29/05/19

Corrupção e meios de hipocrisia social


Esta manhã tive a triste ideia de espreitar as notícias da TVI4, onde apanhei com uma notícia sobre Sérgio Moro numa conferência sobre corrupção e leis (VII Fórum Jurídico de Lisboa, 29-30 do mês corrente), seguida de outra sobre cancro da pele e os malefícios do sol (entremeadas pelas habituais notícias sobre crimes domésticos). O que têm as duas notícias em comum, é o que veremos de seguida.


É bem conhecido e dispensa apresentações o papel do juiz Sérgio Moro no derrube do anterior governo brasileiro e na ascensão ao poder de um regime de extrema-direita, encabeçado pelo actual presidente Jair Bolsonaro. O que me interessa aqui destacar é outro aspecto badalado na comunicação social portuguesa: a ideia de que a nomeação deste juiz para o cargo de ministro do governo de Bolsonaro constitui em si mesma uma perversão do Estado democrático e de direito. Esta ideia é apresentada como uma evidência natural que não carece de demonstração. Para aquilatarmos a dimensão deste absurdo, particularmente em terras lusas, recordemos que o Governo português integra Francisca Van Dunem, uma jurista que foi magistrada do Ministério Público e assessora da Alta Autoridade Contra a Corrupção, sem que a sua nomeação tenha provocado sobressaltos a propósito da separação de poderes; bem pelo contrário, a sua indigitação valeu elogios ao governo formado por António Costa. Podemos então perguntar: se, a contrario, Sérgio Moro, por meio das suas acções jurídicas, tivesse contribuído para a queda de um regime musculado e a instauração de um governo considerado progressista, seria a sua nomeação ministerial glorificada, em vez de zurzida? Sem dúvida me arrepia a nomeação de Sérgio Moro para o Governo brasileiro, na mesma medida que me arrepia a nomeação de todos os outros ministros e do próprio Jair Bolsonaro, mas parece-me disparatado o argumento (ou, mais exactamente, a falta de argumento atendível) oposto à sua nomeação.


Neste caso, como noutros, não posso deixar de fazer a seguinte nota: a estupidez e a ignorância políticas, quando insistentemente introduzidas na orelha do cidadão, são o comboio de alta velocidade que leva à criação de movimentos e regimes de extrema-direita.


A notícia seguinte da TVI4 apresenta-nos uma campanha nas escolas, recheada de divertidos jogos pedagógicos e saborosos gritinhos infantis, para ensinar às crianças os malefícios do sol e os cuidados a ter com a exposição solar. À primeira vista, trata-se de uma iniciativa louvável, mas eis senão quando, no fim do bloco informativo, descobrimos que não se trata de uma iniciativa das direcções escolares e das equipas de investigação pedagógica, mas sim de uma campanha patrocinada pela empresa transnacional Garnier, que, adivinhem … vende cremes de protecção solar. Estamos perante um caso de corrupção que se espraia pelo menos a duas áreas (direcções escolares e meios de comunicação social) e que, esta sim, não carece de grande demonstração. Ou carece? Bom, depende do nosso grau de entendimento sobre a ideia de corrupção.



Corrupção (de romper, por acção de terceiros) significa etimologicamente a alteração da natureza de uma substância por acção de um agente terceiro. Sendo certo que o sentido original evoluiu ao longo de milénios, o essencial mantém-se: a corrupção do ferro origina a alteração da sua natureza, transformando-o em ferrugem (transformação do ferro em óxido de ferro); a corrupção das instituições públicas origina a alteração da sua natureza, transformando-as em instrumentos de promoção de interesses privados (transformação da democracia em plutocracia).


Vista a esta luz, não há dúvida de que aquela iniciativa das direcções escolares, bem como a sua divulgação pela TVI4 seguida de anúncio camuflado da empresa interessada, constituem um acto de corrupção do sistema democrático, do estado social (na vertente ensino público e saúde pública) e do papel dos órgãos noticiosos.


Convém recordar que a Garnier pertence à empresa-mãe L'Oréal, uma multinacional condenada em diversos tribunais europeus e norte-americanos por publicidade enganosa, utilização de produtos químicos gravemente prejudiciais à saúde, discriminação racial, conluio com empresas concorrentes para viciar os preços de mercado, … Trata-se pois de uma empresa exemplarmente sem escrúpulos, levada ao colo por uma parte importante da comunicação social e pelas direcções escolares.


Pergunto: numa escala de 0 a 10 que leve em conta a degradação das instituições democráticas, a utilização de dinheiros públicos para favorecimento de interesses privados – em suma, todas as vias da corrupção –, Sérgio Moro e o regime Bolsonaro situam-se acima ou abaixo da campanha escolar contra o Sol? Na verdade não importa, peço desculpa por esta pergunta parva, uma vez que a corrupção não é gradativa, é uma questão de substância – a mudança de natureza e dos fins das instituições públicas, bem como os actos que a produzem, é absoluta, não é quantificável. Perguntar se é mais corrupto Sérgio Moro ou Neto Moura (o juiz português que recorre à Bíblia para justificar sentenças), não tem sentido, como não tem sentido perguntar se é mais prejudicial à saúde um bife apodrecido ao sol ou um frango apodrecido no frigorífico.


[ Imagens extraídas de, por ordem: todamateria.com.br e andradetalis.wordpress.com ]

1 comentário:

  1. Como também a distribuição de cadernetas pelas escolas para aquelas coleções de cromos dos mundiais e afins. Aconteceu comigo e com o meu filho em que um dia, ao ir buscá-lo,fomos presenteados por uma dessas cadernetas na secretaria por funcionária da escola

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