29/12/14

Crónica do fim de uma era


Na minha experiência de vida, empírica, não medida, particular, uma convicção se formou cedo: o grosso da população rege-se por tendências místicas e age segundo os mandamentos da fé, mais que da ciência. Vale o que vale esta convicção, e não tenciono eu esgrimi-la com quem quer que seja.

A fé, para que nos entendamos, localizo-a eu num domínio da mente que não encontra um único ponto de intercepção com o domínio da razão lógica. Estes dois domínios vivem separados por natureza; pretender esgrimir as razões da lógica contra as razões da fé (ou vice-versa) é uma impossibilidade material – seria o mesmo que tentar nadar mariposa num contentor de areia.

26/12/14

Quanto custam os muares do Jornal i?

Reunião de responsáveis editoriais do Jornal i,
poucos segundos depois de tomarem uma decisão histórica.
Repare-se no ar sereno, na plácida felicidade do dever cumprido

Os muares do Jornal i, depois de pensarem maduramente, tomaram esta decisão formidável: o assunto mais importante do dia – aquele que a todo o custo, doa a quem doer, deveria ser chamado à capa, tornar-se o rosto do jornal nesta gloriosa sexta-feira pós-natalícia de 2014, aquele que faria toda a diferença do ponto de vista informativo – é o custo de manutenção das cavalgaduras da GNR.
Segundo o Jornal i, os animais custariam 1,2 milhões de euros anuais.
Confesso que desconheço os restantes encantos do artigo, porque nem me passou pela cabeça gastar dinheiro para os ler. Aliás, não percebo nada das artes e custos de tratar e manter cavalos, por isso todos os argumentos que possam pôr-me à frente, por mais estúpidos e desonestos que sejam, papo-os eu a todos por bons – mais vale portanto não ler coisas vindas de um jornal a quem eu não confiaria nem um cão tinhoso.
De resto, para quê ler o artigo, se a declaração mais importante, a súmula do assunto, fica perfeitamente clara no acto da sua chamada à capa? Este acto constitui em si mesmo um autêntico manifesto. Os muares do Jornal i podiam ter destacado na primeira página os 125 milhões do orçamento para a habitação (estou a citar números de 2013; em 2002 eram 1000 milhões), ou seja, a decisão governamental de encerrar esta função do Estado e entregar os cidadãos à bicharada debaixo duma ponte, numa época em que as câmaras da Amadora, de Lisboa e de várias outras urbes arrasam as casas dos bairros pobres com buldozeres e polícia de intervenção carregada de armas de fogo, qual Iraque, para gáudio das imobiliárias e dos bancos.
Podiam ter perguntado quanto custam as agulhas, os pensos e a gaze em falta nos hospitais e centros de saúde.
Podiam ter perguntado por que razão o orçamento anual da função de Defesa e Soberania, nos últimos 12 anos, ronda os 2000 milhões, por vezes 3000 milhões de euros, se não estamos em guerra (e já se percebeu, graças ao Jornal i, que a culpa não é das cavalgaduras, que, coitadas, só papam 1,2 milhões). Podiam ter perguntado por que razão o orçamento da Economia duplicou no mesmo período, se não houve investimento público (antes pelo contrário), não foram criados postos de trabalho (antes pelo contrário) e a economia (pelo menos a dos trabalhadores) não pára de regredir.
Podiam ter perguntado quanto vai custar à população portuguesa a privatização da TAP e de outros transportes públicos.
Podiam ter perguntado que razão, que legitimidade têm os bancos para cobrar 2,1 e 7,6% de juros pelos empréstimos que fazem aos Estados da periferia europeia, quando esse dinheiro lhes é emprestado actualmente a eles, bancos, pelo Banco Central Europeu, com uma taxa de juro de 0,05%.
Nada disso – o que lhes pareceu definitivamente importante foram as cavalgaduras da GNR. Digamos que, como solidariedade entre irmãos, chega a ser comovente.
Ficamos sem saber quanto custam os muares da administração do Jornal i à empresa detentora do jornal. Paciência, talvez na próxima capa sejamos elucidados.

16/12/14

O perfume do voto


Sobre a assembleia cidadã promovida pela iniciativa Juntos Podemos, realizada em Lisboa a 13-14 de Dezembro de 2014, gostaria de deixar algumas notas parcelares.

