Esta manhã tive a triste ideia de espreitar as notícias da TVI4, onde apanhei com uma notícia sobre Sérgio Moro numa conferência sobre corrupção e leis (VII Fórum Jurídico de Lisboa, 29-30 do mês corrente), seguida de outra sobre cancro da pele e os malefícios do sol (entremeadas pelas habituais notícias sobre crimes domésticos). O que têm as duas notícias em comum, é o que veremos de seguida.
É bem conhecido e dispensa apresentações o
papel do juiz Sérgio Moro no derrube do anterior governo brasileiro e
na ascensão ao poder de um regime de extrema-direita, encabeçado
pelo actual presidente Jair Bolsonaro. O que me interessa aqui
destacar é outro aspecto badalado na comunicação social
portuguesa: a ideia de que a nomeação deste juiz para o cargo de
ministro do governo de Bolsonaro constitui em si mesma uma perversão
do Estado democrático e de direito. Esta ideia é apresentada como
uma evidência natural que não carece de demonstração. Para
aquilatarmos a dimensão deste absurdo, particularmente em terras
lusas, recordemos que o Governo português integra Francisca Van
Dunem, uma jurista que foi magistrada do Ministério Público e
assessora da Alta Autoridade Contra a Corrupção, sem que a sua
nomeação tenha provocado sobressaltos a propósito da separação
de poderes; bem pelo contrário, a sua indigitação valeu elogios ao
governo formado por António Costa. Podemos então perguntar: se,
a contrario, Sérgio Moro, por meio das suas acções jurídicas, tivesse contribuído
para a queda de um regime musculado e a instauração de um governo
considerado progressista, seria a sua nomeação ministerial
glorificada, em vez de zurzida? Sem dúvida me arrepia a nomeação
de Sérgio Moro para o Governo brasileiro, na mesma medida que me
arrepia a nomeação de todos os outros ministros e do próprio Jair
Bolsonaro, mas parece-me disparatado o argumento
(ou, mais exactamente, a falta de argumento atendível) oposto à sua
nomeação.
Neste caso, como noutros, não posso deixar de
fazer a seguinte nota: a estupidez e a ignorância políticas, quando
insistentemente introduzidas na orelha do cidadão, são o comboio de
alta velocidade que leva à criação de movimentos e regimes de
extrema-direita.
A notícia seguinte da TVI4 apresenta-nos uma
campanha nas escolas, recheada de divertidos jogos pedagógicos e
saborosos gritinhos infantis, para ensinar às crianças os
malefícios do sol e os cuidados a ter com a exposição solar. À
primeira vista, trata-se de uma iniciativa louvável, mas eis senão
quando, no fim do bloco informativo, descobrimos que não se trata de
uma iniciativa das direcções escolares e das equipas de
investigação pedagógica, mas sim de uma campanha patrocinada pela
empresa transnacional Garnier, que, adivinhem … vende cremes de
protecção solar. Estamos perante um caso de corrupção que se
espraia pelo menos a duas áreas (direcções escolares e meios de
comunicação social) e que, esta sim, não carece de grande
demonstração. Ou carece? Bom, depende do nosso grau de entendimento
sobre a ideia de corrupção.
Corrupção (de romper, por acção de terceiros) significa etimologicamente a alteração
da natureza de uma substância por acção de um agente terceiro. Sendo certo que o sentido original
evoluiu ao longo de milénios, o essencial mantém-se: a corrupção
do ferro origina a alteração da sua natureza, transformando-o em
ferrugem (transformação do ferro em óxido de ferro); a corrupção
das instituições públicas origina a alteração da sua natureza,
transformando-as em instrumentos de promoção de interesses privados
(transformação da democracia em plutocracia).
Vista a esta luz, não há dúvida de
que aquela iniciativa das direcções escolares, bem como a sua
divulgação pela TVI4 seguida de anúncio camuflado da empresa
interessada, constituem um acto de corrupção do sistema
democrático, do estado social (na vertente ensino público e saúde pública) e do
papel dos órgãos noticiosos.
Convém recordar que a Garnier pertence à
empresa-mãe L'Oréal, uma multinacional condenada em diversos
tribunais europeus e norte-americanos por publicidade enganosa,
utilização de produtos químicos gravemente prejudiciais à saúde,
discriminação racial, conluio com empresas concorrentes para viciar
os preços de mercado, … Trata-se pois de uma empresa exemplarmente
sem escrúpulos, levada ao colo por uma parte importante da
comunicação social e pelas direcções escolares.
Pergunto: numa escala de 0 a 10 que leve em conta
a degradação das instituições
democráticas, a utilização de dinheiros públicos para
favorecimento de interesses privados – em suma, todas as vias
da corrupção –, Sérgio Moro e o regime Bolsonaro situam-se
acima ou abaixo da campanha escolar contra o Sol? Na verdade não
importa, peço desculpa por esta pergunta parva, uma vez que a
corrupção não é gradativa, é uma questão
de substância – a mudança de natureza e dos fins das instituições
públicas, bem como os actos que a produzem, é absoluta, não é
quantificável. Perguntar se é mais corrupto Sérgio Moro ou Neto Moura (o juiz português que recorre à Bíblia para justificar sentenças),
não tem sentido, como não tem sentido perguntar se é mais
prejudicial à saúde um bife apodrecido ao sol ou um frango
apodrecido no frigorífico.
[ Imagens extraídas de, por ordem:
todamateria.com.br
e andradetalis.wordpress.com
]
Como também a distribuição de cadernetas pelas escolas para aquelas coleções de cromos dos mundiais e afins. Aconteceu comigo e com o meu filho em que um dia, ao ir buscá-lo,fomos presenteados por uma dessas cadernetas na secretaria por funcionária da escola
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