10/02/19

Bosta de comunicação social

A importância da bosta rolada pela comunicação social excede a sua própria dimensão 

Perdoem-me a violência indecorosa do título e o facto de glosar um mote que não é meu. Acontece que, assim de repente, não encontro maneira mais sintética de exprimir o meu asco pela generalidade da comunicação social portuguesa. Haverá excepções? Talvez. Mas o facto é que a totalidade dos meios de comunicação dominantes, aqueles a que toda a gente acede diariamente, queira ou não queira, por estarem em cima das mesas e ecrãs dos cafés, dos restaurantes e até dos balcões de atendimento dos serviços públicos, são meios de desinformação, de mal-informação, de deturpação e de falsificação; são instrumentos de ataque à lucidez.

  
Quando digo «desinformação», quero significar: publicação de mentiras; publicação de interpretações erradas ou estúpidas de dados científicos e estatísticos e de acontecimentos factuais; publicação de acontecimentos irrelevantes, com o efeito objectivo de omitir ou desviar a atenção de temas importantes relacionados; incompetência na construção das notícias; confusão total entre entretenimento, informação e opinião.
  
Encontramos na comunicação social dominante dois vícios que concorrem para o mesmo resultado final. São eles a incompetência e a má-fé. De ambos os vícios encontramos exemplos abundantes a propósito de dois acontecimentos recentes na vida pública portuguesa: 1) as expressões e ataques racistas; 2) os ataques à greve dos enfermeiros (de que já falei aqui).
  
Na maioria dos órgãos de informação online portugueses, e só com raras excepções, não encontramos ligações (links) para as fontes que nos permitiriam confirmar a correcção das notícias publicadas e aferir a interpretação dos factos. Mesmo uma coisa tão simples como a divulgação de um novo decreto carece por regra de ligações onde possamos consultá-lo. É natural esta ausência, visto que os artigos têm frequentemente um pendor mais doutrinário que informativo – a inclusão de referências externas provocaria a automática desqualificação dos artigos.
  
Quando cada linha impressa tinha um enorme peso nas finanças de um jornal, era natural que não encontrássemos no final do artigo uma extensa lista de fontes e referências – isso ocuparia demasiado espaço e levaria o jornal à falência. Hoje em dia, contudo, não existe qualquer razão atendível – económica, funcional ou outra – para que um jornal online não nos forneça todas as ligações, fontes e referências necessárias para aferirmos o artigo, desenvolvermos a nossa própria investigação e interpretação.
  
As televisões e jornais caracterizam-se agora pelo uso e abuso das colunas de opinião. O leitor habituou-se a procurar apenas os artigos, os autores e os programas que confirmam as opiniões que ele, leitor, já tem à partida – a comunicação social tornou-se uma máquina eficaz de perpetuação do preconceito. Não é por isso de estranhar que alguns leitores apenas comprem o jornal X à quarta-feira, para lerem apenas a coluna de opinião do autor Y, deitando o resto do jornal no cesto dos papéis. À conta disso, o jornal vende.

  
No que diz respeito a manipulação, a situação é particularmente grave no panorama lusitano, com os canais televisivos a pagarem a comentadores para estes virem em horário nobre defender pontos de vista «justificados» por estatísticas completamente falsificadas. Ou truncando documentos oficiais, como sucedeu quando a SIC e o CM quiseram «provar» que um destacado activista das liberdades cívicas e da luta contra o racismo «celebra [com a Câmara de Lisboa] contratos de 191 mil euros» por ajuste directo e em proveito próprio [ver anexos sobre esse caso no final deste artigo]. Perante tais práticas, nenhuma redacção, nenhum jornalista pode dizer: estou inocente.
  
De facto, a comunicação social portuguesa encontra-se numa cruzada permanente para isolar os elementos mais conscientes e lutadores da população em diversas frentes da luta social.
  
Nas últimas semanas, catadupas de programas de entretenimento/notícia alimentaram descaradamente o racismo, a violência, a xenofobia; de forma directa ou indirecta, deram a palavra a grupos de extrema direita e neonazis que não tinham expressão significativa em Portugal. Não haja ilusões: os meios de comunicação social dominantes estão a criar, a partir do nada, uma onda de extrema direita que não existia no nosso país.
  
Não me entendam mal: não estou a dizer que em Portugal não existia racismo; não estou a dizer que em Portugal não existiam fascistas e organizações de extrema direita. Tudo isso existia mas não tinha o peso necessário para influir no rumo da vida política, institucional e legislativa. Eles já cá estavam, mas em termos de corrente política organizada eram tão insignificantes que, ao juntarem-se no Largo do Camões, em Lisboa, para celebrarem o Dia de Portugal, bastaria que caísse um piano do céu para os extinguir duma assentada só. Agora, graças à acção da comunicação social dominante, estão a ganhar presença no tabuleiro político. Nesta acção bem orquestrada nenhuma redacção, nenhum jornalista pode invocar inocência.
  