1. Apenas estive presente numa das primeiras reuniões de lançamento da iniciativa. Desconheço assim uma grande parte do seu modus operandi. Estive no entanto presente numa das oficinas auto-organizadas (dívida) e em dois dos plenários da assembleia cidadã – nomeadamente no plenário final, onde se devia decidir: a) o carácter formal daquele colectivo; b) formas organizativas de acção (na base social) e debate.
Balanço: a participação de pessoas tão diversas, com percursos políticos de esquerda tão variados, pareceu-me só por si interessante e esperançosa.

2. Entendo o encanto que toda a gente parece sentir pelo Podemos espanhol. Compreendo (mas não acompanho) a atracção fatal exercida pelo tesão eleitoral do Podemos junto de sectores militantes portugueses maso-passivos.
Entendo que o fenómeno espanhol deve ser seguido com atenção, tirando-se dele as devidas lições. Pequeno problema: não basta tirar as lições «boas»; é preciso tirar também as lições «más». Quem ouviu os mesmos representantes do Podemos há 6 meses em Lisboa e os ouve agora, não pode deixar de ficar perplexo: a vertigem eleitoral parece estar a dar-lhes a volta ao miolo.

3. Tanto quanto me pude aperceber graças a conversas de bastidores indiscretamente captadas, as cautelosas propostas preparadas para o plenário final pelo núcleo organizador (visando manter a unidade na acção e na reflexão, julgo eu) foram contrariadas de surpresa, no plenário final, por um grupo que – usando da prerrogativa de, numa assembleia democrática, qualquer um poder apresentar propostas – injectou a proposta que cautelosamente tinha sido arredada: activar os passos necessários para avançar a toda a força para a formação de um partido com fins eleitorais.

4. Não pude fazer um inquérito alargado, sem o qual julgo não ser possível ter uma ideia clara dos acontecimentos e das potencialidades existentes; um inquérito breve a meia dúzia de pessoas e a minha leitura das intervenções e atitudes nos plenários leva-me a crer o seguinte: a esmagadora maioria das pessoas ali presentes não consegue distinguir entre um partido, uma frente unitária e um movimento.

5. Vejamos qual a pontuação necessária para criar um partido. Ponhamos em confronto a dualidade {cumprem-se as condições necessárias}/{não se cumprem as condições necessárias}; partamos da pontuação 0-0.

18/11/14

As barqueiras e o Letes


Se bem entendi ao início as intenções metafóricas do programa «Barca do Inferno», difundido pelo canal televisivo RTP-Informação, propunham-se os autores, à maneira vicentina, construir uma barca onde temas e personagens políticos seriam indagados, medidos, sopesados e avaliados para se saber se caberiam na barca que conduz ao paraíso ou na que aporta ao inferno.



Na versão televisiva, duas barqueiras governam a barca do inferno, outras duas (durante as primeiras edições do programa, apenas uma) governam a do paraíso. A grande distância que vai de Gil Vicente à RTP, porém, torna instáveis estas duas barcas, pois enquanto na versão vicentina ambas se regem pelos mesmos fins (inquirir e sopesar os passageiros, usando para isso as medidas e alqueires do povo), na versão da RTP tudo é pervertido por um enervante vício contemporâneo: o contraditório simultâneo e instantâneo, a torto e a direito. As duas barcas televisivas não colaboram; combatem-se como navios inimigos, num cenário de guerra onde os passageiros, que deveriam ser o foco principal, se tornam mero adereço, e onde não existe tempo para a reflexão. O foco do espectáculo é assim deslocado para as próprias barqueiras, que aceitam o estado de guerra e pelejam entre si com enorme clangor, pondo-se a salvo os presuntivos passageiros.



Está portanto quebrada a metáfora, como se pode comprovar nesta passagem do texto vicentino original [acrescento facilitação para quem não está habituado à linguagem da época]:

02/11/14

Retrato da futura Era Antonina

Durante semanas a fio António Costa atirou à cara de António Seguro esta verdade insofismável: ele, Costa, ao contrário do seu opositor, Seguro, tem anos de provas dadas no exercício do poder, com vasta obra patente na cidade de Lisboa. Esta chamada de atenção, além de justa, habilita os portugueses a saberem com o que hão-de contar, logo que façam o que muito provavelmente farão: colocar António Costa no topo da hierarquia do poder central, administrativo e executivo do país.

