02/06/19

Ócio, escola e militância sorumbática


Por estranha associação e fortuita conversa, iluminou-se-me a relação entre trabalho e militância cívica (ou activismo, como sói agora chamar-se), e bem assim entre escola e imperativos morais, e ainda algumas coisas outras relacionadas, como se verá – ou como julgo vislumbrar, no negrume destes dias.

Aconteceu-me ficar encarregue de convocar telefonicamente umas quantas pessoas para um encontro de discussão e acção sobre a crise da habitação. A lista de convocados rondava a centena e meia, por isso dividiu-se a lista entre uns quantos voluntários; couberam-me 42. Atirei-me ao telefone com o entusiasmo de quem tem de tomar a sua ração diária de rícino.


Antes de iniciar a longa e fastidiosa tarefa de convocar 42 pessoas por telefone, correndo o seriíssimo risco de de cada uma receber 20 minutos de justas mas mui fastidiosas queixas e lástimas contra as agruras da habitação e outras acrimónias da vida, num previsível total de 42 pessoas x 20 minutos = 14 horas de trabalho, ocorreu-me que seria útil oferecer-me para enviar na véspera do encontro uma mensagem-lembrete, não fosse a coisa cair no esquecimento após uma semana inteira de peripécias. Uns agradeceram muito e aceitaram a oferta, outros agradeceram na mesma medida mas acharam-na dispensável.


Chegados ao dia e hora aprazado e aprazada, verificou-se o expectável: da centena e meia de pessoas contactadas, menos de 30 compareceram. Ocorrem-me pelo menos 3 razões para este humilde quinto de presenças:
1) Já não há fins de semana à inglesa (ou seja, dois dias de descanso semanal). Cerca de metade das pessoas da minha lista de contactos trabalha ao sábado à tarde (hora aprazada para o encontro) – estavam portanto «impedidas» de comparecer à reunião (sobre estas aspas inopinadas falarei adiante).
2) No caso dos que não trabalhavam à hora do encontro, no balanço entre os prazeres do ócio e a sujeição a uma reunião de 3 horas, venceu o ócio.
[Nota: ócio é etimologicamente o antónimo de negócio, que por sua vez significa «nec (=negação) ōtiǔm», negação do ócio. Já eram assim as línguas latinas há mais de 2000 anos: nenhum juízo de valor vinha alapado à palavra ócio, que designava muito simplesmente o «tempo livre». Assim negócio designa etimologicamente o tempo ocupado – ou, em termos modernos e mais específicos, o tempo subordinado. Por outro lado, em grego o termo equivalente era scholé. «É normal na Antiguidade a associação da etapa da aprendizagem com o ócio, o tempo livre e o jogo da experiência, por oposição às obrigações cívicas ou laborais, sobretudo na idade adulta. O latim faz exactamente o mesmo que o grego, pois chama ludus à escola primária, e esta palavra significa também jogo, ócio, experimentação e interpretação, donde vem a palavra lúdico nos nossos dias. Mas de facto o latim tomou também emprestada a palavra schola do grego, e ao fazê-lo converteu-a num dos vocábulos mais universais que existem» (Helena et al., in Portada de Etimologías).]
3) Para sentir o apelo cívico de uma reunião deste tipo – que envolve a defesa de um direito humano imprescindível à sobrevivência: o direito à habitação  –, é necessária alguma educação de raiz, alguma instrução, alguma consciência empática de si mesmo e dos outros. Donde se deduz que essa parte da formação juvenil se encontra drasticamente arredada na sociedade portuguesa.


Sucede que, ao comentar com uma amiga a estafa que eu me impusera de enviar lembretes, me foi observado que não deveria tê-lo feito, porque cabe às pessoas interessadas – os inquilinos desalojados, os indigentes, etc. – a iniciativa de se lembrarem do compromisso assumido, o sentido imperativo (moral?) de comparecerem, não sendo necessário, nem sequer desejável, que eu tivesse insistido. Na ocasião incomodou-me um pouco a chamada de atenção, embora eu próprio não fosse capaz de explicar porquê – talvez, no imediato, por razões egoístas, por tomá-la eu como crítica pessoal desnecessária, visto que, se podia e queria fazer a tarefa, e se ela podia ser proveitosa, porque não fazê-la?, porquê atribuir um valor moral negativo à minha iniciativa? Foram-me necessárias 24 horas de maturação e uma noite de sono para perceber o que me estava de facto a incomodar naquela conversa. E foi então, ao reflectir sobre a razão que pode levar as pessoas a não comparecerem a um apelo daquela magnitude, que me veio à ideia a associação entre esta atitude displicente e as relações de trabalho.


