Tem medo o presidente, tem medo o PS, tem medo a
oposição de esquerda, tem medo a direita; tem medo o trabalhador,
tem medo o precário, tem medo o desempregado. Toda a gente tem medo.
Não por realismo. Apenas por cobardia.
Todos andam de fralda, por via de não se
borrarem.
Dois parolos tacanhos sentados à mesa da RTP às 10 da noite urram de pânico
Dois parolos detentores ostensivos de tacanhez
indómita, um respondendo ao nome de José Matos Correia e outro nem
sei por que nome, deram às câmaras da RTP-notícias um enervante
concerto de latidos e rosnidos. Pertencem ambos a uma elite de
provincianos munidos de diploma com que ensopam no sovaco os suores
frios. Em tudo fazem lembrar mortos-vivos foragidos duma campa de
meados do século XIX, ou velhas caricaturas literárias da mesma
época, tal é a incapacidade que têm de disfarçar os jogos de
camarilha e compadrio que subservem com descaro façanhudo.
Em longas intervenções urlulantes voltaram à
carga com uma lenga-lenga que eu julgava extinta, quanto mais não
fosse por vergonha e por se terem apercebido os políticos
recentemente (aleluia!) que o povoléu não é tão estúpido quanto
eles julgavam: a de que a esquerda não tem propostas alternativas de
governo e por isso resume a sua vocação ao berreiro oposicionista,
sem políticas alternativas nem projecto de governo.
Ou tudo isto é um espectáculo de propaganda
(coisa que, como trabalhador da área das artes, me custa crer, por
ser o espectáculo coisa que requer habilidade e imaginação), ou
uma prova de incomensurável estupidez. Se eu, convicto agnóstico,
fosse incapaz de compreender o pensamento dos crentes, se todo o meu
mundo se reduzisse tacanhamente às minhas convicções pessoais,
também eu diria que os crentes não têm projecto de pensamento nem
de vida; que por (segundo as minhas idiossincrasias) não haver lugar
para se colocar a questão de deus, então aqueles que a colocam não
existem, pura e simplesmente. Não caio eu nessa ratoeira, mas assim
funciona a tacanhez.
Aqueles dois senhores a quem foi dado um extenso
tempo de antena (vá-se lá saber porquê?), com a maior candura,
fazem passar pela estreiteza de uma mente por onde não conseguiria
passar uma pulga um sopro de voz que, com a autoridade da gravata e
da câmara, declara a falência de pensamento e projecto político da
esquerda.
Pelo andar da carruagem qualquer dia veremos na TV
mesas redondas de chimpanzés batendo no peito e reduzindo o discurso
(para alívio geral) a uns quantos hu!hu!hu!
Batem no peito e berram os primatas, como se
estuda em Etologia, quando se vêem numa situação de ameaça
insolúvel (irreversível). Ou seja, é sinal de medo. E é ritual
com que tentam disfarçar o próprio medo e espantar a sua causa –
o que de facto muitas vezes resulta, por mais estúpido que possa
parecer, e se não resultasse seria previsível que a evolução
natural lhes tivesse servido outro expediente.
O sentido da crise e das palhaçadas presidenciais
Apesar de tudo, o presidente teve sorte – apenas
lhe chamaram palhaço, coisa que ele não soube apreciar e contra a
qual mandou autuar, embora se tratasse duma forma bem simpática de
não lhe chamar mentecapto.
Mas o que de mais cristalino revela a proposta do
presidente (recordemos: um chamado a que os partidos do «arco do
poder» formem um entendimento de «salvação nacional») é
precisamente o medo simiesco. O mesmo medo que se detecta em todos os
que, com maior ou menor entusiasmo (consoante a respectiva capacidade
de ver a cretinice da proposta e a posição para que à conta disso
se acham empurrados), alinham na obediência ao chamado.
É preciso ainda recordar que, subtraindo os
rodriguinhos, a proposta do presidente se resume nisto: senhores
dirigentes do «arco do poder», antes que eu me chateie a sério,
tratem de se entenderem de forma a que o (suposto) perigo da esquerda
seja varrido de vez e o (suposto?) perigo da agitação social seja
sufocado e o programa de governação expresso no acordo da Troika se
efective com uma força demolidora, para todo o sempre, ámen. (se
possível com a ajuda de Nossa Senhora de Fátima, tão querida do
presidente)
Para quem não prestou muita atenção aos últimos
4 anos das peripécias europeias, esclareça-se o seguinte: o grande
medo que faz todos estes símios bater no peito e urrar são coisas
como os acontecimentos recentes no Norte de África, no Brasil, na
Turquia, e noutras partes onde as massas populares ultrapassaram pela
esquerda as tradicionais organizações de esquerda (refiro-me
àquelas que se autoproclamam «vanguardas») e as puseram a reboque
do improviso popular; são coisas como o Syriza e outras frentes
políticas de resistência onde variadas tendências se aglomeram,
juntam recursos e pregam tremendos sustos eleitorais.
