Auto-organização defensiva em sistema complexo dinâmico |
Realizou-se há dias um debate organizado por sindicalistas: «Opressão e Exploração das Mulheres e Luta Feminista: Como deve o sindicalismo incorporar as questões e reivindicações das mulheres trabalhadoras?».[1] A minha curiosidade levou-me a visitar o debate, onde tentei fazer uma experiência de campo. A minha ideia era produzir uma acção para colher uma reacção e daí extrair as devidas conclusões, ainda que limitadas ao reduzido universo ali presente.
Logo a partir da primeira intervenção as correntes em presença ficaram perfeitamente claras. Apesar das suas variantes, podem resumir-se em 3 eixos principais:
- «O feminismo é anti-socialista»; o patriarcado/machismo está extinto na sociedade portuguesa; a igualdade (de direitos, entenda-se) entre homens e mulheres já foi alcançada, por isso a questão feminista não tem mais razão de ser; o feminismo divide o campo dos trabalhadores, enfraquecendo a luta no seu conjunto; a luta autonomizada das mulheres nunca as levará a lado nenhum, apenas a libertação dos trabalhadores no seu conjunto pode garantir a libertá-las[2]; em suma, os sindicatos não devem perder o seu tempo com esta questão. Para simplificar, no contexto deste artigo, chamarei a esta corrente, minoritária na sala, antifeminista[3].
- O feminismo é uma causa justificada na realidade vivida pelas mulheres; permanecem na nossa sociedade traços claros da opressão, exploração redobrada e discriminação das mulheres; o patriarcado e o machismo subsistem; a situação particular das mulheres leva muitas delas a não quererem ou não poderem participar na luta sindical; é necessário que os sindicatos atendam aos problemas específicos da condição feminina e reinventem formas de mobilização e participação adequadas, para trazerem mais mulheres para o campo da luta sindical; em suma, existem boas razões para os sindicatos atenderem à questão feminista (sendo claro que o feminismo é abarca muitas correntes, algumas delas pouco aconselháveis). Para simplificar, no contexto deste artigo, chamarei a esta corrente, maioritária na sala, feminista[3].
- Posição vacilante ou indefinida; pedidos encarecidos no sentido de evitar uma conclusão final que de alguma forma vinculasse o conjunto dos sindicalistas ali presentes. No contexto deste artigo, chamarei a esta corrente conciliatória, porque parecia mais preocupada em salvaguardar a figura de proa da posição minoritária do que em avançar no debate.
Não foram alcançadas conclusões definitivas – nem creio que fosse essa a intenção da assembleia ali reunida –, ficando mais ou menos claro, ainda que não garantido organicamente, que o debate deve continuar.
Representação gráfica de um sistema complexo |
A experiência que eu levava em mente consistia na apresentação de uma tese que postula a necessidade da autonomia organizativa de todos os grupos sociais oprimidos e com interesses específicos,[4] em particular as mulheres, como condição sine qua non para a sua libertação.
Hipótese: dado um grupo social (ou classe, se preferem) com interesses específicos, a tese da autonomia organizativa consiste no seguinte:
- Nenhum outro grupo, no conjunto da sociedade, está em melhores condições de avaliar integralmente a natureza e a extensão dos interesses específicos do grupo em questão. (Corolário 1: é falsa, paternalista e moralista a ideia de que certas elites ou vanguardas exteriores ao grupo estariam em melhores condições de entender os seus interesses.)
- Cada elemento do grupo, isoladamente, não tem condições para tomar consciência plena dos interesses em presença. É necessário que se organize colectivamente para os identificar; é necessário que discuta colectivamente os problemas que atravessam a sua vida, eliminando sucessivamente as visões assentes no interesse mesquinho de cada elemento, até encontrar o denominador comum a todos os elementos do grupo. (Corolário 1: há grupos sociais que têm à partida melhores condições para se reunirem e tomarem consciência da sua situação; exemplo clássico: os operários das grandes unidades de produção. Corolário 2: existem subgrupos cujos interesses específicos, à partida, parecem não fazer parte do denominador comum; exemplo: as mulheres e os negros.)
- O grupo, já constituído e na posse de uma visão global sobre o seu lugar no mundo das relações sociais, fica então em condições de avançar para acções organizadas que visam alargar a sua esfera de influência (propaganda) e adoptar estratégias e formas de luta.
