Os direitos cívicos de um funcionário público não têm o mesmo grau e amplitude que os de um funcionário privado?
Foi com assombro que vi respeitáveis opinadores,
alguns com estatuto de cientistas sociais, afirmarem que os
funcionários públicos não podem ter a mesma latitude e liberdade
de fazer greve que é concedida a quem trabalha para uma empresa
privada. O argumento avançado é o de que no caso do funcionário
público o patrão somos nós todos. Por outras palavras: se o patrão
for o Belmiro de Azevedo, ó meus queridos, façam greve à vontade,
que até me dá gozo ver; mas se o patrão for eu, tenham lá juizinho, que eu não vos admito tais
liberdades.
O que estes
opinadores
propõem
tacitamente é uma nova alteração às leis laborais, para que passe a haver grevistas
de primeira e grevistas de segunda – tal como no tempo do Salazar
havia cidadãos de primeira e cidadãos de segunda categoria.
Crowdfunding: admissível para tudo, excepto para fundos de greve?
Juro, aconteceu mesmo: gente com responsabilidade
académica e científica veio a público afirmar que não é
admissível a recolha de donativos para constituir um fundo de greve.
E quermesses, podemos fazer? E rifas? E venda de
pastéis de bacalhau à beira da estrada?
Segundo os mesmos eruditos doutores,
no caso de recolha de fundos os doadores não podem ser anónimos,
temos de saber quem doou. Por outras palavras: se eu for vender
pastéis de bacalhau à beira da estrada para recolher fundos de
greve, quem compra um pastel não pode limitar-se a comê-lo, deve
assinar um termo de responsabilidade publicamente difundido: «eu, abaixo-assinado, declaro
que comprei este pastel de bacalhau com o deliberado intuito de
ajudar os enfermeiros a fazerem greve...».
Mas afinal quem são os verdadeiros responsáveis pela realização duma greve?
Outro argumento aduzido contra a recolha de fundos
de greve através de crowdfunding, no caso da greve dos
enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde (SNS), diz respeito ao
seguinte: este método de angariação de fundos permitiria que as
empresas de saúde privada dessem dinheiro para os enfermeiros, por
meio de greves, minarem o SNS (e sabe-se lá, talvez mesmo Donald
Trump tenha contribuído, além da minha vizinha do lado).
Ou seja: o gestor do BES-Saúde entra no sindicato
dos enfermeiros de cheque na mão, deposita-o na secretária da
direcção e, naquele tom de comando sem admissão de réplica, tão
característico das pessoas ricas e poderosas, emite o seguinte
ditame: «olhe, faça aí umas greves, para rebentarmos com o SNS e
acabarmos de vez com a concorrência que ele faz ao meu negócio;
depois se quiser vá bater à minha porta, que eu arranjo-lhe um
empregozinho».
Aos génios que produziram esta pérola do
argumentário político nacional nem passou pela cabeça que os
enfermeiros poderiam esperar calmamente que o poderoso doador saísse
porta fora, para então fazerem uma greve por tempo indeterminado,
até que os médicos e enfermeiros em falta no SNS fossem contratados
pelo actual governo de neoliberais encapotados e se acabasse de vez
não com o SNS, mas sim com coisas como os cheques-saúde pagos pelo contribuinte
em benefício das empresas privadas de saúde.
Os argumentos contra o crowdfunding não são apenas estúpidos. São também politicamente mal-intencionados, pois
partem do princípio de que: 1) os trabalhadores são todos uns
broncos incapazes de tomarem decisões segundo o seu próprio juízo; 2) a única motivação capaz de pôr os trabalhadores em
marcha é de carácter economicista e mesquinho; 3) as greves políticas não
existem e jamais deveriam existir.
Quase todos os comentadores e jornalistas que ouvi
na TV acrescentam a esta coproanálise a seguinte pérola de
ignorância: a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, malandra,
«decretou» uma greve perversa. Eu diria que está na altura de
irmos ver o que diz a lei sobre quem tem o direito legal de declarar
greve; desconfio que uma greve decretada por uma bastonária seria automaticamente ilegal – ora não foi esse
o caso.