A probabilidade de António Costa chegar ao topo é tão confortável e as provas dadas pelo autarca são tão inequívocas, que podemos com moderado risco imaginar o nosso futuro nos seus mais ínfimos pormenores. Para isso não são necessárias premonições nem bolas de cristal – basta um simples exercício de transposição da sua obra em Lisboa para o país inteiro, e zás, eis-nos perante uma imagem bem definida do porvir.

30/08/14

EPL – a Esquizofrenia Política Lusa


Desde o topo das hierarquias políticas, partidárias e económicas até às bases militantes, grande parte dos agentes políticos portugueses sofre um desarranjo mental profundo: um desdobramento triplo, ou mesmo quádruplo, de personalidade. Chamemos a esta anomalia, para facilitar, «esquizofrenia política».

14/08/14

Notícias do futuro



Uma acesa polémica está a correr mundo, a propósito da divulgação de uma colecção de documentários, filmes e outros instrumentos didácticos sobre a vida dos humanos nos remotos séculos XIX-XXI. Embora estes filmes sejam por regra antecedidos de cautelosos avisos às sensibilidades mais frágeis, a polémica subsiste: deve-se, ou não, facultá-los a toda a gente, e até às crianças, segundo o princípio do livre e universal acesso à informação e do combate ao paternalismo bacoco? Deverá a sensibilidade infantil, necessariamente menos blindada que a do adulto, ser poupada?

16/07/14

4 economistas à espera de 2 milagres

Duma maneira geral e com raras excepções, os estudos e intervenções dos economistas tendem a ser puros actos de fé. A força mística do economicismo no século XXI atinge extremos que provavelmente já não eram vistos desde épocas anteriores ao Iluminismo.

Como é típico de qualquer fé de carácter primitivo, os sacerdotes da religião economicista sofrem uma compulsão futurológica. Escrevem centenas de páginas analisando os dados da realidade – uma realidade que é tratada pelo áugure não com o carinho que merece toda a coisa humana actual, mas sim com o desprendimento de quem analisa as borras do chá ou as entranhas do frango –, para por fim chegarem a um vaticínio que em regra terá tanto de aleatório como de peremptório.

Na semana passada foi dado ao público mais um destes augúrios: o estudo «Um Programa Sustentável para aReestruturação da Dívida Portuguesa», da autoria de Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos. Os autores procuram fornecer um plano tecnicamente muito detalhado, carregado de vaticínios, para fazer a reestruturação da dívida (pública e privada), para fazer o que apelidam «saneamento da banca» e para promover uma alteração da estrutura económica portuguesa. O pormenor técnico desses planos ultrapassa largamente a minha capacidade crítica e soa como um autêntico programa de governação. Mas uma coisa é evidente, mesmo para um não iniciado em economia: a viabilidade do plano depende inteiramente de duas coisas: 1) a vontade política dos poderes públicos (presentes e futuros) para alterarem radicalmente a actual estrutura económica portuguesa, contra a vontade férrea dos grandes investidores privados, esses mesmos que delinearam e impuseram a actual estrutura económica do país; 2) a vontade dos bancos, depois de «saneados», de se portarem bem, deixarem de cometer os ilícitos, crimes e esquemas que provocaram as sucessivas crises financeiras e de «mercado» nos últimos anos, desistirem de apostar todo o dinheiro que lhes vem parar às mãos no casino da bolsa, na dívida pública e nos mercados de futuros, e em vez disso passarem a investir nos sectores produtivos da economia.

Estes dois pressupostos, que sustentam o estudo na sua totalidade, pedem dois milagres divinos a que nenhum não-crente no seu perfeito juízo pode dar crédito. Por mais belo que o plano possa parecer, o certo é que depende inteiramente da intervenção divina, sem a qual fica reduzido a um amontoado de tecnicismos inúteis, vazios de sentido, desligados da realidade.