Pessoalmente duvido que uma população com o
nível de maturidade política do nosso país, na fase actual,
consiga transformar os seus fantasmas de indignação numa revolta de
punho cerrado e assanhado. Pessoalmente duvido que um conjunto de
partidos de esquerda que jogam à cagadinha, cobardemente falando em
reestruturação da dívida, e depois em renegociação da dívida, e
por fim, ouvindo algumas vozes na rua descrentes da possibilidade de
pagar tamanha monstruosidade, até já se atrevem – oh céus,
que coragem estonteante! – a falar em cancelamento ou
suspensão de alguma partezinha ilegítima dessa dívida, duvido,
dizia, que semelhantes partidos possam fazer mossa a alguém, ou
mobilizar alguma parte maior do eleitorado descrente de todo este
circo.
As minhas dúvidas, porém, não ocorrem a
presidentes, nem a governantes, nem aos partidos de direita – e
assim se explica o medo pânico de que sofrem e que, como é típico
do pânico, os leva a tentar fazer coisas absolutamente sem sentido.
Tão-pouco ocorrem tais dúvidas à direcção do
PS, tanto assim que não vê ela o resultado provado, deste e do
outro lado do Mediterrânico, das tentativas dos partidos socialistas
para alinhar (a sério ou a fingir, tanto faz, vai dar no mesmo) em
acordos de salvação nacional: a estiolação desses mesmos
partidos, seguida do desaparecimento do mapa político nos
respectivos países. Se lhes ocorresse, o pânico atirá-los-ia na
direcção oposta. Nem lhes ocorre que o medo do BE e do PC num
recrudescimento da movimentação popular (= fuga a todo o controle
institucional) é igual ou superior ao dele, PS.
Os cães ladram, a caravana passa
Raramente se aplica tão bem este provérbio árabe
como na situação actual. Enquanto o circo mediático da «crise»
se desenrola, a caravana da governação prossegue.
Assim, prossegue a destruição do estatuto dos
funcionários públicos (= garantias, acordos e relações de
trabalho instituídas). Prossegue a política de desemprego.
Prossegue o ataque invulgarmente violento aos estivadores, ao ponto
de os patrões preferirem parar eles próprios a estiva e os barcos,
com todo o prejuízo particular e nacional que isso representa, a
ceder um milímetro à luta dos estivadores.
Prossegue a acumulação sempre crescente das
dívidas das empresas à segurança social, a níveis que já
alcançam mais do dobro dos cortes anunciados pelo governo. Prossegue
todos os dias a destruição do serviço nacional de saúde e de
educação, independentemente de o presidente reconhecer ou não os
ministros respectivos em exercício.
Prossegue a proliferação de empresas fictícias,
de forma que os trabalhadores precários sejam obrigados a passar
recibos verdes cada mês a uma empresa formalmente diferente (em
cujas instalações nunca trabalharam, mas isso não parece importar
ao governo e respectivos órgãos de fiscalização), exonerando
assim a empresa-mãe de pagamentos à Segurança Social – e por
arrasto perdendo eles, trabalhadores, o direito ao fundo de
desemprego quando forem postos no olho da rua.
A cobardia de um povo sujeito a meio século de ditadura e um quartel de neoliberalismo
Perante o comportamento das empresas, perante a
desumanidade das relações laborais impostas na prática concreta do
dia-a-dia por tantos patrões, perante a chantagem que obriga tantos
empregados a trabalharem à borla no fim de semana, perante a
facilidade com que se despede, com que se abusa pessoal, sexual e
profissionalmente de toda a gente, enfim, perante as injustiças mais
atrozes no mundo do trabalho, faz confusão como é Portugal o país
europeu onde menos se denuncia, onde menos dados e escândalos são
sacados às empresas.
Todos os dias vários milhares de trabalhadores
são lançados como cães ou escravos exauridos para o meio da rua,
sendo que uns quantos desses milhares inevitavelmente têm acesso a
um terminal de computador donde poderiam retirar dados
comprometedores. Pois bem, nem um, até hoje, veio a lume. Espantoso!
Tal é a força do medo enraizado por 50 anos de ditadura e
consolidado por 30 anos de neoliberalismo.
Chegou a hora de sacudir de toda esta corja de
cobardes a lama do pânico, pelos meios mais extremos ao nosso
alcance, porque outros meios que não esses jamais funcionarão,
comprovadamente.
Chegados aqui, só o medo pode vencer o medo.
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