- Só depois de estar organizado de forma autónoma, só depois de ter definido os seus interesses específicos, só depois de ter esclarecido até onde está disposto a ir e como fazê-lo, fica na posse de um conjunto de poderes que não detinha anteriormente. Pode então sentar-se à mesa de negociações com os seus opositores – isto se entretanto não tiver conseguido eliminar por outros meios as raízes dos seus problemas.
Esta tese é universal, tanto vale para os trabalhadores de uma fábrica ou de um sector de produção, como para as mulheres, os homossexuais, os afro-descendentes, os ciganos, os reformados, os estudantes, etc. Sendo universal, vale também para os grupos sociais opressores, que infelizmente têm dela uma consciência muito mais aguda do que os grupos sociais oprimidos – jamais passaria pela cabeça a um grupo de patrões, administradores ou banqueiros reunirem com os seus empregados antes de terem definido claramente os seus interesses, a sua estratégia e o seu terreno preferido de combate.
Imaginem, por hipótese, que os assalariados de um determinado sector colocam como objectivo final sentarem-se à mesa de negociações para obter aumentos salariais. A tese da autonomia combativa permite-nos prever que se, logo à partida, em vez de se organizarem de forma autónoma, saltarem directamente para a fase 4 descrita acima (em termos práticos: se fizerem assembleias mistas com assalariados, patrões e administradores para discutirem os problemas que os afectam), estão condenados ao fracasso e muito provavelmente verão a sua situação agravar-se. Este princípio tanto vale para assalariados, como para mulheres, grupos étnicos, povos, …
A minha intervenção na assembleia de sindicalistas, na mira de ver qual seria a reacção, foi expressa da seguinte maneira: as mulheres devem reunir-se e organizar-se de forma não mista, autónoma, se quiserem fazer valer os seus interesses específicos e entenderem a natureza da dupla opressão a que estão sujeitas; se isto não acontecer, o sindicato não tem a mínima hipótese de as ajudar a combater de forma eficaz os factores de opressão; pelo contrário, arrisca-se a agravá-los.
Devo dizer em abono da verdade que o facto de apenas dispor de 7 minutos para explicar tudo isto (uma limitação imposta não por maldade, mas pelo simples facto de haver muitos inscritos e uma quantidade finita de tempo) levou a que o fizesse de forma inepta e incompleta. Foi portanto uma experiência falhada, da qual não posso extrair conclusões seguras quanto à reacção da assembleia, que foi esquiva ou nula. Note-se que, com uma única excepção, o debate foi feito em tom muito amigável, e é neste duplo contexto de inépcia (minha) e urbanidade (da assembleia) que entendo o facto de a minha exposição não ter recebido nem apoio nem refutação, suscitando apenas um silêncio cortês.
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[ Imagens colhidas do «Blog Cidadania e Cultura» de Fernando Costa Nogueira ]
Notas:
[1] Perdoem se não cito nomes de promotores e intervenientes, mas o clima de maledicência que grassa tão facilmente nas redes sociais leva-me a usar de cautelas para não o alimentar.
[2] Declaração tanto mais estranha, quanto veio da boca de uma historiadora reconhecidamente competente. Já para não falar no facto de que, se a libertação e a igualdade das mulheres perante os homens já foi alcançada mas só é possível como resultado da libertação conjunta de todos os trabalhadores, estamos perante um oxímoro, visto que os trabalhadores, no seu conjunto, ainda não se libertaram de coisa nenhuma.
[3] Peço ao leitor que não tente extrapolar das expressões «feminista» e «antifeminista» denotações ou conotações mais além do contexto aqui expresso.
[4] Para traduzir a expressão «interesses específicos» em termos práticos, imaginemos um exemplo diminuto: uma família. A família no seu todo é capaz de se unir em torno de um interesse comum, sem qualquer espécie de divisionismos internos: reivindicar um nível de rendimentos mais elevado, ou seja, alinhar num combate social alargado. No entanto, os interesses que movem cada membro da família podem não ser integralmente uniformes: o homem gostaria talvez de ter um excedente de 140 € para ir ver o seu clube de futebol jogar em Espanha, a mulher gostaria talvez de dispor de um excedente de 140 € para levar a família à praia e a jantar fora (ganhando assim uma folga doméstica) e o filho/filha adolescente apreciaria talvez um excedente de 80 € para ir a um jantar de amigos seguido de uma noite de borga. A questão principal consiste em saber quem detém o poder de dispor ou distribuir esse excedente, tanto dentro como fora do agregado familiar.
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