07/11/18

Máquinas humanizadas e humanos maquinais

da série: Filosofias de alcova e outras bestialidades

 
Está bestialmente na moda fazer filmes e artigos sobre a humanização das máquinas digitais, em particular os computadores. Durante algum tempo este tema pareceu-me justo, até que um dia, estava eu a dar uma bela trancada no meu namorado, veio-me à ideia, vá-se lá saber porquê, que se calhar as pessoas que criam esses programas e artigos estão, por portas travessas, a induzir os humanos a serem mais maquinais. Enquanto batia uma soneca à ilharga do meu parceiro, meti-me a pensar que a ideia de tornar um instrumento – seja ele um computador, um microondas ou um scanner – mais humano é um absurdo.


Tentemos imaginar um instrumento qualquer no seu estado primitivo – por exemplo, uma roda ou um martelo. Quando o génio que inventou um martelo o usou pela primeira vez para demonstrar a sua utilidade, é natural que a audiência tenha dito qualquer coisa do género: «Formidável, com esse instrumento consegues fazer num instante o que eu levo um dia inteiro a fazer com imenso esforço! Mas olha, não consegues melhorar a forma, para ser mais fácil pegar nele e usá-lo?» E foi assim que nasceu o cabo do martelo, em acrescento à cabeça do dito.

O que estes primitivos estavam a pedir ao inventor do martelo era que ele o afeiçoasse à mão humana. Faz sentido o pedido. Faz tanto sentido, que daí para a frente se tornou critério na invenção e desenvolvimento de novos instrumentos – tornou-se um padrão obrigatório afeiçoar os instrumentos à mão humana. [1]

Ora, é evidente – e se não vos é evidente, lastimo muito – que um computador é um instrumento, isto é, pertence à categoria genérica dos instrumentos [2]. Como estamos a conversar no âmbito de uma série filosófica, tenho de insistir na importância crucial de colocar o martelo e o computador dentro de uma categoria qualquer, neste caso a dos instrumentos, de forma a não perdermos o rumo à conversa e acabarmos num lugar que não diz respeito ao assunto. Se estivéssemos a falar de um cão, de uma vaca ou de qualquer outro animal doméstico, podem estar descansados que eu não os colocaria dentro da categoria dos instrumentos. Mas como falamos de computadores, rodas e martelos, sou obrigado a situar cada proposição dentro dessa categoria, para não misturarmos alhos com bugalhos.

Ora, sendo um computador – ou qualquer um dos seus derivados – um instrumento, ele pode ser afeiçoado, mas não humanizado. Um cão sim, certamente pode ser humanizado, como sucede por definição a qualquer animal doméstico. Mas uma roda, um martelo ou um computador, não – não podem adquirir ânimo autónomo (ou, se preferem: uma alma); são apenas afeiçoáveis. Tal como o facto de um satélite se manter em órbita, corrigindo-a automaticamente sem necessidade de intervenção (actual) da mão humana, não o torna humano nem lhe confere a qualidade dos seres com vontade própria; bem pelo contrário: o facto de ele não poder sair de órbita demonstra a ausência de vontade e humanidade.

Sendo assim, falar em «humanizar os computadores» parece coisa de broncos. Ora bem, sejamos justos: serão broncos os editores, redactores, realizadores, cientistas e quejandos que nos falam de humanização dos instrumentos? Partamos graciosamente do princípio que não, que são pessoas muitíssimos normais, ou até, quem sabe, invulgarmente inteligentes. Qual pode então ser a intenção de semelhante absurdo?

Peço perdão, deixem-me corrigir, porque não nos compete adivinhar nem julgar as intenções seja de quem for. A única coisa que nos pode legitimamente interessar é a avaliação das consequências objectivas das suas acções. Ora o que resulta da publicação de artigos, «reportagens» e «documentários» sobre a humanização das máquinas, é que o espectador ou leitor desprevenidos, não tendo dedicado previamente ao assunto quantidade alguma de reflexão – e porque haveria ele de dedicar reflexão a um absurdo intempestivamente tirado da manga? –, é apanhado desprevenido e tende a achar a coisa, vamos lá, interessante, ou pelo menos digna de curiosidade; é natural que pense consigo mesmo: pois é, como será possível humanizar as máquinas? Aliás, deve ter sido exactamente isso que os deuses pensaram ao criarem as esferas celestes.

