18/01/19

A força do cliché

Quatro mulheres anónimas (daguerreótipo de Southworth & Hawes, 1850) 


Segundo um artigo recente, a coordenadora do Bloco de Esquerda terá afirmado que classificar o BE de «extrema-esquerda» é «um insulto» e que prefere a classificação de «esquerda radical», que «tem a ver com a raiz da esquerda, a raiz das lutas». [«Entrevista a Catarina Martins», jornal Observador, 15/01/2019.] Esta parece ser apenas mais uma daquelas tiradas sem importância, uma discussão semântica pateta à qual devemos fazer orelhas moucas, mas por acaso dá-me o ensejo de falar de clichés.

Diga-se de passagem que a lateralidade (a percepção do que está à esquerda e à direita, à frente e atrás, acima e abaixo) constitui um dos saltos qualitativos mais notáveis na evolução da vida na Terra. Permite-nos, além disso, situar cada espécie na escalada evolutiva. Um ser sem a noção da lateralidade tem de ser considerado ao nível da amiba.

Graças a Catarina Martins, a passagem da palavra «radical» de adjectivo a substantivo é uma catacrese que facilmente passará a cliché. O caso é muito curioso, porque ao pretender lutar contra um lugar-comum pejorativo – segundo o qual «os partidos de esquerda são extremistas», o que já de si é um cliché descerebrado, visto que por definição o que está à esquerda não pode estar ao centro (e vice-versa) –, abre caminho a novos lugares-comuns («certos partidos de esquerda são extremistas, outros são radicais») que por sua vez introduzem no discurso político uma série de categorias não menos descerebradas: partindo de uma ideia metafórica – a raiz, vista como uma extremidade arbórea donde tudo brota –, constrói duas ideias artificialmente distintas; é uma forma de idealismo, pois cria uma cesura entre os denotadores e a realidade material; é, além disso, um instrumento de destruição semântica. Certamente teremos nos próximos dias paletes de comentadores pagos a peso de ouro para discutirem em horário nobre numerosas distinções de elevada subtileza, a fim de determinar se Fulano ou Sicrana é radical ou extremista, entroncado ou centrista, arbustivo ou rasteiro, lenhoso ou hirto, podado ou cindido, …

A tirada da coordenadora do BE começa a tornar-se irritante quando ela acrescenta que «extrema-esquerda está associado a totalitarismos, a perseguição e a ódio». Esta afirmação taxativa parece-me insultuosa para uma quantidade inumerável de pessoas e correntes históricas espalhadas por todas as partes do Mundo ao longo de vários séculos. É uma afirmação ousada que nos obrigará doravante a anotar à margem todos os textos que contenham menções à «extrema-esquerda», para apurarmos se a expressão está sistematicamente associada a «totalitarismos, a perseguição e a ódio» ou se Catarina Martins acaba de inventar uma generalização abusiva mas muito conveniente para o seu projecto político, permitindo-lhe livrar-se dos atributos e responsabilidades da «esquerda», sem no entanto abandonar esse lado das bancadas do Parlamento.

Seguiu-se a esta notícia, na minha rotina diária, um jantar apaziguador, após o qual o meu estômago dilatado me conduziu até um sofá molengão, onde tropecei num filme de suspense: The Ledge (em português «Nos Limites da Fé», de Matthew Chapman, 2011). Trata-se de um filme tipicamente americano mainstream, isto é, todo ele construído a partir de clichés e moralismos, sendo a própria estrutura um cliché: uma sucessão cadenciada de flash backs em que o passado justifica o presente, tudo muito explicadinho. Tem contudo a característica invulgar de ser uma tragédia: tendo dois personagens centrais, termina com a morte (física) de um e com a perda de fé do outro (o que pode ser considerado por alguns espectadores uma morte espiritual).

Não me entendam mal: o filme é competente e o suspense eficaz, precisamente porque a natureza do cliché tem a propriedade de nos transportar para uma zona de conforto enganadora, rematada por um fim trágico.




A noção de cliché nasce com a fotografia: era essa a palavra usada para designar as chapas de impressão de gravuras e fotos. Cria uma zona de conforto porque, por um lado, nos poupa à enorme trabalheira de redesenhar ou voltar a fotografar uma visão da realidade; e por outro denota um conjunto de ideias já trabalhadas, adquiridas e tão intimamente conhecidas, que dispensam a explicitação integral – o cliché (forma) remete para o lugar-comum (ideia), bastando uma pequena fracção formal para acordar em nós a totalidade da ideia. Levada ao limite, esta economia de recursos expressa-se através de ícones universais – como aqueles que estou a ver aqui no ecrã do meu editor de texto.

Uma vez criada a noção de cliché, ela pôde ser usada como instrumento de análise na literatura e em todas as outras artes e formas de expressão.

O cinema é, julgo eu, o terreno mais fértil para o cliché (apenas seguido de perto pelo teatro), devido ao facto de conjugar a imagem, o texto e o som – três reinos onde o cliché já era cultivado mas que, ao juntarem-se, produzem um salto qualitativo.

Os clichés de imagem e de argumento são mais ou menos fáceis de identificar. Há até quem faça deles o assunto dos seus filmes. É o caso de Quentin Tarantino, a quem nunca vi fazer outra coisa que não fosse um enorme cliché construído como um patchwork de clichés. É claro que os seus filmes apenas resultam (como todos os denotadores de lugares-comuns) para quem está familiarizado com a cultura norte-americana: só um espectador nessas condições poderá achar as efusões hiperbólicas de violência e sangue de Tarantino uma gracinha satírica. É um pouco como contar anedotas de pretos o dia inteiro e depois jurar a pés juntos que se trata de uma graça, nada de sério.

Do lado do som, a dificuldade de reconhecimento dos clichés é muito maior. O carácter quase sempre inconsciente da percepção sonora impede o desmascaramento dos clichés. Não estranhamos que os pneus dos carros passem a vida a chiar nos filmes (coisa que não acontece na vida real), que os becos escuros venham acompanhados do miado de um gato, que o grasnido das gaivotas tenha um tom arrepiante (coisa que não acontece na realidade, por mais irritantes que as gaivotas sejam), etc. No cinema americano não existem cidades sem sirenes (ainda que elas não façam falta ao fio narrativo do filme), tal como, do lado da imagem, não existe ambiente de intimidade num filme americano sem uma escova de dentes (aí está um cliché que o espectador não americano levará algum tempo a adquirir).

Mais uma vez: não me entendam mal. Não pensem que estou aqui para condenar o cliché em cinema, como regra absoluta. Eu próprio estou disposto a usá-lo, sempre que daí resulte uma economia de meios para expor uma ideia nova. Uso-o abundantemente neste texto. Se é possível dar intensidade e veracidade a uma cena pondo os pneus a chiar, porque carga d'água não hei-de usar o cliché?

Onde eu não estou disposto a aceitar a presença de clichés é no discurso e na prática política. Se a ideia é deixar o status quo tal qual ele está e fazer vénias aos lugares-comuns, para quê metermo-nos a fazer política?

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