02/07/14

O degrau zero da militância política

Há um conjunto de regras indispensáveis à organização da militância política de base que se mantêm imutáveis ao longo dos tempos. Podem as suas formas de aplicação variar em função do meio cultural ou da época, mas na essência elas são, digamos assim, uma constante do universo, como a força da gravidade ou a velocidade da luz.

fonte: «Acervo Arquivístico da União Operária», 

24/05/14

A sede de memória e o Aqueduto das Águas Livres

Memórias colectivas há-as muitas e de muitos géneros. Da que vamos aqui falar, é da dos explorados e oprimidos.
A memória colectiva é a alma mater da acção eficaz. Sem memória colectiva não existe resistência. Pode haver fúria momentânea, actos de raiva ou qualquer outra expressão emocional da frustração e da dor, mas não existe revolta (no sentido camusiano) nem resistência. A memória colectiva não se confunde com a memória individual nem pode ser substituída por esta; tem uma vida própria, um corpo próprio, métodos específicos de construção e conservação. O corpo da memória colectiva são os movimentos sociais: os sindicatos, as associações de bairro, as comissões de trabalhadores, as bibliotecas, tertúlias e escolas populares, etc. Mortos estes corpos, morre a memória.
Dito de outro modo: não existe memória colectiva sem organização. A memória desorganizada é uma falsa memória; é um conjunto caótico de dados fortuitos, que remetem para manifestações meramente emocionais, quando não para a inanição, sem conseguirem gerar resistência e revolta. A evidente incapacidade das populações, em Portugal, para fazerem frente aos abusos de poder de que estão a ser vítimas radica precisamente aí: na morte clínica da organização autónoma e de classe – logo, no estertor da memória colectiva.

24/04/14

25 de Abril lava tudo mais branco

Na euforia da celebração do 25 de Abril, todos os «militares de Abril» são metidos no mesmo saco. Todos são tratados por igual. Esta igualdade de tratamento esconde umas quantas diferenças essenciais.


Nem todos os «militares do 25 de Abril» estiveram sempre do mesmo lado da barricada; nem todos têm o mesmo tipo de responsabilidades na evolução dos acontecimentos. Metê-los a todos no mesmo saco por atacado é o tipo de lixiviação da história que nos trouxe ao triste ponto de confusão mental onde hoje nos encontramos.
Durante o PREC, em 1974-1975, uma parte das forças armadas foi-se colocando, pouco a pouco, ao serviço das populações – tendo por isso de virar costas ao patrão-Estado, visto que este e aquelas se encontravam em oposição radical –, rompendo assim com a razão de ser última do código militar.
No 25 de Novembro de 1975, um conjunto de oficiais resolveu repor a «ordem» – isto é, repor as forças armadas, na sua totalidade, ao serviço do Estado (de um certo tipo de Estado, precisamente aquele que hoje conhecemos e padecemos). Aos oficiais, sargentos e praças que se tinham posto ao serviço das populações durante ano e meio, foi dada ordem de rendição e prisão. Esta ordem veio de oficiais que, embora também eles tenham participado no derrube da ditadura, não estavam dispostos a mudar de patrão. Esses oficiais, mantendo-se fiéis a um certo tipo de Estado, mantiveram o useiro desprezo pela população civil, para a qual olham (para todos os efeitos práticos) como uma espécie de gentios que é preciso manter na ordem.
Dadas as regras de comportamento e honra vigentes dentro das forças armadas, os vencedores do 25 de Novembro trataram os militares vencidos com cortesia e honra (pelo menos exteriormente) e por isso todos podem sentar-se hoje à mesma mesa de comemorações, todos podem frequentar a mesma associação, trocar opiniões e livros entre si, pagar rodadas uns aos outros. Quanto à população civil, como sempre, passou-se-lhe um atestado de menoridade mental e foi metida na «ordem» – os caminhos do poder popular nascentes em 1975 foram atalhados pela força das armas e as opções que cada «militar de Abril» tomou nesse instante (pelas populações ou pela «ordem») não podem ser esquecidas.
O que esteve em causa no 25 de Novembro não foram 30 ou 40 oficiais e respectiva tropa; foi o destino de 10 milhões de portugueses e de umas quantas dezenas de milhões de descendentes. Que os militares «esqueçam» este pequeno pormenor, que a todo o custo mantenham a distinção entre população militar e população civil, não espanta, faz parte. Que nós outros façamos o mesmo, isso não só espanta, como é até sinal de alguma indigência mental.
Pedem-nos hoje que branqueemos o pacote inteiro dos «militares de Abril»; que achemos muita graça a alguns dos heróis do 25 de Novembro que agora se armam em pregadores contra o regime que eles próprios colocaram no poder. Não podemos, sem incorrer em cinismo, alinhar num tal branqueamento. Compreende-se que os Vasco Lourenço deste mundo queiram enaltecer o seu próprio papel nos acontecimentos; que lancem bravatas inconsequentes, gritando «agarrem-me, senão vou-me a eles» (eles = os membros dos últimos governos); que façam de conta que estão a defender a honra de toda a caserna e os três vinténs de uma dama que já ninguém sabe quem foi. Nós, entretanto, não podemos confundir os que em 1974-1975 se colocaram ao serviço das populações, com os que se colocaram ao serviço dos poderes económicos e políticos. Não podemos esquecer nem branquear essas diferenças, sendo certo que os actuais poderes económicos e políticos não diferem um milímetro dos que em Novembro de 1975 retomaram as rédeas do país à custa de um golpe militar, ainda que as suas políticas imediatas pareçam formalmente diversas.

