25/05/11

Pequeno calendário da revolução equatoriana

Dezembro-2007

O Equador declara a sua decisão soberana de se retirar do CIRDI (Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos).
É um acto soberano, legal, inatacável, que produz efeitos jurídicos internos e externos.
Resulta deste passo político que o Equador se subtrai à alçada jurídica e política do FMI e do Banco Mundial.
É preciso sublinhar que a retirada do CIRDI não deixa o país indefeso do ponto de vista internacional – pode continuar a recorrer para os tribunais internacionais competentes para declararem ilegítima, odiosa ou ilegal uma parte da dívida.

25-Julho-2008

O Equador conclui a elaboração de uma nova constituição, como já referi em artigo anterior.
Pela primeira vez na história mundial das repúblicas a dívida pública passa a ser regulamentada, auditada ou mesmo proibida em numerosas circunstâncias.
Pela primeira vez na história da Humanidade, a Natureza passa a ser sujeito de Direito, com prevalência sobre as funções sociais, políticas e económicas.
Bem-vindos ao novo Equador. Bem-vindos a um país que tem por moeda o dólar americano mas estabelece como base condicionante das relações económicas o bem-estar comum. Bem-vindos a um país onde o Estado se compromete a regular efectiva e directamente (ou seja, sem parcerias público-privadas, ao contrário de Portugal e do Brasil) os recursos naturais, o petróleo, a água, as telecomunicações, as estradas, os transportes públicos, a educação, a saúde... Bem-vindos ao «socialismo do século XXI».

Setembro-2008

O Equador, enquanto Estado soberano, decide criar uma comissão de auditoria da dívida, a fim de se pronunciar sobre a sua legitimidade ou ilegitimidade.
Esta decisão é um acto interno, soberano; produz automaticamente efeitos jurídicos nacionais e internacionais. À semelhança de qualquer outro país, o Equador não tem de consultar os seus credores externos para tomar esta decisão.
Ao tomar esta decisão, o Equador, se quisesse, poderia ter suspendido o pagamento da dívida até às conclusões da comissão de auditoria. Não o fez (o que é discutível), mas poderia tê-lo feito em conformidade com a legalidade interna e externa.
A posição do Equador (ou de qualquer outro Estado soberano) nesta matéria foi declarada justa e intocável à face da lei internacional, pelo 1º Encontro Internacional de Juristas, realizado em Quioto (8-9 Julho 2008).
Não há que ter medo – a lei internacional está do lado de quem paga, de quem é explorado, de quem busca o bem-estar das populações em primeiro lugar, não do lado da agiotagem financeira.
Por outro lado, uma das questões cruciais da batalha contra a dívida reside na composição da comissão de auditoria e nos seus objectivos:

Membros da Comissão de Auditoria Integral do Crédito Público
Representantes oficiais
  • Ministro de Economía y Finanzas
  • Procurador de la Nación
  • Contralor General (En calidad de Asesor)
  • Presidente de la Comisión de Control Cívico de la Corrupción
Representantes nacionais de movimentos sociais
  • Jubileo 2000, Red Guayaquil
  • Centro de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (CDES)
  • Acción Ecológica
  • El Consejo Latinoamericano de Iglesias (CLAI)
  • La Confederación Nacional de Indígenas del Ecuador (CONAIE)
  • Red de Mujeres Transformando la Economía (REMTE) 
Representantes internacionais de movimentos sociais
  • Lucia Fattorelli y Alejandro Olmos de  la Red Jubileo Sur
  • Federación Luterana Mundial
  • Gail Hurley y Jürgen Kaiser de la Red Europea de Deuda y Desarrollo (EURODAD) y Jubileo Alemania
  • Oscar Ugarteche y Eric Toussaint  de la Red Latinoamericana de Deuda, Desarrollo y Derechos (LATINDADD ) y Comité por la Anulación de la Deuda del Tercer Mundo (CADTM)

Funções da CAIC – ver doc – essencialmente trata-se de listar todos os documentos pertinentes, criar uma base de dados pública, colocar toda a informação encontrada ao dispor de todos os cidadãos. A seguir os cidadãos tomam democrática e soberanamente a decisão que acharem mais conveniente.

Novembro-2008

O presidente do Equador, Rafael Correa, anuncia a suspensão do pagamento de 30,6 milhões de US$ referentes a títulos de dívida «Global 2012», que venceriam em 15-11-2008. Esta declaração assenta nas conclusões da auditoria (ver documentação em Auditoria Cidadã da Dívida, entre outros). Os títulos da dívida em causa elevavam-se a 250 milhões de dólares, a um juro de 12%.
«Até 15 de Dezembro decidiremos se continuamos a pagar ou se iremos para os tribunais, porque as renegociações da dívida foram um autêntico hold-up para o país», anunciou o chefe de Estado Rafael Correa, acrescentando que «existem provas sérias da nulidade dessa dívida».

