17/07/13

Um povo inteiro de fralda


Tem medo o presidente, tem medo o PS, tem medo a oposição de esquerda, tem medo a direita; tem medo o trabalhador, tem medo o precário, tem medo o desempregado. Toda a gente tem medo. Não por realismo. Apenas por cobardia.

Todos andam de fralda, por via de não se borrarem.

Dois parolos tacanhos sentados à mesa da RTP às 10 da noite urram de pânico

Dois parolos detentores ostensivos de tacanhez indómita, um respondendo ao nome de José Matos Correia e outro nem sei por que nome, deram às câmaras da RTP-notícias um enervante concerto de latidos e rosnidos. Pertencem ambos a uma elite de provincianos munidos de diploma com que ensopam no sovaco os suores frios. Em tudo fazem lembrar mortos-vivos foragidos duma campa de meados do século XIX, ou velhas caricaturas literárias da mesma época, tal é a incapacidade que têm de disfarçar os jogos de camarilha e compadrio que subservem com descaro façanhudo.


Em longas intervenções urlulantes voltaram à carga com uma lenga-lenga que eu julgava extinta, quanto mais não fosse por vergonha e por se terem apercebido os políticos recentemente (aleluia!) que o povoléu não é tão estúpido quanto eles julgavam: a de que a esquerda não tem propostas alternativas de governo e por isso resume a sua vocação ao berreiro oposicionista, sem políticas alternativas nem projecto de governo.

Ou tudo isto é um espectáculo de propaganda (coisa que, como trabalhador da área das artes, me custa crer, por ser o espectáculo coisa que requer habilidade e imaginação), ou uma prova de incomensurável estupidez. Se eu, convicto agnóstico, fosse incapaz de compreender o pensamento dos crentes, se todo o meu mundo se reduzisse tacanhamente às minhas convicções pessoais, também eu diria que os crentes não têm projecto de pensamento nem de vida; que por (segundo as minhas idiossincrasias) não haver lugar para se colocar a questão de deus, então aqueles que a colocam não existem, pura e simplesmente. Não caio eu nessa ratoeira, mas assim funciona a tacanhez.

Aqueles dois senhores a quem foi dado um extenso tempo de antena (vá-se lá saber porquê?), com a maior candura, fazem passar pela estreiteza de uma mente por onde não conseguiria passar uma pulga um sopro de voz que, com a autoridade da gravata e da câmara, declara a falência de pensamento e projecto político da esquerda.

Pelo andar da carruagem qualquer dia veremos na TV mesas redondas de chimpanzés batendo no peito e reduzindo o discurso (para alívio geral) a uns quantos hu!hu!hu!

Batem no peito e berram os primatas, como se estuda em Etologia, quando se vêem numa situação de ameaça insolúvel (irreversível). Ou seja, é sinal de medo. E é ritual com que tentam disfarçar o próprio medo e espantar a sua causa – o que de facto muitas vezes resulta, por mais estúpido que possa parecer, e se não resultasse seria previsível que a evolução natural lhes tivesse servido outro expediente.


O sentido da crise e das palhaçadas presidenciais

Apesar de tudo, o presidente teve sorte – apenas lhe chamaram palhaço, coisa que ele não soube apreciar e contra a qual mandou autuar, embora se tratasse duma forma bem simpática de não lhe chamar mentecapto.
Mas o que de mais cristalino revela a proposta do presidente (recordemos: um chamado a que os partidos do «arco do poder» formem um entendimento de «salvação nacional») é precisamente o medo simiesco. O mesmo medo que se detecta em todos os que, com maior ou menor entusiasmo (consoante a respectiva capacidade de ver a cretinice da proposta e a posição para que à conta disso se acham empurrados), alinham na obediência ao chamado.

É preciso ainda recordar que, subtraindo os rodriguinhos, a proposta do presidente se resume nisto: senhores dirigentes do «arco do poder», antes que eu me chateie a sério, tratem de se entenderem de forma a que o (suposto) perigo da esquerda seja varrido de vez e o (suposto?) perigo da agitação social seja sufocado e o programa de governação expresso no acordo da Troika se efective com uma força demolidora, para todo o sempre, ámen. (se possível com a ajuda de Nossa Senhora de Fátima, tão querida do presidente)

Para quem não prestou muita atenção aos últimos 4 anos das peripécias europeias, esclareça-se o seguinte: o grande medo que faz todos estes símios bater no peito e urrar são coisas como os acontecimentos recentes no Norte de África, no Brasil, na Turquia, e noutras partes onde as massas populares ultrapassaram pela esquerda as tradicionais organizações de esquerda (refiro-me àquelas que se autoproclamam «vanguardas») e as puseram a reboque do improviso popular; são coisas como o Syriza e outras frentes políticas de resistência onde variadas tendências se aglomeram, juntam recursos e pregam tremendos sustos eleitorais.

