou más razões, mas o facto é que, dentro do lacónico leque de respostas possíveis, esta parece-me ser a única resposta correcta, como passo a explicar.
 
A denúncia dos abusos, assédios e violações, acompanhada de julgamento em praça pública por virtude dos meios utilizados (redes sociais em roda livre), não pode visar a simples igualdade de género do ponto de vista institucional, legal ou moral. Para ser eficaz, tem de provocar uma revolução nas relações entre homens e mulheres. Quando digo «revolução» não estou a fazer figuras de estilo – quero dizer exactamente: revolução.
 

Na nossa sociedade, as relações sociais entre homens e mulheres são relações de poder. Como todas as relações de poder, só podem ser desfeitas através de uma revolução. Ora uma revolução social nunca se fez, em tempo algum da História que eu saiba, com paninhos quentes. Faz-se geralmente com barricadas, paralelepípedos da calçada, fuzis, guilhotinas, deportações, cocktails Molotov Como a moral ortodoxa do século XXI recusa a crueldade e a violência físicas, esta tentativa de revolução abdicou da guilhotina e optou pelo tipo de crueldade e violência mais na moda hoje em dia: o julgamento em praça pública, que é tão eficaz a destruir a vida duma pessoa como um varapau ou uma deportação para ilhas remotas.
 

Este facto histórico, apesar de não ter sido expresso, dividiu o painel de opinadores do Prós e Contras em dois campos: uns, com Isabel Moreira à cabeça, defendendo que não colhe o argumento do risco de acusações e julgamentos injustos; outros, com Raquel Varela na vanguarda, chamando a atenção para o rol de injustiças (no caso de falsos testemunhos) e exageros (no caso de uma simples manobra de sedução ser confundida com assédio, sejam lá quais forem as fronteiras entre uma e outro) a que o #MeToo pode dar origem, se é que não deu já.
 
A ambos os lados parece ter escapado o essencial: o movimento Me Too promove uma revolução e as revoluções, repito, não se fazem com vénias e tagatés – têm de fazer rolar cabeças, a torto e a direito, com razão e sem razão, com justiça e sem ela; por outras palavras e sem rebuços: têm de instalar um clima de terror capaz de vencer os aparelhos de poder e impedir qualquer movimento contra-revolucionário; têm de tolher o inimigo num verdadeiro estado de pânico paralisante que o incapacite para qualquer reacção eficaz.
 
O #MeToo não busca a igualdade; é uma brigada de guerrilheiras que – com pesadas armas de arremesso – combate a opressão; combate-a no escritório, em casa e nas ruas, o que é muito diferente de legislar a igualdade sentadinho numa cadeira do Parlamento e com muito respeitinho pela legislação precedente
  

Só um inocente pode pretender alcançar a igualdade permanente antes de uma revolução pôr de rastos os bastiões da opressão (mas, como se sabe, os reformistas não pensam assim). É estranho, mas tudo leva a crer que nenhum dos ilustres opinadores presentes no Prós e Contras leu e entendeu os 120 Dias de Sodoma, onde fica claro que o poder só tem uma forma de ser exercido em permanência: com base na força bruta e no medo – não existe nenhuma outra maneira de impor uma só vontade e um só mando a mais de metade da humanidade. E por isso mesmo o poder só tem uma forma de ser desalojado: pela força bruta e pelo medo, que é a única linguagem que ele próprio entende. É horrível, concordo, mas não há volta a dar. 
  
Sim, os movimentos como o #MeToo irão provocar muita injustiça, irão actuar de forma mais emocional que racional, provocarão imensos estragos e desconfortos em toda a sociedade. Têm de o fazer, sob pena de falharem o seu objectivo: o derrube do poder que oprime as mulheres há séculos. Posso até ter medo, posso recear ser injustamente arrastado na maré de julgamentos em praça pública, mas ainda assim terei de me vergar à força desta maré revolucionária.
 