Admitamos, contudo, que tinha sido a bastonária a
decretar a greve e que podia fazê-lo. Nesse caso seria preciso
esclarecer o seguinte: 1) quem faz greve não é uma massa amorfa e
abstracta de coisos e coisas; quem faz greve é cada trabalhador, de
acordo com a sua própria consciência, a sua própria conveniência
e o seu próprio arbítrio; 2) não é por a bastonária dizer
«greve!» que os enfermeiros entram ou não em greve; trata-se de
uma decisão primeiro colectiva, depois pessoal (e é por isso que
tantas vezes as direcções sindicais que praticam métodos
incorrectos ou omissos de discussão e deliberação convocam greves fracassadas).
Não basta alguém gritar «greve!» para que as pessoas desatem a fazer greve; mesmo que tenham lá nas traseiras do sindicato um cofre a abarrotar com fundos de greve – na verdade, são raríssimos os trabalhadores que gostam de fazer greve; é coisa para a qual só será possível arrastá-los em desespero de causa.
Não basta alguém gritar «greve!» para que as pessoas desatem a fazer greve; mesmo que tenham lá nas traseiras do sindicato um cofre a abarrotar com fundos de greve – na verdade, são raríssimos os trabalhadores que gostam de fazer greve; é coisa para a qual só será possível arrastá-los em desespero de causa.
Por isso também se percebe que a generalidade das
luminárias que foram botar opinião nunca participou num plenário
de trabalhadores e nunca fez greve. Põem-se a comentar sobre coisas
que não entendem e nunca viram de perto.
Eu gostava de ser aumentado, mas não posso porque não sou médico...
Finalmente, foi classificado de «absurdo» (ouvi
esta palavra pelo menos a quatro comentadores) o pedido de aumento de
400 euros para os enfermeiros em início de carreira. O argumento é
o seguinte: ficariam a ganhar mais que os médicos em início de
carreira e isso é absurdo. No entanto, ninguém teve a bondade de explicar em que consiste o suposto absurdo.
Ora bem, imaginemos então que, num futuro próximo, um médico
estreante tem o salário de 800 euros. Então, por este raciocínio,
um enfermeiro estreante não deveria auferir mais de, digamos, 600 euros. E
assim por diante. Ora, se os médicos ganham pouco, a culpa não é
dos enfermeiros. Por que razão teriam de ser estes a sofrer a
eventual falta de iniciativa e combatividade dos médicos?
E os canalizadores, podem ganhar mais que um
médico? E os tradutores? E os ministros? E os gestores dos
balcões bancários?...
E ainda...
Houve até uma comentadora que se atreveu a dizer
que era inconcebível que os enfermeiros propusessem a idade da
reforma aos 57 anos e que não via em lado nenhum motivos para a classificação de profissão de desgaste rápido. Não creio que a
tal comentadora tenha passado longos anos da sua vida a ouvir gemidos de
manhã à noite, a limpar rabos, a fazer turnos contínuos e horas
extraordinárias, das quais não pode pedir dispensa, por falta de contratação de enfermeiros...
Este carrossel de disparates ilustra a atitude geral
dos comentadores e opinadores: todos acham que têm autoridade para alvitrar o que os enfermeiros (e de resto todas as outras categorias
profissionais) podem ou não podem reivindicar, o que é que lhes
convém, como devem proceder... É o fim da autonomia organizativa
dos trabalhadores, tout court. É o império das sumidades
patriarcais e tutelares, incarnadas por actores que confundem informação (ou desinformação) e entretenimento.
Irra. Esta foi uma semana particularmente
estupidificante na história da comunicação social em Portugal.
[Texto corrigido e aumentado em 10/02/2019. Adenda:]
Após a divulgação inicial deste artigo foi publicada no DN uma entrevista com a bastonária da Ordem dos Enfermeiros que esclarece muitas das dúvidas e desinformações divulgadas na comunicação social e cuja leitura aconselho vivamente.
[Texto corrigido e aumentado em 10/02/2019. Adenda:]
Após a divulgação inicial deste artigo foi publicada no DN uma entrevista com a bastonária da Ordem dos Enfermeiros que esclarece muitas das dúvidas e desinformações divulgadas na comunicação social e cuja leitura aconselho vivamente.
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