Pessoalmente duvido que uma população com o nível de maturidade política do nosso país, na fase actual, consiga transformar os seus fantasmas de indignação numa revolta de punho cerrado e assanhado. Pessoalmente duvido que um conjunto de partidos de esquerda que jogam à cagadinha, cobardemente falando em reestruturação da dívida, e depois em renegociação da dívida, e por fim, ouvindo algumas vozes na rua descrentes da possibilidade de pagar tamanha monstruosidade, até já se atrevem – oh céus, que coragem estonteante! – a falar em cancelamento ou suspensão de alguma partezinha ilegítima dessa dívida, duvido, dizia, que semelhantes partidos possam fazer mossa a alguém, ou mobilizar alguma parte maior do eleitorado descrente de todo este circo.

As minhas dúvidas, porém, não ocorrem a presidentes, nem a governantes, nem aos partidos de direita – e assim se explica o medo pânico de que sofrem e que, como é típico do pânico, os leva a tentar fazer coisas absolutamente sem sentido.

Tão-pouco ocorrem tais dúvidas à direcção do PS, tanto assim que não vê ela o resultado provado, deste e do outro lado do Mediterrânico, das tentativas dos partidos socialistas para alinhar (a sério ou a fingir, tanto faz, vai dar no mesmo) em acordos de salvação nacional: a estiolação desses mesmos partidos, seguida do desaparecimento do mapa político nos respectivos países. Se lhes ocorresse, o pânico atirá-los-ia na direcção oposta. Nem lhes ocorre que o medo do BE e do PC num recrudescimento da movimentação popular (= fuga a todo o controle institucional) é igual ou superior ao dele, PS.


Os cães ladram, a caravana passa

Raramente se aplica tão bem este provérbio árabe como na situação actual. Enquanto o circo mediático da «crise» se desenrola, a caravana da governação prossegue.

Assim, prossegue a destruição do estatuto dos funcionários públicos (= garantias, acordos e relações de trabalho instituídas). Prossegue a política de desemprego. Prossegue o ataque invulgarmente violento aos estivadores, ao ponto de os patrões preferirem parar eles próprios a estiva e os barcos, com todo o prejuízo particular e nacional que isso representa, a ceder um milímetro à luta dos estivadores.

Prossegue a acumulação sempre crescente das dívidas das empresas à segurança social, a níveis que já alcançam mais do dobro dos cortes anunciados pelo governo. Prossegue todos os dias a destruição do serviço nacional de saúde e de educação, independentemente de o presidente reconhecer ou não os ministros respectivos em exercício.

Prossegue a proliferação de empresas fictícias, de forma que os trabalhadores precários sejam obrigados a passar recibos verdes cada mês a uma empresa formalmente diferente (em cujas instalações nunca trabalharam, mas isso não parece importar ao governo e respectivos órgãos de fiscalização), exonerando assim a empresa-mãe de pagamentos à Segurança Social – e por arrasto perdendo eles, trabalhadores, o direito ao fundo de desemprego quando forem postos no olho da rua.


A cobardia de um povo sujeito a meio século de ditadura e um quartel de neoliberalismo

Perante o comportamento das empresas, perante a desumanidade das relações laborais impostas na prática concreta do dia-a-dia por tantos patrões, perante a chantagem que obriga tantos empregados a trabalharem à borla no fim de semana, perante a facilidade com que se despede, com que se abusa pessoal, sexual e profissionalmente de toda a gente, enfim, perante as injustiças mais atrozes no mundo do trabalho, faz confusão como é Portugal o país europeu onde menos se denuncia, onde menos dados e escândalos são sacados às empresas.

Todos os dias vários milhares de trabalhadores são lançados como cães ou escravos exauridos para o meio da rua, sendo que uns quantos desses milhares inevitavelmente têm acesso a um terminal de computador donde poderiam retirar dados comprometedores. Pois bem, nem um, até hoje, veio a lume. Espantoso! Tal é a força do medo enraizado por 50 anos de ditadura e consolidado por 30 anos de neoliberalismo.

Chegou a hora de sacudir de toda esta corja de cobardes a lama do pânico, pelos meios mais extremos ao nosso alcance, porque outros meios que não esses jamais funcionarão, comprovadamente.

Chegados aqui, só o medo pode vencer o medo.

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