Séculos de cultura de opressão entranhada não se desfazem com um cordial aperto de mão e pronto, ficamos amigos. Nem a luta contra a opressão permite que as pessoas, no auge do combate, actuem de forma muito racional, com punhos de renda – os punhos neste caso têm obrigatoriamente de agredir. Séculos de cultura opressiva criaram fantasmas que se radicam no fundo da mente, subterraneamente, de tal forma que, quando finalmente chega o momento da libertação, não existe forma de adoçar o comportamento da vanguarda libertadora
  
Se a revolução não provocar estragos, isso significa, pura e simplesmente, que vai falhar
  

Nesse sentido, a negação dos possíveis estragos advogada pela ala de Isabel Moreira soa-me a traição. Haveria que dizer, diante das câmaras: sim, vamos provocar uma quantidade assustadora de estragos, vamos fazer pirâmides de cabeças cortadas, vai ser terrífico, aliás é melhor que se rendam já, para apaziguar um pouco a fera, se tal é possível. Infelizmente, a convicção reformista dessa ala está de tal maneira arreigada, que tem de renegar a revolução – ainda que o faça convicta de estar a ser muito radical.  
A ala de Raquel Varela, por seu lado, recusa de forma ainda mais categórica o impulso revolucionário. Em plena batalha, com balas a silvar dum lado e doutro, coloca-se em terra de ninguém e ergue o estandarte da presunção de inocência, que ficaria muito bem em qualquer outra parte, nomeadamente nas bancadas do Parlamento ou num cocktail à beira-mar, mas não em pleno acto revolucionário – a guilhotina e as pedras da calçada não podem ser levantadas sem a suspensão de algumas garantias institucionais, por definição. É nestas alturas que se vê quem está de facto disposto a arcar as consequências terríveis de qualquer acto revolucionário, não importa qual.
 
E de repente, a meio deste debate do Prós e Contras, surge o disparate rematado: começa-se a discutir se as crianças devem ou não ser obrigadas a dar um beijinho aos avós. Confesso que tive de usar o comando da televisão por cabo para voltar atrás e verificar se tinha ouvido bem. Mas sim, era isso mesmo: passámos da discussão da violência de género para a educação infantil (até aqui tudo bem, se não perdermos de vista o tema proposto) e por fim entrámos num tema estapafúrdio que passou a galvanizar os opinadores e as redes sociais nos dias seguintes: devem ou não as crianças beijocar os seus maiores.
 
Dando de bónus a estreiteza de quem não vê que o beijo, neste caso, é metonímia – trata-se, no essencial, de saber se devem as crianças ser obrigadas ou não a manifestar activamente comportamentos de consideração, respeito e estima pelos mais velhos –, dando de bónus a atitude pueril de quem não alcançou ainda a idade de entender que tudo na «natureza» humana é educável e deve ser educado, incluindo os afectos, e que os afectos se educam e constroem de forma funcional e material, não como sombras ideais no fundo de uma caverna, o facto é que a metonímia do beijo se refere à indução de padrões de comportamento emocional não disfuncional – ou seja, trocando por miúdos em benefício dos mais obtusos: quando a avó entra em casa, a criança não pode ignorá-la e continuar com o nariz enfiado no comando da play-station; tem de manifestar fisicamente a sua consideração, seja com um beijo, com um passou-bem, com uma vénia ou com uma flor. Felizmente não sou filho de nenhum dos opinadores que consideram criminosa a educação social e emocional.
 

A partir deste ponto foi o descalabro: o painel do Prós e Contras e as redes sociais entraram em modo de histeria, à semelhança dos doentes da bola ou dos cônjuges ciumentos. Sendo verdade que Raquel Varela tem um notório gosto pela exibição de superioridades morais, é completamente descabido acusá-la de fascista (ou de epígona de Bolsonaro, o que vai dar no mesmo). Entrámos em pleno reino do disparate ao vivo, em directo e a cores. Este disparate, para se exercer, teve de exibir, em contraponto à bravata da superioridade moral, a bravata da superioridade judicativa. A partir daí o debate tornou-se um vómito, uma pesporrência feita de superioridades morais e judicativas e de ódios pessoais – e o movimento #MeToo foi pura e simplesmente mandado às urtigas.
 
Enfim, é o descalabro, para não dizer a violação, do debate político.
 

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