O racismo e a xenofobia não nasceram ontem em Portugal. Sentem-se no dia-a-dia. São patentes nos métodos de policiamento dos transportes públicos na periferia das zonas metropolitanas. Segregam, intimidam e oprimem em toda a parte: nas repartições públicas, na selecção escolar, nos gabinetes das assistentes sociais, nos cafés, nos locais de trabalho; na forma como funcionam as instituições públicas e privadas. Não são um acontecimento excepcional, são sistémicos. Estão entranhados na cultura portuguesa. Até eu, enquanto homem, branco, com uma profissão respeitável, lisboeta, os sentia de cada vez que ia ao Porto – onde era apontado a dedo como «mouro», essa categoria rácica ou étnica constituída para garantir a opressão e a discriminação desde os tempos de Afonso Henriques (digo isto na forma verbal passada porque já não ponho os pés no Norte há uns anitos e não quero correr o risco de ser injusto).
  
É ridículo pensar que os fascistas se evaporaram no éter de um dia para o outro, no pós-1974. Tirando o caso de Marcelo Caetano e de uma dúzia de inspectores da PIDE, todos eles permaneceram nos aparelhos partidários, no Governo, no aparelho de Estado, nas universidades (neste caso houve de facto meia dúzia de saneamentos), nas empresas. Há 45 anos que esses vampiros, para usar os termos de Zeca Afonso, se agarram como lapas a toda a espécie de lugares estratégicos na sociedade portuguesa; só que até hoje mantinham um perfil discreto; e agora começam a sentir condições para deitarem a cabeça de fora, para saírem do armário. Se isto acontece, não é por obra divina – é graças aos meios de comunicação dominantes. Não é credível que apenas «por acaso» todas essas aberrações provenientes do passado tenham ganho, de forma simultânea e em todos os grandes meios de comunicação, um vulto que não tinham. A coisa é tanto mais grave, quanto nenhum jornal ou canal de televisão precisa de sugerir que eles têm razão ou que o projecto político protofascistóide é melhor ou pior que os demais; basta dar-lhes voz todos os dias e está cumprido o frete.
  
A cultura portuguesa gosta de cultivar um estilo displicente e distanciado em relação a tudo quanto se passa «lá fora». Para tudo é ostentado esse sinal distintivo do racismo e da xenofobia que consiste em separar o mundo em duas categorias bem demarcadas: «nós» e «eles». Esta tem sido a típica atitude pública em relação ao que acontece nos EUA, em França, no Brasil, na Hungria, na Itália, etc.: «nós» não temos nada a ver com «eles». Tudo se passa como se o carrossel dos acontecimentos internacionais fosse mero entretenimento servido à mesa do jantar pelas cadeias televisivas. Ora, não é assim. Nós não vivemos numa ilha isolada e inacessível ao resto do mundo. O papel dos meios de comunicação social dominantes e das redes digitais em lugares como o Brasil reproduz-se aqui também, pelos mesmos meios, nos mesmos moldes, sem tirar nem pôr. Não somos umas criaturas abençoadas por deus, vivendo num paraíso onde a bosta não cai (um paraíso kitsch, segundo Milan Kundera). Não temos – como alguns comentadores, presidentes da República, sociólogos, politólogos e dirigentes políticos gostam de dizer –, não temos um carácter à parte, uma brandura de costumes, uma especificidade que nos distingue de tudo o mais à face da Terra. Somos presas tão fáceis das correntes fascistóides e de extrema direita nas redes digitais e na comunicação social como qualquer outro povo, deste ou do outro lado do Atlântico. O Estado Novo para nós não foi uma vacina que nos imunizou contra infecções a que todos os outros povos estariam sujeitos. Foi um micróbio que nunca chegou a ser definitivamente pasteurizado. E ou começamos já a reconhecer essa debilidade, ou entraremos como cordeiros mansos numa nova era (ainda indeterminada) de atrocidades, com a mesma facilidade com que entrámos no redil de Salazar.
  
Em suma: se futuramente vier a surgir uma onda de extrema direita tão forte como a que tem surgido noutros países à nossa volta, isso se deverá por inteiro à acção deliberada da comunicação social dominante.
  
