Há um ano que a Lei do Cinema repousava numa gaveta, à espera de regulamentação. Há mais de um ano que os profissionais e criadores do cinema português viviam num limbo, à espera que a lei do cinema ressuscitasse do seu sono de bela adormecida. Finalmente, o decreto-lei regulamentador baixou ao parlamento. Baixou, mas imediatamente levantou alguns espantos – uns mais previsíveis, outros menos.
O primeiro espanto diz respeito a um certo secretismo que rodeia a iniciativa legislativa – os documentos respectivos, segundo o que foi noticiado na comunicação social, não estão acessíveis para informação e debate público. É, no mínimo, muito estranho. (Sobre o decreto-lei também eu não possuo documentação directa, por isso terei de fazer fé nas informações fornecidas pela imprensa.)
O segundo espanto diz respeito ao facto de a chave do decreto-lei (ou pelo menos dos considerandos e justificações vindos a lume) ser a palavra «negócio». Um espanto que, vendo bem as coisas, nada tem de inesperado, a própria lei já afirmava no seu artigo 3.º ter como objectivo «apoiar financeiramente o reforço do tecido empresarial da produção audiovisual». Os autores da obra artística praticamente desapareceram da equação, sendo toda a tónica posta nas empresas de «produção independente». E o que é um «produtor independente»? Segundo o artigo 2.º da mesma lei, é «a pessoa colectiva [=empresa] cuja actividade principal consista na produção de obras cinematográficas ou audiovisuais» e cujo «capital social» não seja detido em mais de 50% por cadeias de televisão, nem delas dependa exclusivamente para vender mais de 90% dos seus produtos.
Há nesta estratégia legal algumas subtilezas a registar. Uma diz respeito ao facto de a lei anterior a 2012, que estabelecia um compromisso entre o subsídio institucional e o investimento privado (e que por sua vez veio substituir outra que não impunha investimento privado obrigatório e admitia a iniciativa dos criadores), ser substituída por uma lei que impõe o controle de todo o processo de produção por empresas privadas.
Outra subtileza vem do facto de a própria lei adoptar um anglicismo que desloca definitivamente a ideia de «produção» para o lado empresarial, fazendo desaparecer de vista aqueles que de facto trabalham, isto é, produzem: os criadores e os técnicos de cinema.
Outra reside no facto, tão curioso como revelador, de a lei se dar ao trabalho de definir o conceito de «independência», reduzindo-o à proibição de investimento maioritário de capitais na produção cinematográfica por parte dos operadores de televisão. É espantoso o descaramento desta lei, que revela as suas verdadeiras intenções amesquinhando o conceito de independência a um minúsculo pormenor do mercado de capitais. Aquilo que gostaríamos de ver salvaguardado, ou seja, a independência e liberdade de criação artística, está absolutamente ausente do diploma legal. Ora, como se sabe, se há coisa que não existe na mercantilização geral da sociedade (e em particular das artes) é liberdade e independência. Esta lei é, portanto, uma grilheta que tende a restringir a independência da criação artística.
Outro espanto diz respeito à desfaçatez com que se mente (pelo menos segundo as notícias transmitidas pela imprensa) quanto aos «modelos de negócio» cinematográfico adoptados noutros países europeus. Um espanto indevido, pois já sabemos que o neoliberalismo assenta inteiramente em mitos e na deturpação da realidade. O «modelo de negócio» do cinema português passa a assentar em duas novas taxas impostas aos operadores e distribuidores de TV e num esquema de investimentos que não consegui discernir. Entretanto, o governo esqueceu-se de dizer que em países onde o orçamento de estado para a cultura é superior a 0,1% do PIB, como em França, por exemplo, a distribuição e exibição de produtos da indústria cinematográfica pagam uma taxa destinada a subsidiar o cinema francês.
Na realidade concreta e quotidiana, o que se verifica é que os dinheiros de apoio à produção audiovisual vão inteirinhos para as mãos do «produtor» (leia-se: da empresa intermediária na produção), enquanto os criadores e técnicos trabalham por quantias diminutas ou mesmo sem remuneração, sendo muitas vezes obrigados a investir do seu bolso em material de produção; pagam para trabalhar «para o currículo».
No meio de uma suposta crise das finanças de estado, seria de esperar que nos casos em que uma produção audiovisual viesse a alcançar sucesso comercial, não fosse inteiramente subsidiada a fundo perdido, sendo obrigada a devolver uma porção do dinheiro recuperado na fase de mercantilização – assim libertando mais verbas para obras que não correspondam inteiramente ao gosto mercantilizado do público. Mas não – o negócio afinal consiste em subsidiar a fundo perdido empresas privadas de «produção», de preferência explorando até ao tutano os profissionais de cinema.
26.9.2013 16:15 - CINEMA IN PORTUGAL TODAY
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