04/09/19

O indecoro na antecâmara da ditadura


(extraído de História e Geografia de Portugal C)
São numerosos os prenúncios de regime ditatorial. Ainda que eu não seja capaz de vislumbrar os contornos institucionais que esse regime possa vir a tomar, ou o tempo necessário à sua consolidação, nem por isso os considero menos claros.
 
Há cerca de 20 anos, apesar de já então ser inequívoca a vitória generalizada das políticas neoliberais, não era tão clara a tentação bonapartista, embora ambas caminhem de mão dada. Daí para cá, as coisas evoluíram. Não é por acaso que, ao longo desse período, a União Europeia se tornou uma fonte de ditames totalmente à margem de qualquer esquema democrático. Não é por acaso que não se via na Europa tanto arame farpado e campos de concentração desde a I Guerra Mundial.
 
Mas é do caso português que quero agora falar, a propósito de dois acontecimentos paradigmáticos: a tentativa de suspensão, por acto administrativo, do sindicato dos motoristas de matérias perigosas; e os apelos do presidente da República para que os partidos não gastem dinheiro na campanha eleitoral em curso.

Comecemos pelo Presidente. Este legítimo filho (ou afilhado, se preferem) da ditadura, que veio a terreiro pedir aos partidos que façam uma campanha eleitoral a custo zero, que os encosta à parede exibindo o minúsculo apêndice financeiro da sua própria campanha eleitoral para a Presidência, é a mesma pessoa que durante 5 anos seguidos esteve em campanha eleitoral nas televisões, onde tinha assento reservado e pontuava todos os dias, a várias horas do dia, em directo ou em diferido, disparando críticas, opiniões e propostas a uma velocidade estonteante. Se, passados esses 5 anos de campanha diária ensurdecedora, Marcelo não tivesse sido eleito, seria caso para revermos todos os estudos sociológicos, politológicos, filosóficos e psicológicos efectuados durante décadas à volta do poder dos meios de comunicação social (vulgo media).
 
A longa campanha eleitoral televisiva de Marcelo, em vez de implicar custos para o candidato, ter-lhe-á rendido uns tostões, deduzo eu, como sucede a todos os comentadores hertzianos com assento permanente – ainda que o pagamento possa ser considerado despiciendo no cômputo dos rendimentos pessoais de Marcelo Rebelo de Sousa. O supra-sumo da batata seria pois vir o Presidente a público, dizer que os candidatos às próximas eleições não só não devem gastar dinheiro, como devem ainda por cima receber o dinheiro oferecido por interesses comerciais privados para fazerem campanha e serem eleitos – o que, no seu caso pessoal como em muitos outros, é a realidade pura e dura; um segredo de Polichinelo que não pode ser pronunciado, porque isso constituiria o reconhecimento da mascarada em que se tornaram os regimes democráticos e as campanhas eleitorais, com particular destaque para o próprio Marcelo – o qual, pelo menos desde 1973, está intimamente ligado a diversas empresas de comunicação e marketing, quer como accionista, quer como gestor; empresas essas ligadas por sua vez a poderosos interesses económicos – os chamados «donos disto tudo».
 
O actual Presidente da República portuguesa, pela milésima vez, imiscuiu-se onde não deve. Esta prática reiterada – imiscuir-se onde não deve – desde o primeiro dia do seu mandato é igualmente comum nas atitudes do Governo e é em si mesma apanágio da tentação ditatorial e corporativa, seja qual for a escala social onde se manifesta – a família, a vizinhança, o país.
 
Outra prática reiterada e merecedora de alerta é a usurpação do discurso colectivo: «o povo português não vê com bons olhos...», «os Portugueses não querem... / não gostam de... / pensam que... / irão castigar os que...», etc. Falar em nome de um colectivo que, passadas as eleições, nunca mais é achado nem consultado durante anos a fio, falar majestaticamente em nome de um colectivo – que, diga-se de passagem, muitas vezes não passa de uma entidade abstracta e ficcional, seja ela o Povo, os Portugueses, a Nação, os Trabalhadores ou os Emigrantes –, é um dos pinchavelhos que decora a antecâmara da ditadura. O mais assustador de tudo isto é que este tipo de discurso, majestático e abusivo, nem sequer é exclusivo dos políticos de direita; ouvimo-lo com igual pontualidade do lado das bancadas da esquerda e até da boca de dirigentes sindicais. Este comportamento manipulador indica – somado a outros, bem entendido – que o terreno está maduro para a instauração de um regime ditatorial.
 
O segundo exemplo que quero aqui trazer, por ser também ele paradigmático da antecâmara da ditadura, é a tentativa, por parte dos poderes públicos, de ilegalizar e dissolver o sindicato dos motoristas de matérias perigosas. Neste caso, os poderes públicos procuram imiscuir-se na auto-organização dos trabalhadores, dando mais um passo no caminho do neocorporativismo de matriz neofascista. Não me darei a grandes trabalhos de explanação do significado desta ingerência em assuntos autónomos, porque esse trabalho já está feito de forma sucinta em «O Pardal e Ave de Rapina» [Raquel Varela, 29-08-2019].
 
Dispomos já de uma larga colecção de situações em que o Executivo se sobrepôs às decisões do Legislativo – desde a cativação das verbas orçamentais aprovadas na Assembleia da República, até à não contratação permanente (e real) dos investigadores e outros funcionários do Estado, passando pela não construção de hospitais considerados urgentes e orçamentados, etc. Se este menosprezo pelo poder legislativo não é já, por definição, uma antecâmara bonapartista, então não sei que seja. O mestre de cerimónias dessa festa bonapartista é um ministro das Finanças sem cuja a assinatura nem uma mosca levanta voo no reino. «A finança d'abord» – não sei se se lembram dessa máxima de um tal António Oliveira Salazar, que começou por ser ministro e salvador das Finanças e que depois viria a dar no que deu – entendam-me, mal comparado e salvaguardando as devidas distâncias de contexto histórico, internacional e financeiro; a distância a que Salazar e Centeno devem ser colocados no retrato da família Finança depende dos atributos do fotógrafo: se ele for picuinhas, ecónomo, taxonómico, colocá-los-á em extremos opostos do enquadramento; se ele tiver olhar largo e tendência para criar grandes categorias de pensamento, colocá-los-á juntinhos e contrastantes – um sisudo e austero, o outro sorridentemente sonso.
 
(não foi possível apurar o autor da fotomontagem)

 
Em boa verdade, os procedimentos políticos que acabo de referir não são totalmente inéditos. A grande diferença é que deixaram de ser subtis e encapotados; são hoje exibidos de forma indecorosa perante as câmaras. Esta falta de decoro é sinal de que as forças políticas que os promovem já deram por ganha a batalha – isto é, sentem que podem assumir publicamente todos os caprichos, ditames e indecoros que lhes der na gana, sem serem penalizadas; sentem que o projecto ditatorial sairá vitorioso, mesmo que tenha de ir a votos.

Sem comentários:

Enviar um comentário