09/02/19

À conta dos enfermeiros, desmascarou-se o pendor de direita a uns quantos opinadores

É assustadora a quantidade de dislates que ouvimos esta semana na comunicação social, nas colunas de opinião e nas mesas de comentaristas a propósito da greve dos enfermeiros.

Os direitos cívicos de um funcionário público não têm o mesmo grau e amplitude que os de um funcionário privado?

Foi com assombro que vi respeitáveis opinadores, alguns com estatuto de cientistas sociais, afirmarem que os funcionários públicos não podem ter a mesma latitude e liberdade de fazer greve que é concedida a quem trabalha para uma empresa privada. O argumento avançado é o de que no caso do funcionário público o patrão somos nós todos. Por outras palavras: se o patrão for o Belmiro de Azevedo, ó meus queridos, façam greve à vontade, que até me dá gozo ver; mas se o patrão for eu, tenham lá juizinho, que eu não vos admito tais liberdades.
O que estes opinadores propõem tacitamente é uma nova alteração às leis laborais, para que passe a haver grevistas de primeira e grevistas de segunda – tal como no tempo do Salazar havia cidadãos de primeira e cidadãos de segunda categoria.
  

Crowdfunding: admissível para tudo, excepto para fundos de greve?

Juro, aconteceu mesmo: gente com responsabilidade académica e científica veio a público afirmar que não é admissível a recolha de donativos para constituir um fundo de greve.
E quermesses, podemos fazer? E rifas? E venda de pastéis de bacalhau à beira da estrada?
Segundo os mesmos eruditos doutores, no caso de recolha de fundos os doadores não podem ser anónimos, temos de saber quem doou. Por outras palavras: se eu for vender pastéis de bacalhau à beira da estrada para recolher fundos de greve, quem compra um pastel não pode limitar-se a comê-lo, deve assinar um termo de responsabilidade publicamente difundido: «eu, abaixo-assinado, declaro que comprei este pastel de bacalhau com o deliberado intuito de ajudar os enfermeiros a fazerem greve...».
  

Mas afinal quem são os verdadeiros responsáveis pela realização duma greve?

Outro argumento aduzido contra a recolha de fundos de greve através de crowdfunding, no caso da greve dos enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde (SNS), diz respeito ao seguinte: este método de angariação de fundos permitiria que as empresas de saúde privada dessem dinheiro para os enfermeiros, por meio de greves, minarem o SNS (e sabe-se lá, talvez mesmo Donald Trump tenha contribuído, além da minha vizinha do lado).
Ou seja: o gestor do BES-Saúde entra no sindicato dos enfermeiros de cheque na mão, deposita-o na secretária da direcção e, naquele tom de comando sem admissão de réplica, tão característico das pessoas ricas e poderosas, emite o seguinte ditame: «olhe, faça aí umas greves, para rebentarmos com o SNS e acabarmos de vez com a concorrência que ele faz ao meu negócio; depois se quiser vá bater à minha porta, que eu arranjo-lhe um empregozinho».
Aos génios que produziram esta pérola do argumentário político nacional nem passou pela cabeça que os enfermeiros poderiam esperar calmamente que o poderoso doador saísse porta fora, para então fazerem uma greve por tempo indeterminado, até que os médicos e enfermeiros em falta no SNS fossem contratados pelo actual governo de neoliberais encapotados e se acabasse de vez não com o SNS, mas sim com coisas como os cheques-saúde pagos pelo contribuinte em benefício das empresas privadas de saúde.
Os argumentos contra o crowdfunding não são apenas estúpidos. São também politicamente mal-intencionados, pois partem do princípio de que: 1) os trabalhadores são todos uns broncos incapazes de tomarem decisões segundo o seu próprio juízo; 2) a única motivação capaz de pôr os trabalhadores em marcha é de carácter economicista e mesquinho; 3) as greves políticas não existem e jamais deveriam existir.
Quase todos os comentadores e jornalistas que ouvi na TV acrescentam a esta coproanálise a seguinte pérola de ignorância: a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, malandra, «decretou» uma greve perversa. Eu diria que está na altura de irmos ver o que diz a lei sobre quem tem o direito legal de declarar greve; desconfio que uma greve decretada por uma bastonária seria automaticamente ilegal – ora não foi esse o caso.
Admitamos, contudo, que tinha sido a bastonária a decretar a greve e que podia fazê-lo. Nesse caso seria preciso esclarecer o seguinte: 1) quem faz greve não é uma massa amorfa e abstracta de coisos e coisas; quem faz greve é cada trabalhador, de acordo com a sua própria consciência, a sua própria conveniência e o seu próprio arbítrio; 2) não é por a bastonária dizer «greve!» que os enfermeiros entram ou não em greve; trata-se de uma decisão primeiro colectiva, depois pessoal (e é por isso que tantas vezes as direcções sindicais que praticam métodos incorrectos ou omissos de discussão e deliberação convocam greves fracassadas).
Não basta alguém gritar «greve!» para que as pessoas desatem a fazer greve; mesmo que tenham lá nas traseiras do sindicato um cofre a abarrotar com fundos de greve – na verdade, são raríssimos os trabalhadores que gostam de fazer greve; é coisa para a qual só será possível arrastá-los em desespero de causa.
Por isso também se percebe que a generalidade das luminárias que foram botar opinião nunca participou num plenário de trabalhadores e nunca fez greve. Põem-se a comentar sobre coisas que não entendem e nunca viram de perto.
  

