Mude você mesmo o seu presente – eu não posso ajudar
Há milhares de anúncios com coisas deste teor
(colho um ao acaso, o primeiro que me saiu na rifa ao abrir o
navegador de Internet):
«E se tivesse a oportunidade
de mudar o seu futuro? Acabe com os seus problemas e encontre a
felicidade tão desejada. Eu posso ajudar.»
O mesmo tipo de anúncios é afixado nos jornais,
ao lado das campainhas das portas, distribuído em mão na rua e
introduzido nas caixas de correio. Há para todos os gostos – uns
mais ocidentalizados, outros mais africanizados.
O que de comum encontramos em todos é:
- uma cesura entre o passado, o presente e o futuro – sendo o presente passivo;
- a ideia de que o futuro está pré-determinado (daí a utilização no anúncio da expressão «mudar o futuro»);
- a ideia de que é preciso recorrer a um guru para mudar o futuro.
Cesura, compartimentação, determinismo,
sectarismo – eis algumas das chaves destes anúncios.
Oportunidade, possibilidade ou probabilidade?
O texto do anúncio pode parecer simplório. Não
é. Repare-se no uso da palavra oportunidade. Esta escolha de
palavras não é impensada, pois contrapõe oportunidade
a possibilidade. A palavra oportunidade designa um encontro casual com um vento que nos colhe e leva a bom porto. A possibilidade
implica poder, ou seja
capacidade de fazer algo e a vontade de o fazer.
É
claro que produzir um futuro diferente do presente é sempre possível
e provável; se a expressão usada no anúncio fosse «e se tivesse a
possibilidade de mudar o futuro?», até o menos intuitivo dos
leitores torceria o nariz, porque a frase em si mesma torna evidente
que o produto à venda já nós o possuímos, de borla.
O xamã esotérico e o xamã político
O próprio tema do
anúncio pode parecer tosco, marginal e simplório. Não é. Pelo
contrário, faz parte de um discurso sofisticado e apurado ao
longo de séculos. Assim, por exemplo, a forma como a esmagadora
maioria das figuras e organizações políticas discursa é
semelhante à do anúncio. Façam o favor de se munirem de papel e
lápis, abram a televisão nos canais de notícias e anotem o
discurso dos políticos que forem aparecendo. Verão que por regra, de forma directa ou indirecta, explícita ou
tácita, o discurso justifica as suas propostas num futuro
imaginado, arrogando-se a capacidade de o «alterar» e determinar. São futurologistas encartados. A única coisa que os
distingue dos gurus e sacerdotes dos citados anúncios é o tipo de fé. Algumas pessoas
têm fé em mestres de macumba; outras, em deuses; outras, numa
«política» (refiro-me aqui, evidentemente, à pseudopolítica dos
futurologistas-deterministas).
(Nota de passagem: Vítor Gaspar, ex-ministro das
Finanças, insistiu durante dois anos no erro de prognosticar o
futuro a muito curto prazo, o que permitiu desmascará-lo em poucas
semanas. A maioria dos xamãs é bastante mais esperta, não se
deixando apanhar na ratoeira do curto prazo.)
O paradoxo da futurologia
Fazer algo de concreto hoje em nome de um futuro pessoal ou social imaginariamente construído é um erro
dramático que Albert Camus desmontou em O Homem Revoltado –
para ele remeto, abreviando. Recordo apenas que uma revisão rápida
da história recente demonstra como grande parte das maiores
barbaridades e crimes contra a humanidade foi cometida em nome de uma
«visão» do futuro. Recordo ainda que Camus não se limita a
apontar a óbvia continuidade histórica (o presente como função do
passado, sem cesuras); acrescenta que, na mesma linha de
continuidade, o futuro é função do presente, e que esta função é
o limite de determinação/indeterminação até onde podemos ir
racionalmente. Logo, justificar certas acções actuais em nome de um
futuro previsto (seja ele qual for) é uma forma de fado ou
fatalismo, apenas um poucochinho mais sofisticada. Paradoxalmente,
toda a correcção do futuro apenas pode ser feita em nome do
presente: a construção do melhor presente possível é a única
garantia (ainda assim precária) do melhor futuro possível. Mais do
que isso não nos é legítimo garantir sem nos arrogarmos
capacidades divinas e sem condenar toda a humanidade à perda
irremediável do livre arbítrio individual.