02/04/14

Com tais rosários e gamanços, os pensionistas estão bem tramados!

Existem em Portugal cerca de 3,6 milhões de pensionistas. É um exército.

A dimensão deste exército é suficiente para provocar a queda de um governo, uma mudança de hábitos na participação cívica, ou mesmo uma revolução.
Quando se formou o movimento de reformados APRE, o meu coração encheu-se de esperança. É claro que eu não estava à espera que o exército dos reformados fizesse uma revolução, nem coisa que se pareça.
E no entanto, sim, esperava que dali viesse uma revolução – não institucional ou regimental, mas antes nos hábitos de participação e acção cívica. Esperava que a experiência encanecida nos desse a todos uma respeitável lição de organização e acção cívica directa; que o colectivo de cidadãos reunidos na APRE fosse capaz de pôr em marcha uma autêntica locomotiva, que atafulhasse as repartições, direcções-gerais e ministérios de reclamações, protestos, filas de espera, manifestações, que moesse o juízo aos governantes de todas as formas possíveis e imagináveis (um trabalhador reformado tem muito tempo para pensar e imaginar artimanhas), e que essa locomotiva, mais tarde ou mais cedo, graças ao seu bom exemplo e aos seus bons resultados, arrastasse consigo a demais população para a terra da democracia participada, e não apenas delegada.
As tarefas centrais da APRE eram simples:
  1. mostrar os dados e os factos tal qual eles são; desautorizar as mentiras dos governantes e a charlatanice dos falsos «técnicos» que pretendem encenar a insustentabilidade da segurança social;
  2. criar uma campanha mediática permanente, teimosa, enervante; não dar tréguas à opinião pública nem às campanhas de contra-informação do Governo;
  3. realizar acções colectivas visando travar o desmantelamento da Segurança Social e afirmar a vontade de garantir a solidariedade com os mais desprotegidos.

O que a APRE não precisava nem devia fazer, era meter-se em cavalgadas de política institucional, andar na marmelada com os partidos no poder, transmitir recados dos poderes públicos. Quanto menos o fizesse, mais razão teria e mais unidade produziria entre vastas camadas da população, algumas delas sujeitas a um autêntico genocídio.

É por isso uma enorme desilusão ver o descaminho impresso à APRE pela sua figura de proa, Maria do Rosário Gama, que mais uma vez (é já a terceira, se não estou em erro) vem a público zurrar coisas que uma representante da APRE devia recatar-se de dizer, para não comprometer os objectivos e interesses da associação cívica que representa. Vemo-la ao longo desta semana a fazer uma sistemática campanha mediática pelo voto nos candidatos ao parlamento europeu – segundo as suas palavras, o que é preciso é votar; vota!, nem que seja naqueles mesmos que estão agora mesmo a cortar tua pensão –, chegando ao ponto de afirmar que «é criminosa a campanha em curso nas redes sociais apelando à abstenção ou ao voto em branco ou nulo» [cito de memória e desconhecendo as campanhas em questão]. Se alguma coisa de criminoso houvesse a apontar, seria a campanha de Rosário Gama pelo voto nos partidos instalados no poder (com indisfarçável recado de voto no PS, diga-se de passagem), esvaziando a acção cívica directa da APRE e dividindo o campo dos pensionistas em dois. Não é preciso ser bruxo para adivinhar o futuro da APRE a partir de agora: uma aglomeração simbólica de cidadãos, pronta a ser usada como força de pressão ao serviço de interesses partidários duvidosos; uma tropa arregimentada para as urnas e completamente arredada da acção cívica directa.
Aí está como se bloqueia primeiro e mata depois um magnífico sonho.