Por que razão vão as pessoas trabalhar mesmo quando têm uma enxaqueca, quando torceram um pé e sofrem horrores para se deslocarem ao local de trabalho, quando teriam outras urgências pessoais, quando o que vão ganhar manifestamente não chega para as despesas mínimas de sobrevivência? (entre as quais os custos da habitação). Por que obedecem os trabalhadores a todos os ditames do patrão, mesmo quando em manifesto prejuízo pessoal, mesmo quando seria urgente suspenderem o trabalho (ou negócio) para tratarem dos seus interesses mais básicos? A resposta que me ocorre de momento é simples: porque para isso foram educadas. Não pretendo que seja esta a resposta única, a relação de causa e efeito determinante, tanto mais que em matéria de relações sociais abomino as explicações da lógica aristotélica e sou partidário dos sistemas complexos e indeterminados. Mas é importante identificar esta relação em particular, para compreendermos a totalidade da teia complexa de relações em causa.


A escola deixou de ser – na substância ainda que não na forma – um ludus. Aí se aprende a disciplina do trabalho (tanto pior para o ócio como sistema de aprendizagem e interpretação do mundo) e da hierarquia (tanto pior para a autonomia livre).
[Nota: hierarquia significa «ordem sagrada» – de hieros (sagrado, ou seja, que não pode ser contestado) + arkhei (governo autoritário, sendo arkhe aquele que manda, o hierarca no topo da escala dos mandantes). (Ver Julio Príncipe Portocarrero et al., in Portada de Etimologías.)]


A escola contemporânea tornou-se o supra-sumo da eficácia não só no ensino da disciplina do trabalho e da hierarquia, mas também, de forma mais geral, na aprendizagem da submissão, do conformismo, da sabujice … Se não existisse escola no sentido contemporâneo, se toda a aprendizagem fosse feita no ludus, no tempo verdadeiramente livre, se aprender a interpretar o mundo fosse um ócio e não uma obrigação sujeita a uma disciplina apertada e hierarquizada, é bem possível que já tivesse ocorrido uma revolução mundial anticapitalista.


A escola ensina a separar o lixo, mas não a reflectir sobre a origem dessa parte do lixo que sufoca o planeta. A escola ensina a usar a novilíngua da igualdade de género, mas não a reflectir porque é que a maioria do corpo docente (e da corpa docenta) do ensino básico e intermédio é composta por mulheres, ao passo que a maioria – nalguns casos a totalidade – dos hierarcas do ensino superior, donde saem os hierarcas dos poderes político, cultural, académico, laboral e económico, são homens. A escola ensina a fazer contas e cálculos estatísticos, nalguns casos até fornece umas luzes sobre gestão financeira aplicável às pequenas coisas da vida, mas não promove a livre reflexão sobre a origem do valor – porque isso implicaria ensinar a pensar ociosamente sobre quem produz o valor, quem o gere, quem se apropria dele e quem dele é espoliado e reduzido à miséria. A escola ensina o direito à propriedade (e fá-lo das formas mais variadas, subtis e até lúdicas), mas bloqueia os canais de pensamento que poderiam levar à reflexão sobre a escala de valor dos direitos – na qual, por referência aos restantes direitos humanos, a propriedade pessoal deveria situar-se lá bem no fundo, sobretudo quando põe em causa outros direitos fundamentais à vida, nomeadamente o direito à habitação. A escola ensina e exercita a competição, do primeiro ao último dia, mas esquece o mais importante de tudo: a solidariedade.
[Nota: A seguir à Revolução Francesa foram apresentadas várias propostas quanto à forma de construir um sistema público de ensino universal, acessível a todos. Robespierre escolheu uma que anulava as diferenças de origem social e recusava a competição. Contudo, a revolução durou apenas 2 a 3 anos, após os quais foi adoptado outro sistema de ensino público, de sinal oposto, do qual descendem todos os sistemas de ensino actuais.]


Voltando à vaca fria: deveria eu ter ou não ter enviado lembretes aos convocados para um encontro de debate sobre a crise da habitação? Se a escola tivesse ensinado que existem obrigações cívicas (ou interesses cívicos, mais exactamente e retirando a carga moralista à expressão) que não é possível descurar sob pena de grave prejuízo pessoal e social, o meu lembrete seria quase ofensivo para os visados, concordo. Mas essa aprendizagem não foi feita. Os visados vivem em profundo défice de consciência cívica, isso é materialmente patente. A expressão «consciência cívica» tornou-se vácua, é uma formalidade conceptual de que as pessoas já ouviram falar, mas que não oferece substância real, não foi treinada, não foi apreendida através de acções materiais e autónomas; é uma abstracção – e portanto cabe-me tentar colmatar essa ausência, insistindo e incutindo o apelo à participação.


Há, evidentemente, um problema: na ausência de aprendizagem prévia da acção cívica e da livre autonomia, só graças a actividades lúdicas será possível reaprendê-la. Bolas, que até os nossos antepassados de há 3000 anos já tinham percebido isso, por que razão não o entendem os militantes do século 21? A escola contemporânea «ensina» por meio da autoridade, da hierarquia, do medo e do castigo, da memorização acéfala; nós, militantes radicais, devíamos «ensinar» por meios lúdicos, abrindo espaço ao ócio, negando a utilização do tempo subordinado. Se não o fizermos, não espanta que, pela calada, nos confundam com o status quo e nos virem as costas.

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[imagem: escola na região de São Paulo, Brasil; extraída de https://redeextremosul.wordpress.com/]

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