Escusado seria dizer que os autores das obras sobre humanização das máquinas, sem dar tempo à sua audiência para matutar na coisa, lhe vão explicar de imediato como se pode fazer isso. Contudo, como sabemos, não é possível humanizar uma coisa desalmada e por consequência essa manobra de propaganda enganosa reverte no seu inverso: a mecanização dos humanos.

Vejamos um exemplo típico: o «repórter» mostra-nos uma aplicação digital em acção: um software 3D interactivo que, através de uns óculos especiais ligados à máquina, permite ao utilizador ver a sua própria mão imergir na fressura de um cenário digital 3D, ou seja, nas metáforas do computador [3] – pode ser, sei lá, uma paisagem virtual 3D, uma vulva virtual 3D, ou até uma máquina virtual de picar carne. Para todos os efeitos, um pouco de reflexão (aviso: requer fazer pausa no vídeo ou na leitura) revela que, neste caso, já não é o instrumento que está a ser afeiçoado às humanidades, mas sim a humanidade que está a ser afeiçoada à máquina, através da manipulação da percepção. O marketing, o redactor/realizador, o fabricante do software, estão, pura e simplesmente, a afeiçoar os humanos a um produto, uma máquina, um instrumento que foi produzido e precisa de ser vendido. Mas, para desumanizar o utente e afeiçoá-lo à máquina, é necessário realizar uma operação prévia: emprestar à máquina, por meios conceptuais separados da própria máquina, atributos humanos, ou pelo menos domésticos, ainda que ela jamais possa adquiri-los, por natureza. A partir desse momento o instrumento pode ser vendido como processo de humanização interactiva.

Nada mais interessante para um humano do que outro objecto humano interactivo. E foi aí que avancei para a segunda trancada.


Notas:
[1] É condição indispensável ao rigor do pensamento o rigor etimológico da palavra. Neste caso particular, dada a urgência com que escrevo, tenho de manter em aberto a hipótese de o termo afeiçoar (etimologicamente: dar feição a …) não ser o mais adequado, mas foi o que me veio à ideia, assim de repente.

[2] A palavra instrumento designa uma categoria de objectos que é denunciada pela sua etimologia: in+struere+mentum. O verbo struere designava a acção de juntar ou amontoar e encontramo-lo presente em construir, obstruir, instruir, etc. O sufixo -mento serve precisamente para designar a utilização de um meio (ou instrumento, simplificando), como em argumento, monumento, tormento.

[3] Os inventores dos modernos computadores, nas suas obras teóricas e de divulgação, chamaram metáfora ao ambiente gráfico interactivo que vemos no ecrã do computador. Até aí, o computador apenas nos entregava símbolos matemáticos e letras, que são símbolos de coisas reais; admitia interacções, sem dúvida, mas separando cadenciadamente cada fase da relação: acção-resposta-acção-resposta… Ao descreverem os ambientes gráficos interactivos dos computadores como metáforas, os seus inventores pretendiam significar o seguinte: o que de facto existe no computador são zeros e uns, mas no desktop o que nós vemos são traduções metafóricas dos zeros e uns, construídas por referência à nossa própria percepção. Como metáforas que são, recolhem elementos parcelares de nós próprios, da nossa realidade, da nossa percepção, e elementos parcelares da realidade digital residente nas entranhas da máquina – são, por definição, metáforas duma realidade total, muitíssimo complexa, constituída pelo binómio humano-instrumento. Nunca, jamais, em tempo algum os inventores dos modernos computadores confundiram a realidade humana com a abstracção metafórica dos zeros e uns (apesar de terem também inventado o conceito de realidade aumentada, mas isso é ainda outra história). Da mesma forma que a moeda é metáfora duma realidade social muitíssimo complexa: a produção de valor. Humanizar a moeda seria a coisa mais estúpida, absurda e irrealizável do mundo. Humanizar a produção seria a coisa mais desejável do mundo em que vivemos.


Bibliografia e referências:
A urgência da escrita destas linhas prejudica a boa construção de uma lista de referências úteis e pertinentes. Limito-me a apontar duas direcções:

→ T. R. Colburn & G. M.Shute, «Metaphor in computer science», @ Journal of Applied Logic, ed. Elsevier, 2008.

→ Zhixuan Lai, «Computer Metaphors», @ Medium, 2016.

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