Junho-2009

O Equador anuncia a sua decisão soberana de anular uma parte da dívida, representada pelos «Títulos Global 2030 e 2012» – são 85% da dívida externa comercial do Equador, ou seja, da dívida externa perante os bancos privados internacionais... que «curiosamente» são os mesmos responsáveis pela crise financeira internacional.
91% destes credores aceitaram uma redução de mais de 65% do valor nominal do stock dos títulos de dívida (cerca de 2000 milhões de US$).
Esta atitude representa um precedente para o mundo inteiro, demonstrando que é possível os governos defrontarem a questão da dívida de forma soberana.
2900 milhões de US$ em títulos de dívida foram retirados do mercado internacional.
Assim o Equador economiza nos próximos 21 anos 7280 milhões de US$; ou seja 330 milhões por ano; ou seja 30 milhões por mês.
«Revoltámo-nos contra um sistema que impõe dívidas odiosas, injustas, ilegais, imorais, contraídas de forma irregular, sem o consentimento explícito do nosso povo», afirmou o presidente Rafael Correa.

Porque são estes acontecimentos desconhecidos da opinião pública mundial? Como é possível que a comunicação social portuguesa não lhes tenha dado eco?
Primeiro, porque a decisão soberana do Governo equatoriano constitui o maior golpe de todos os tempos no poderio económico e político da finança mundial. É um precedente «perigoso», um incitamento à revolta de todos os outros povos. O poderio financeiro vê-se encurralado e reage silenciando as redes de comunicação social.
Segundo, porque a comunicação social portuguesa (à semelhança de muitas outras) não passa hoje, na sua generalidade, de uma «voz do dono» obediente e acéfala.
Terceiro, porque os militantes das redes de comunicação digital em Portugal sofrem de algumas maleitas semelhantes às dos órgãos de comunicação social: não vêem nem estudam mais longe que a pequenez das suas fronteiras.

Março-2010

A exploração petrolífera do parque de Yasuní poderia render ao Estado equatoriano entre 5 e 6 mil milhões de dólares. Mas esta exploração, além dos prejuízos que provoca a nível global e do agravamento do efeito de estufa, implica a destruição de parte da floresta amazónica equatoriana. Por isso o Equador põe como condição para a exploração petrolífera no território (se esta não puder ser impedida) a retribuição de pelo menos 50% dos lucros de exploração, a fim de combater os estragos provocados na biodiversidade amazónica e na vida social.
(Ver docs e pormenores desta iniciativa revolucionária.)

Fevereiro de 2011

O Equador bate todos os recordes mundiais em matéria de indemnizações impostas a empresas multinacionais que provocaram estragos sociais e ambientais – a Chevron Texaco foi dada como culpada nos tribunais internacionais pelos prejuízos causados entre 1964 e 1990 e terá de pagar 9500 milhões de dólares.
É um precedente legal histórico, tanto pelo conteúdo como pelo montante.


Trago aqui este resumo muito genérico e breve dos acontecimentos no Equador com algumas intenções:
  1. Ajudar as assembleias populares em curso em diversos pontos de Portugal a reflectir sobre a questão da dívida soberana. Não pretendo impingir soluções, apenas fornecer alguns dados baseados em factos reais e o exemplo de outras lutas semelhantes levadas a cabo com sucesso.
  2. Embora seja compreensível o medo das populações perante a ideia da auditoria, da renegociação da dívida ou mesmo da sua anulação, este medo sem razão evidente resulta da propaganda oficial das correntes neoliberais, e da propaganda oficiosa, aparentemente «neutra», veiculada pela «voz do dono», isto é, pelos órgãos de comunicação social. Disto já falei em artigo anterior. No entanto o exemplo do Equador prova que as opções soberanas, sejam elas quais forem, são possíveis, não são utópicas mas sim eficazes, não implicam o fim do mundo mas sim um maior bem-estar das populações.
  3. É absolutamente indispensável criar redes independentes e honestas de informação, baseadas em redes digitais (e portanto mais facilmente independentes do poder económico).
  4. Olhando atentamente para os documentos disponíveis sobre os últimos 8 anos de história do Equador, verificamos que, para além da coragem imensa desse povo e de alguns dos seus dirigentes políticos, a solidariedade internacional desempenhou um papel indispensável. Sem as acções de solidariedade internacional, a revolução equatoriana poderia ter sido irremediavelmente esmagada. É necessário que os activistas e as redes sociais portuguesas se liguem às redes internacionais, estudem os processos de outros países, abandonem as fronteiras ridículas do seu Portugal dos Pequeninos e apelem ao auxílio solidário das redes e movimentos sociais internacionais através de objectivos e propostas concretas de acção.

nota: algumas horas depois da publicação deste artigo reparei que outro, complementar, foi publicado aqui.

fontes:

Geral, sobre a anulação da dívida em todo o mundo: CADTM.
Primeiros resultados da auditoria da dívida no Equador.
Suspensão do pagamento dos juros da dívida no Equador.
http://www.ilmanifesto.it/oggi/art48.html.
Decisão soberana de declara a anulação da dívida do Equador.
Auditoria Cidadã da Dívida, lista de documentos sobre o Equador.
A Iniciativa Yasuní ITT.
Indemnização pelos prejuízos ambientais e sociais causados no Equador.
O Equador como novo modelo constitucional em matéria de dívida.

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