No passado dia 26, Emmanuel Macron, Pedro Sánchez,
Angela Merkel e Theresa May lançaram um ultimato ao presidente
venezuelano, Nicolás Maduro, dando-lhe 8 dias para convocar
eleições. Se o ultimato não for aceite, aqueles quatro governos
europeus, aos
quais se juntou toda a UE pela voz do seu Conselho, reconhecerão
o autoproclamado presidente interino Juan Guaidó (ao qual dão o
tempo que este achar necessário para convocar eleições). Que terá
acontecido ao respeito pela autodeterminação dos povos?
[texto corrigido em 29/01/2019]
Não poupo críticas ao governo de Nicolás Maduro, mas antes de as exprimir quero chamar a atenção para alguns pequenos pormenores de refinada hipocrisia.
Não poupo críticas ao governo de Nicolás Maduro, mas antes de as exprimir quero chamar a atenção para alguns pequenos pormenores de refinada hipocrisia.
Macron lança um ultimato ao governo
venezuelano na mesma ocasião em que efectua uma visita oficial de 3
dias ao marechal Abdel Fattah al-Sisi – um ditador que tomou o
poder no Egipto pela força das armas, que instaurou a pena de morte
aplicada por tribunais militares, que persegue, tortura, manda
assassinar os seus opositores extra-judicialmente e que recebe dos
governos francês, alemão, britânico e espanhol não só mimos
diplomáticos, mas também armas. Portanto: num caso Macron, sem o
menor arrepio de consciência, vende armas a um ditador (o marechal
Sisi) que alcançou o poder através de um golpe de Estado e o mantém
por meios sangrentos; noutro caso lança um ultimato a um presidente
(Maduro) que foi eleito de forma controversa.
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República
portuguesa, deslocou-se ao Brasil para dar abraços e beijinhos ao
seu «irmão» Jair Bolsonaro, um rematado nazi co-responsável por
perseguições, assassínios e a execução de um golpe palaciano que
destituiu a presidente brasileira eleita (em eleições
incontestadas), para de seguida se tornar presidente (por meios
bastante controversos). O Governo português e a Assembleia da
República fecharam os olhos a esta viagem do Presidente, para a
qual, que eu saiba, não foi concedida qualquer autorização, caso
que acarretaria a perda automática do cargo, taxativamente expressa
na Constituição:
Artigo 129.º (Ausência do território nacional do Presidente da República)
1. O Presidente da República não pode ausentar-se do território nacional sem o assentimento da Assembleia da República ou da sua Comissão Permanente, se aquela não estiver em funcionamento. […]
3. A inobservância do disposto no n.º 1 envolve, de pleno direito, a perda do cargo.
O ministro português dos Negócios Estrangeiros,
Augusto Santos Silva, secundou em declarações
à imprensa e em comunicado
oficial o ultimato lançado por Macron, May, Merkel e Sánchez,
no próprio dia em que estes o fizeram. Trata-se portanto de posições
previamente concertadas. Um mês antes, o ministro português parecia
de boas relações com o regime venezuelano – tanto, que se
ofereceu para enviar comida e medicamentos. Não os ofereceu à oposição; ofereceu-os ao
presidente em exercício, Nicolás Maduro.
O Governo português, esse mesmo que anda há mais
de um ano a encanar a perna à rã para não aplicar as decisões da
Assembleia da República, nomeadamente no que diz respeito à contratação e reposição de direitos dos
professores e dos investigadores científicos, acha que 8 dias é um prazo
perfeitamente razoável para intimar o presidente venezuelano eleito
(bem ou mal) em exercício a convocar eleições. 8 dias?!
O Governo português não deu 8 dias, nem 8
semanas, nem 8 meses a uma dúzia de países da África Negra para
fazerem eleições democráticas; nem aos regimes autoritários do Norte de África; nem lançou ultimatos a vários
países da América Latina afectados por regimes bonapartistas ou
ditatoriais; não se rala nada com os manifestantes pacíficos mortos
a tiro nas ruas da Nicarágua nem com os prisioneiros políticos nicaraguenses.
Não, simplesmente acordou um dia com os pés de fora e resolveu
embirrar com um regime manhoso muito em particular: o da Venezuela. Terá esta hipocrisia alguma coisa a ver com os interesses comerciais norte-americanos, aos quais conviria controlar a região e bloquear o fornecimento à China de uma das maiores reservas de petróleo do Mundo?
Entendamo-nos: não poupo críticas a Nicolás
Maduro. Critico as perseguições e encarceramentos, critico o
caudilhismo, critico a aposta num sistema extractivista exportador que
esgota os recursos naturais da Venezuela, deixando-a à míngua de
produção de bens essenciais à sobrevivência da população,
critico a teima em não decretar uma moratória da dívida soberana,
cujo pagamento reduz os meios para dar de comer à população, etc.
Nada disto, porém, dá o direito de apoiar
ingerências nos assuntos internos e na autodeterminação de outros
povos. Se uma maioria do povo venezuelano escrevesse uma carta ao
povo português, pedindo ajuda para derrubar Maduro, outro galo
cantaria. Caso contrário, o Governo português, embora tenha o
direito de dizer que não gosta do regime venezuelano ou doutro
qualquer, embora possa até fazer birra e decretar o bloqueio de
importações e exportações (sujeitando-se assim à crítica dos
povos de todo o mundo), não pode meter-se onde não é chamado.
É inaceitável que pratique actos diplomáticos que podem elevar a
um novo patamar o clima latente de guerra civil na Venezuela.
Ultimatos deste tipo tendem a gerar conflitos
armados que podem acabar num holocausto. Por tudo isto, seria da mais
elementar prudência que o Governo, antes de tomar iniciativas tão
extremas, consultasse a Assembleia da República, para evitar
fracturas que não se sabe até onde poderão ir.
Não sei dizer se a Constituição ainda faz lei
nos tempos que vão correndo, mas à cautela recordo os seguintes artigos da carta de princípios aprovada «por maioria de dois terços dos Deputados em
efectividade de funções»:
Artigo 7.º (Relações internacionais)
1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade.
[…]
3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.
[…]
Obrigado Rui pela clarividência.
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