O papel central da fé
Outra coisa comum entre os vendedores de
esoterismos e os vendedores de políticas é a noção de que todos
nós necessitamos de aderir a uma seita ou a um guru para «mudar o
futuro». Ou seja, uma vez entregues ao nosso próprio livre
arbítrio, sem guia nem caudilho ficaríamos paradoxalmente
encerrados na prisão do fatalismo.
Contra este determinismo fatalista opõem os
vendilhões da «mudança do futuro» o determinismo sectário: se
aderirmos a uma certa seita, a uma certa fé, a um certo caudilho ou
a uma certa organização (seja ela religiosa, esotérica, política,
etc.), automaticamente determinamos a «mudança do futuro».
Por outras palavras e com maior rigor: o que há
de comum entre os vendilhões esotéricos e os vendilhões políticos
é a fé.
Recordemos que a palavra fé significa
etimologicamente lealdade e é correlativa de: fidelidade,
confiança, fiável, fiar/fiado, confidência, desconfiar,
desafio/desafiar, etc. O que todos estes vendilhões nos pedem,
portanto, é que façamos uma coisa extremamente simples e
confortável: ter fé, ser-lhes fiel, acreditar cegamente neles.
Recordemos, já agora, que a palavra seita
designa etimologicamente um grupo de pessoas que segue atrás de um
caudilho e é correlativa de: sectário, sequaz, consequência,
acessível. Tem
acesso a um futuro melhor quem seguir o caudilho –
o que não deixa de ser
evidente
em qualquer câmara municipal.
Mais remotamente ainda, o
termo seita provém de
seguir e é
correlativa de: segundo, signo, observar (de modo passivo).
O broche da felicidade
Por fim, um
ponto fundamental no anúncio e que quase me escapava, na
pressa de concluir este artigo:
«encontre a felicidade tão desejada». Temos
aqui dois conceitos com uma força formidável: felicidade
e desejo.
O desejo
implica etimologicamente
tempo livre, ócio – mas
sobre isso não irei alongar-me.
Quanto ao
conceito de felicidade, é uma chave central neste anúncio. É, por
assim dizer, o isco, o chamariz sem o qual nada haveria a publicitar.
Grave problema: este é um dos conceitos mais difíceis de definir a
contento de todos.
Não é
invulgar que um conceito inicialmente claro e bem definido se torne,
com o correr do tempo,
nebuloso, esquivo, indefinível.
Esta perda de conteúdo resulta quase sempre de um uso e abuso do
termo. Quando assim sucede, apenas conheço um remédio para
resolver o seu entendimento:
regressar ao ponto inicial.
Ora feliz
tem um significado etimológico claro como água: ser
fecundo. Fecundas
ou felizes eram as terras, as pessoas e os animais – infelizes ou
infecundas eram as pedras estéreis e, nos nossos dias, infelizes são os plásticos que poluem o nosso planeta.
Os outros
sentidos que no linguarejar contemporâneo temos tendência a
amalgamar na «felicidade»,
como «ter sorte», «ter bens»,
«ter amor», etc.,
correspondiam antigamente a conceitos
e palavras distintos - não havia perigo de confusão ou indefinição.
Assim, a fortuna
designava aquilo que
chamamos hoje «sorte». Mas
a sorte não era de forma
alguma confundida com a
riqueza – ser cumulado de bens e riquezas era ser beato. Provavelmente a confusão moderna entre ser feliz, ser afortunado e ser beato resulta não só de já não ser necessário ter muitos filhos, mas sobretudo do império da economia, que tudo reduz à boa «sorte» de possuir muitos bens.
Por fim, a etimologia mais remota (anterior à latina) da felicidade leva-nos a uma palavra que significava «mamar» e que deu em latim felare/fellare, donde felácio.
Por fim, a etimologia mais remota (anterior à latina) da felicidade leva-nos a uma palavra que significava «mamar» e que deu em latim felare/fellare, donde felácio.
Resumindo,
quem busca a felicidade ou
busca
mamar ou
busca ser fecundo.
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