Outra nota importante: devia ser proibida a reprodução de canais televisivos e a distribuição gratuita de jornais, públicos ou privados, nos serviços e repartições públicas. Esta medida devia ser aplicada com carácter de urgência, de modo a entrar em vigor antes do início das campanhas eleitorais que se avizinham, para evitar, pelo menos em parte, os efeitos nefastos de campanhas massivas de desinformação. Já para não falar no abuso que é sujeitar os utentes de repartições e cafés ao magnetismo irresistível de um ecrã com imagens em movimento para vender toda a espécie de produtos inúteis. A difusão de publicidade comercial nos serviços públicos – incluindo universidades, hospitais e balcões de atendimento – é um abuso aberrante.
  
Nota final: seria injusto não reconhecer aqui o mérito de alguns meios de comunicação que não pertencem à corrente dominante (e que por isso têm um peso diminuto na sociedade). Entre eles refiro a RTP2, onde encontramos alguns programas genuinamente informativos e que até ganharam prémios internacionais em razão da sua competência, do seu rigor informativo e científico e da sua correcção formal, como é o caso da Biosfera. Existem também alguns periódicos (mas nenhum diário) meritórios que procurarei doravante assinalar neste blog.
  
  
Fontes e referências:
A Morte da Competência, de Tom Nichols, Quetzal Editores, 2018.

Anexo 1: [ Uma Página Numa Rede Social, 25 de janeiro às 21:26 ]
«A manipulação que está a ser feita sobre o salário de Mamadou Ba é ainda mais grave do que parece. Na origem, ela consistiu num ataque da extrema-direita portuguesa contra um dirigente do SOS Racismo.
Para se perceber como este ataque foi parar aos jornais de referência portugueses, em forma de notícia insuspeita, eis a cronologia desta grave situação:
Dia 23 - Habituais promotores de conteúdos do PNR publicam o "escândalo" do salário de Mamadou Ba em vários grupos de redes sociais.
Dia 24 - O Correio da Manhã faz eco do conteúdo da malta da extrema-direita e repete a manipulação, mencionando os 191 mil euros, mas sem explicar que correspondem ao valor salarial de vários anos de trabalho.
Dia 25 - A SIC junta-se à manipulação e amplia-a no seu noticiário televisivo, referindo "quase 200 mil euros", mas sempre sem explicar a natureza do valor em causa.
O que estes jornais fizeram com esta estória não é "informação", per se. É precisamente o contrário.
[…]
Fontes e referências:
http://www.base.gov.pt/Base/pt/Pesquisa/Contrato?a=924339
http://www.base.gov.pt/Base/pt/Pesquisa/Contrato?a=489776
https://www.am-lisboa.pt/doc…/1410786109F6qXZ0sl1Tx81UP5.pdf
https://www.cmjornal.pt/…/assessor-do-bloco-de-esquerda-cel…
https://sicnoticias.sapo.pt/…/2019-01-25-Assessor-do-Bloco-… »
Anexo 2:
Da incompetência e da confusão fatal entre informação e entretenimento trata sobejamente Tom Nichols, em A Morte da Competência [ed. Quetzal, 2018], no capítulo sobre a imprensa.
«[...] numa notícia que apareceu na primeira página do Washington Post há mais de 30 anos, dizia-se que a Irlanda era membro da NATO, o que era uma surpresa não só para o povo da Irlanda, célebre pela sua neutralidade, mas também para a União Soviética e para os Estados Unidos. Toda a gente comete erros, incluindo peritos, jornalistas, editores e críticos. Acontece.
Contudo, estes erros são muito mais frequentes no novo mundo do jornalismo do século XXI. Pior do que isso, por causa da Internet, as informações incorrectas espalham-se muito mais depressa [do que a capacidade de as confirmar] e resistem durante muito mais tempo.» [p. 181]
«[...] há mais notícias a circular e, no entanto, as pessoas parecem menos informadas, uma tendência que remonta há pelo menos 25 anos.» [p. 182]
Das dezenas de exemplos apresentados por Tom Nichols para expor a decadência da comunicação social dominante, destaco duas notícias particularmente caricatas: uma notícia intitulava-se «Sabia Que o Chocolate Pode Ajudá-lo a Perder Peso?»; outra revelava «11 Factos Fundamentais para Compreender a Crise Israelo-Árabe», entre os quais se contava uma ponte Gaza-Cisjordânia (que, evidentemente, não existe). A notícia do chocolate, que fez furor, foi engendrada por um brincalhão que quis demonstrar (e conseguiu!) a estupidez da maioria das redacções hoje em dia; vinha assinada por um cientista chamado Johannes Bohannon, do Instituto de Alimentação e Saúde. Pequeno problema: nem o cientista nem o instituto existem.

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