28/01/19

A hipocrisia europeia face à Venezuela



No passado dia 26, Emmanuel Macron, Pedro Sánchez, Angela Merkel e Theresa May lançaram um ultimato ao presidente venezuelano, Nicolás Maduro, dando-lhe 8 dias para convocar eleições. Se o ultimato não for aceite, aqueles quatro governos europeus, aos quais se juntou toda a UE pela voz do seu Conselho, reconhecerão o autoproclamado presidente interino Juan Guaidó (ao qual dão o tempo que este achar necessário para convocar eleições). Que terá acontecido ao respeito pela autodeterminação dos povos?
 
[texto corrigido em 29/01/2019]
  
Não poupo críticas ao governo de Nicolás Maduro, mas antes de as exprimir quero chamar a atenção para alguns pequenos pormenores de refinada hipocrisia.
  
Macron lança um ultimato ao governo venezuelano na mesma ocasião em que efectua uma visita oficial de 3 dias ao marechal Abdel Fattah al-Sisi – um ditador que tomou o poder no Egipto pela força das armas, que instaurou a pena de morte aplicada por tribunais militares, que persegue, tortura, manda assassinar os seus opositores extra-judicialmente e que recebe dos governos francês, alemão, britânico e espanhol não só mimos diplomáticos, mas também armas. Portanto: num caso Macron, sem o menor arrepio de consciência, vende armas a um ditador (o marechal Sisi) que alcançou o poder através de um golpe de Estado e o mantém por meios sangrentos; noutro caso lança um ultimato a um presidente (Maduro) que foi eleito de forma controversa.
  
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República portuguesa, deslocou-se ao Brasil para dar abraços e beijinhos ao seu «irmão» Jair Bolsonaro, um rematado nazi co-responsável por perseguições, assassínios e a execução de um golpe palaciano que destituiu a presidente brasileira eleita (em eleições incontestadas), para de seguida se tornar presidente (por meios bastante controversos). O Governo português e a Assembleia da República fecharam os olhos a esta viagem do Presidente, para a qual, que eu saiba, não foi concedida qualquer autorização, caso que acarretaria a perda automática do cargo, taxativamente expressa na Constituição:
Artigo 129.º (Ausência do território nacional do Presidente da República)
1. O Presidente da República não pode ausentar-se do território nacional sem o assentimento da Assembleia da República ou da sua Comissão Permanente, se aquela não estiver em funcionamento. […]
3. A inobservância do disposto no n.º 1 envolve, de pleno direito, a perda do cargo.
O ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, secundou em declarações à imprensa e em comunicado oficial o ultimato lançado por Macron, May, Merkel e Sánchez, no próprio dia em que estes o fizeram. Trata-se portanto de posições previamente concertadas. Um mês antes, o ministro português parecia de boas relações com o regime venezuelano – tanto, que se ofereceu para enviar comida e medicamentos. Não os ofereceu à oposição; ofereceu-os ao presidente em exercício, Nicolás Maduro.
  
O Governo português, esse mesmo que anda há mais de um ano a encanar a perna à rã para não aplicar as decisões da Assembleia da República, nomeadamente no que diz respeito à contratação e reposição de direitos dos professores e dos investigadores científicos, acha que 8 dias é um prazo perfeitamente razoável para intimar o presidente venezuelano eleito (bem ou mal) em exercício a convocar eleições. 8 dias?!
  
O Governo português não deu 8 dias, nem 8 semanas, nem 8 meses a uma dúzia de países da África Negra para fazerem eleições democráticas; nem aos regimes autoritários do Norte de África; nem lançou ultimatos a vários países da América Latina afectados por regimes bonapartistas ou ditatoriais; não se rala nada com os manifestantes pacíficos mortos a tiro nas ruas da Nicarágua nem com os prisioneiros políticos nicaraguenses. Não, simplesmente acordou um dia com os pés de fora e resolveu embirrar com um regime manhoso muito em particular: o da Venezuela. Terá esta hipocrisia alguma coisa a ver com os interesses comerciais norte-americanos, aos quais conviria controlar a região e bloquear o fornecimento à China de uma das maiores reservas de petróleo do Mundo?
  
Entendamo-nos: não poupo críticas a Nicolás Maduro. Critico as perseguições e encarceramentos, critico o caudilhismo, critico a aposta num sistema extractivista exportador que esgota os recursos naturais da Venezuela, deixando-a à míngua de produção de bens essenciais à sobrevivência da população, critico a teima em não decretar uma moratória da dívida soberana, cujo pagamento reduz os meios para dar de comer à população, etc.
  
Nada disto, porém, dá o direito de apoiar ingerências nos assuntos internos e na autodeterminação de outros povos. Se uma maioria do povo venezuelano escrevesse uma carta ao povo português, pedindo ajuda para derrubar Maduro, outro galo cantaria. Caso contrário, o Governo português, embora tenha o direito de dizer que não gosta do regime venezuelano ou doutro qualquer, embora possa até fazer birra e decretar o bloqueio de importações e exportações (sujeitando-se assim à crítica dos povos de todo o mundo), não pode meter-se onde não é chamado. É inaceitável que pratique actos diplomáticos que podem elevar a um novo patamar o clima latente de guerra civil na Venezuela.
  
Ultimatos deste tipo tendem a gerar conflitos armados que podem acabar num holocausto. Por tudo isto, seria da mais elementar prudência que o Governo, antes de tomar iniciativas tão extremas, consultasse a Assembleia da República, para evitar fracturas que não se sabe até onde poderão ir.
  
Não sei dizer se a Constituição ainda faz lei nos tempos que vão correndo, mas à cautela recordo os seguintes artigos da carta de princípios aprovada «por maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções»:
Artigo 7.º (Relações internacionais)
1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade.
[…]
3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.
[…]

1 comentário: