21/10/19

Crónicas do DocLisboa (3)



Tribute to Judas | Homenatge a Judes | (Homenagem a Judas)Manel Raga Raga
2019 • Espanha, Bósnia e Herzegovina • 26’

São estas crónicas não uma colecção de críticas ou recensões, apenas impressões, memórias e divagações.


Curiosa amálgama de coisas díspares: teatro, confissões mnemónicas do autor, cultura popular. Esta, feita de devoção, superstição, oliveiras milenares, caça e um inexplicado culto de Judas (mas a minha total falta de formação cristã impede-me talvez de ver muita coisa na fita ou faz-me malentender o que vejo). Passa-se tudo isto, se bem entendi, algures no país valenciano. Vê-se a ossatura do filme, mas vem ela recoberta de suculentos nacos que se contradizem - assim correm fiéis os cães dos caçadores, em contraponto com Judas, que acaba por se enforcar na corda da culpa, atada a uma das oliveiras milenares da região. Duma coisa tenho a certeza: nenhum cão se enforcaria depois de morder o dono - se o morde suas razões terá -, mas pode um cão deixar-se morrer se o dono falece. E isto fez-me pensar que a Bíblia é, de ponta a ponta, uma narrativa do poder, uma celebração do poder, tão racional quanto pode ser o poder, se é que pode; ao passo que os cães são, regra geral, a expressão emocional do afecto incondicional - excepto quando acorrentados, reprimidos, isolados do domus, levados à loucura pela crueldade dos donos. Na minha imaginação, os cristãos dessas aldeias devotas que vemos no filme, vendo-se expulsos do seu domus e acorrentados num quintal imundo por um dono despótico e cruel, são fatalmente levados à loucura. Que espanta pois se um dia morderem o dono?

Uma coisa no entanto me fez espécie: o filme, a preto e branco, na verdade não tem preto nem branco, é todo ele em tons cinza carregados, em parte rimando com um tempo invernoso, sem distinção entre noite e dia, sem contrastes de imagem, exigindo do espectador um esforço de visão que rouba energia à leitura. Foi opção do realizador?, limitação dos meios técnicos usados?, problema do projector da sala pequena da Culturgest ou da cópia usada? Mistério.


(crónica anterior: Noli me tangere)

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