(extraído de História e Geografia de Portugal C) |
São numerosos os prenúncios de regime ditatorial. Ainda que eu não
seja capaz de vislumbrar os contornos institucionais que esse regime
possa vir a tomar, ou o tempo necessário à sua consolidação, nem
por isso os considero menos claros.
Há cerca de 20 anos, apesar de já então ser
inequívoca a vitória generalizada das políticas neoliberais, não
era tão clara a tentação bonapartista, embora ambas caminhem de
mão dada. Daí para cá, as coisas evoluíram. Não é
por acaso que, ao longo desse período, a União Europeia se tornou
uma fonte de ditames totalmente à margem de qualquer esquema
democrático. Não é por acaso que não se via na Europa tanto arame
farpado e campos de concentração desde a I Guerra Mundial.
Mas é do caso português que quero agora falar, a
propósito de dois acontecimentos paradigmáticos: a tentativa de
suspensão, por acto administrativo, do sindicato dos motoristas de
matérias perigosas; e os apelos do presidente da República para que
os partidos não gastem dinheiro na campanha eleitoral em curso.
Comecemos pelo Presidente. Este legítimo filho
(ou afilhado, se preferem) da ditadura, que veio
a terreiro pedir aos partidos que façam uma campanha eleitoral a
custo zero, que os encosta à parede exibindo o minúsculo
apêndice financeiro da sua própria campanha eleitoral para a
Presidência, é a mesma pessoa que durante 5 anos seguidos esteve em
campanha eleitoral nas televisões, onde tinha assento reservado e
pontuava todos os dias, a várias horas do dia, em directo ou em
diferido, disparando críticas, opiniões e propostas a uma velocidade estonteante. Se, passados esses 5 anos de
campanha diária ensurdecedora, Marcelo não tivesse sido eleito,
seria caso para revermos todos os estudos sociológicos,
politológicos, filosóficos e psicológicos efectuados durante
décadas à volta do poder dos meios de comunicação social (vulgo
media).
A longa campanha eleitoral televisiva de Marcelo,
em vez de implicar custos para o candidato, ter-lhe-á rendido uns
tostões, deduzo eu, como sucede a todos os comentadores hertzianos
com assento permanente – ainda que o pagamento possa ser
considerado despiciendo no cômputo dos rendimentos pessoais de
Marcelo Rebelo de Sousa. O supra-sumo da batata seria pois vir o
Presidente a público, dizer que os candidatos às próximas eleições
não só não devem gastar dinheiro, como devem ainda por cima
receber o dinheiro oferecido por interesses comerciais privados para
fazerem campanha e serem eleitos – o que, no seu caso pessoal como
em muitos outros, é a realidade pura e dura; um segredo de
Polichinelo que não pode ser pronunciado, porque isso constituiria o
reconhecimento da mascarada em que se tornaram os regimes
democráticos e as campanhas eleitorais, com particular destaque para
o próprio Marcelo – o qual, pelo menos desde 1973, está
intimamente ligado a diversas empresas de comunicação e
marketing, quer como accionista, quer como gestor;
empresas essas ligadas por sua vez a poderosos interesses económicos
– os chamados «donos disto tudo».
O actual Presidente da República portuguesa, pela
milésima vez, imiscuiu-se onde não deve. Esta prática reiterada –
imiscuir-se onde não deve – desde o primeiro dia do seu mandato é
igualmente comum nas atitudes do Governo e é em si mesma apanágio
da tentação ditatorial e corporativa, seja qual for a escala social
onde se manifesta – a família, a vizinhança, o país.
Outra prática reiterada e merecedora de alerta é
a usurpação do discurso colectivo: «o povo português não vê com
bons olhos...», «os Portugueses não querem... / não gostam de...
/ pensam que... / irão castigar os que...», etc. Falar em nome de
um colectivo que, passadas as eleições, nunca mais é achado nem
consultado durante anos a fio, falar majestaticamente em nome de um
colectivo – que, diga-se de passagem, muitas vezes não passa de
uma entidade abstracta e ficcional, seja ela o Povo, os Portugueses,
a Nação, os Trabalhadores ou os Emigrantes –, é um dos
pinchavelhos que decora a antecâmara da ditadura. O mais assustador
de tudo isto é que este tipo de discurso, majestático e abusivo,
nem sequer é exclusivo dos políticos de direita; ouvimo-lo com
igual pontualidade do lado das bancadas da esquerda e até da boca de
dirigentes sindicais. Este comportamento manipulador indica – somado a outros, bem entendido –
que o terreno está maduro para a instauração de um regime
ditatorial.
O segundo exemplo que quero aqui trazer, por ser
também ele paradigmático da antecâmara da ditadura, é a
tentativa, por parte dos poderes públicos, de ilegalizar e dissolver
o sindicato dos motoristas de matérias perigosas. Neste caso, os
poderes públicos procuram imiscuir-se na auto-organização dos trabalhadores, dando mais um passo no caminho do
neocorporativismo de matriz neofascista. Não me darei a grandes
trabalhos de explanação do significado desta ingerência em
assuntos autónomos, porque esse trabalho já está feito de forma
sucinta em «O
Pardal e Ave de Rapina» [Raquel Varela, 29-08-2019].
Dispomos já de uma larga colecção de situações
em que o Executivo se sobrepôs às decisões do Legislativo – desde a
cativação das verbas orçamentais aprovadas na Assembleia da
República, até à não contratação permanente (e real) dos
investigadores e outros funcionários do Estado, passando pela não
construção de hospitais considerados urgentes e orçamentados, etc.
Se este menosprezo pelo poder legislativo não é já, por definição,
uma antecâmara bonapartista, então não sei que seja. O mestre de
cerimónias dessa festa bonapartista é um ministro das Finanças sem
cuja a assinatura nem uma mosca levanta voo no reino. «A finança
d'abord» – não sei se se
lembram dessa máxima de um tal
António Oliveira Salazar, que
começou por ser ministro e
salvador das Finanças e que
depois viria a dar no que deu – entendam-me,
mal comparado e
salvaguardando as devidas distâncias de
contexto histórico, internacional e financeiro; a
distância a que Salazar e Centeno devem ser colocados no retrato da
família Finança depende dos atributos do fotógrafo: se ele
for picuinhas, ecónomo, taxonómico, colocá-los-á em extremos
opostos do enquadramento; se ele tiver olhar largo e tendência para
criar grandes categorias de pensamento, colocá-los-á juntinhos e contrastantes – um sisudo e austero, o outro sorridentemente sonso.
(não foi possível apurar o autor da fotomontagem) |
Em boa verdade, os procedimentos políticos que
acabo de referir não são totalmente inéditos. A grande diferença
é que deixaram de ser subtis e encapotados; são hoje exibidos de
forma indecorosa perante as câmaras. Esta falta de decoro é sinal
de que as forças políticas que os promovem já deram por ganha a
batalha – isto é, sentem que podem assumir publicamente todos os
caprichos, ditames e indecoros que lhes der na gana, sem serem
penalizadas; sentem que o projecto ditatorial sairá vitorioso, mesmo
que tenha de ir a votos.
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