Os factos

Existem cerca de 3,6 milhões de pensionistas (números de 2012). Destes, quase 3 milhões recebem pensões de velhice, invalidez, sobrevivência ou reforma antecipada (ou seja, uma miséria na maior parte dos casos); os restantes 0,6 milhões recebem pensões da CGA (Caixa Geral de Aposentações).
A título de exemplo, olhemos para a CGA, donde saíam em 2013 as pensões de cerca de 471 mil reformados e aposentados. Destes, 50% recebiam pensões inferiores a 1000 €. Fazendo as contas por alto e por excesso, estes pensionistas, contra os quais tanto berra Medina Carreira, recebem o equivalente a 0,36% do PIB. Isto significa que para sustentar essas pensões eu tenho de desembolsar, na pior das hipóteses, 2 € por semana – isto na hipótese de toda a gente estar a trabalhar em Portugal; mas como o desemprego está muito alto e nem todos os empregados arranjam trabalho a tempo completo, a factura sobe para 3 € por semana (na pior das hipóteses). Olhem para a minha cara de preocupado (peço desculpa se não for capaz de fazer umas caretas à Medina Carreira).
Entretanto, estes números escondem um facto dramático: 21% dos pensionistas da CGA recebem menos de 500 € por mês, ou seja, encontram-se na sua maioria abaixo do limiar de pobreza.


18/03/14

O crime organizado em alta escala

Em 2011, um pouco mais de 1/3 da população portuguesa tinha nascido antes de 1960. Deve portanto recordar-se duma época, que vai pelo menos até finais dessa década, em que os trabalhadores recebiam o salário na mão, em dinheiro vivo, e o guardavam em casa numa lata, numa gaveta ou debaixo do colchão.
Com a crise económica mundial da década de 1970, as coisas mudam pouco a pouco de figura. As épocas de crise são muito propícias à reflexão sobre as condições políticas e sociais, puxam à invenção de novas soluções. Nesse aspecto, porém, fica-me sempre a impressão de que, tirando situações especiais (como foi o caso em Portugal, de 1974 a 1976), o capital leva sempre a palma. É natural que assim seja, já que a generalidade dos capitalistas, ainda que muito chorem e lastimem a crise económica, sofrem menos física e psicologicamente, não passam fome (refiro-me à verdadeira, não à metafórica), não têm de gastar todo o seu tempo de reflexão a congeminar formas de subsistir; por maior que seja a crise, têm dinheiro para pagar a equipas de pensadores, para contratar estudiosos, mobilizar universidades inteiras e contratar umas quantas mentes brilhantes.

15/03/14

70 ministeriáveis abicham à porta do PS

70 personalidades que abarcam a generalidade do espectro político português, de Adriano Moreira a Francisco Louçã, publicaram um «Manifesto pela Reestruturação da Dívida». 


O Manifesto apresenta uma linguagem e uma estrutura reconhecíveis à primeira vista por qualquer técnico de publicidade e marketing, segundo me disseram os ditos. Foi minuciosamente construído de forma a não acordar ideias e polémicas que, do ponto de vista dos subscritores, não convém suscitar no debate público e na cabeça das pessoas.

Ao reunir figurões políticos variados num encontro altamente improvável, o Manifesto cria a sensação de um amplo consenso nacional, em que, de Portugal inteiro, apenas ficariam de fora os membros do governo. A força desta confluência tem um efeito esmagador na opinião pública, cilindrando tudo o que seja opinião alternativa à reestruturação da dívida – ao ponto de fazer encolher os ombros de muito boa gente perante a estranheza de na cama dos subscritores se ver ex-ministros de Salazar embrulhados com altos dirigentes da suposta esquerda radical.

O Manifesto procura seduzir com argumentos especiosos: «O processo de reestruturação das dívidas públicas já foi lançado pela Comissão Europeia» (então para quê o manifesto?); «A primeira condição é o abaixamento significativo da taxa média de juro do stock da dívida»; «A segunda condição é a extensão das maturidades da dívida para 40 ou mais anos»; «[A terceira condição é] reestruturar, pelo menos, a dívida acima de 60% do PIB».