Eu gostava de ser aumentado, mas não posso porque não sou médico...

Finalmente, foi classificado de «absurdo» (ouvi esta palavra pelo menos a quatro comentadores) o pedido de aumento de 400 euros para os enfermeiros em início de carreira. O argumento é o seguinte: ficariam a ganhar mais que os médicos em início de carreira e isso é absurdo. No entanto, ninguém teve a bondade de explicar em que consiste o suposto absurdo.
Ora bem, imaginemos então que, num futuro próximo, um médico estreante tem o salário de 800 euros. Então, por este raciocínio, um enfermeiro estreante não deveria auferir mais de, digamos, 600 euros. E assim por diante. Ora, se os médicos ganham pouco, a culpa não é dos enfermeiros. Por que razão teriam de ser estes a sofrer a eventual falta de iniciativa e combatividade dos médicos?
E os canalizadores, podem ganhar mais que um médico? E os tradutores? E os ministros? E os gestores dos balcões bancários?...
  

E ainda...

Houve até uma comentadora que se atreveu a dizer que era inconcebível que os enfermeiros propusessem a idade da reforma aos 57 anos e que não via em lado nenhum motivos para a classificação de profissão de desgaste rápido. Não creio que a tal comentadora tenha passado longos anos da sua vida a ouvir gemidos de manhã à noite, a limpar rabos, a fazer turnos contínuos e horas extraordinárias, das quais não pode pedir dispensa, por falta de contratação de enfermeiros...
Este carrossel de disparates ilustra a atitude geral dos comentadores e opinadores: todos acham que têm autoridade para alvitrar o que os enfermeiros (e de resto todas as outras categorias profissionais) podem ou não podem reivindicar, o que é que lhes convém, como devem proceder... É o fim da autonomia organizativa dos trabalhadores, tout court. É o império das sumidades patriarcais e tutelares, incarnadas por actores que confundem informação (ou desinformação) e entretenimento.
Irra. Esta foi uma semana particularmente estupidificante na história da comunicação social em Portugal.

[Texto corrigido e aumentado em 10/02/2019. Adenda:]

Após a divulgação inicial deste artigo foi publicada no DN uma entrevista com a bastonária da Ordem dos Enfermeiros que esclarece muitas das dúvidas e desinformações divulgadas na comunicação social e cuja leitura aconselho vivamente.

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