12/03/14

Um empreendedor é um furão, já lá diz o dicionário

O programa «Prós e Contras», da RTP-1, costuma dividir os convidados em dois campos. Na última edição – dedicada à fuga dos portugueses para o estrangeiro, ainda que não se abram as águas do canal da Mancha – havia o campo dos que acham que há pró-razões para os trabalhadores fugirem de Portugal a sete pés e o campo dos que contra-acham que está tudo bem.

Os contras eram um «empreendedor» chamado Miguel Gonçalves (um descarado furão à vista desarmada) e um jurista chamado Rodrigo Adão da Fonseca com tiques neofascistas exibidos de forma bastante cândida. No campo oposto, Raquel Varela, historiadora, com uma capacidade argumentativa e um acervo de informação objectiva invulgares; e um empresário benévolo, Pedro Carmo Costa. É impossível não suspeitar que a configuração desta edição do programa tenha sido propositadamente desequilibrada em favor da defesa dos trabalhadores deste país e da destruição da imagem dos «empreendedores» furões.

12/01/14

Acreditas nos OVNIS?

Já tive de responder tantas vezes ao longo da vida a esta pergunta, que vou simplificar as coisas escrevendo a resposta duma vez por todas nesta página, onde os curiosos acerca das minhas crenças poderão encontrar a devida explicação, poupando-me a maiores gastos de tempo e energia.


03/01/14

Quem não sabe da metodologia e dos princípios não devia armar-se em docente do ensino superior

Um artigo de Mário Branco sobre o direito ao trabalho deu-me volta ao estômago. O que me provoca engulhos em «Direito ao Trabalho (4ª parte)» é sobretudo (porque muito mais haveria a apontar) o seguinte:
  1. A ideia de que vivemos numa sociedade livre, e de que a liberdade pode ser definida em função da liberdade de votar, de ser eleitor e de pedir responsabilidades aos eleitos (no acto eleitoral seguinte, supõe-se).
  2. A ideia de que todo o cidadão é culpado até prova em contrário.
  3. A ideia de que o trabalho é, e deve continuar a ser, um importante factor de socialização, aprendizagem e disciplinamento social.
Sobre o primeiro ponto não vou deter-me desta feita. Nos dois pontos seguintes reside a causa principal do meu enojamento, e é aí que quero centrar-me.

Bolas para a causalidade

Maravilhosa associação, bolas para a associação

O cérebro humano nasce com uma espécie de hardware de origem que dá pelo nome de associação. Esta capacidade de estabelecer associações entre diferentes objectos é emulada em certas linguagem de programação (por exemplo em Smalltalk) por uma função que dá precisamente pelo nome de «association» e que é representada da seguinte forma: chave → valor. Ou seja, a uma determinada chave/apontador corresponde um outro objecto. Estas associações, por sua vez, agrupam-se em grandes conjuntos para formar aquilo que se chama, na linguagem de Smalltalk – tal como na linguagem corrente – , um dicionário.

É claro que o cérebro humano funciona de modo muito mais sofisticado que o Smalltalk, mas o princípio fundamental é o mesmo: o estabelecimento de ligações permanentes entre objectos (ou representações desses objectos), criando entre eles canais que permitem encontrar um por intermédio do outro e enviar mensagens de um para outro. Esta habilidade basilar permite fazer maravilhas, a começar pela fala, que estabelece uma ligação permanente entre um som e um objecto. 
 
À partida não tem de haver nenhuma relação – lógica ou outra – entre os objectos duma associação; é o nosso cérebro que a estabelece casualmente, e se necessário contra toda a lógica. Na verdade, para que haja uma associação verdadeira é necessário que ambos os objectos sejam distintos e autónomos.

Aqui deparamo-nos com o primeiro perigo, ligeiramente demencial: começarmos a confundir a chave com o objecto que lhe está associado. É assim que certas pessoas (seja por ignorância, seja por um mau funcionamento qualquer do seu hardware) rompem a autonomia que deve existir entre a palavra e o objecto que ela designa, começando a baralhar e intermutar as respectivas propriedades dos objectos, numa reacção de associações em cadeia – o verde adquire o valor da esperança, o Emanuel adquire qualquer coisa de divino, Vénus adquire mamilos e, sabe-se lá porquê, talvez por simples associação sonora, a vizinha Vanessa torna-se desejável e boa como o milho.