13/08/13

FFF - felicidade, felácio, fé

Mude você mesmo o seu presente – eu não posso ajudar

Há milhares de anúncios com coisas deste teor (colho um ao acaso, o primeiro que me saiu na rifa ao abrir o navegador de Internet):

«E se tivesse a oportunidade de mudar o seu futuro? Acabe com os seus problemas e encontre a felicidade tão desejada. Eu posso ajudar.»



O mesmo tipo de anúncios é afixado nos jornais, ao lado das campainhas das portas, distribuído em mão na rua e introduzido nas caixas de correio. Há para todos os gostos – uns mais ocidentalizados, outros mais africanizados.

O que de comum encontramos em todos é:
  1. uma cesura entre o passado, o presente e o futuro – sendo o presente passivo;
  2. a ideia de que o futuro está pré-determinado (daí a utilização no anúncio da expressão «mudar o futuro»);
  3. a ideia de que é preciso recorrer a um guru para mudar o futuro.
Cesura, compartimentação, determinismo, sectarismo – eis algumas das chaves destes anúncios.

Oportunidade, possibilidade ou probabilidade?

O texto do anúncio pode parecer simplório. Não é. Repare-se no uso da palavra oportunidade. Esta escolha de palavras não é impensada, pois contrapõe oportunidade a possibilidade. A palavra oportunidade designa um encontro casual com um vento que nos colhe e leva a bom porto. A possibilidade implica poder, ou seja capacidade de fazer algo e a vontade de o fazer.

É claro que produzir um futuro diferente do presente é sempre possível e provável; se a expressão usada no anúncio fosse «e se tivesse a possibilidade de mudar o futuro?», até o menos intuitivo dos leitores torceria o nariz, porque a frase em si mesma torna evidente que o produto à venda já nós o possuímos, de borla.

O xamã esotérico e o xamã político

O próprio tema do anúncio pode parecer tosco, marginal e simplório. Não é. Pelo contrário, faz parte de um discurso sofisticado e apurado ao longo de séculos. Assim, por exemplo, a forma como a esmagadora maioria das figuras e organizações políticas discursa é semelhante à do anúncio. Façam o favor de se munirem de papel e lápis, abram a televisão nos canais de notícias e anotem o discurso dos políticos que forem aparecendo. Verão que por regra, de forma directa ou indirecta, explícita ou tácita, o discurso justifica as suas propostas num futuro imaginado, arrogando-se a capacidade de o «alterar» e determinar. São futurologistas encartados. A única coisa que os distingue dos gurus e sacerdotes dos citados anúncios é o tipo de fé. Algumas pessoas têm fé em mestres de macumba; outras, em deuses; outras, numa «política» (refiro-me aqui, evidentemente, à pseudopolítica dos futurologistas-deterministas).
(Nota de passagem: Vítor Gaspar, ex-ministro das Finanças, insistiu durante dois anos no erro de prognosticar o futuro a muito curto prazo, o que permitiu desmascará-lo em poucas semanas. A maioria dos xamãs é bastante mais esperta, não se deixando apanhar na ratoeira do curto prazo.)

O paradoxo da futurologia

Fazer algo de concreto hoje em nome de um futuro pessoal ou social imaginariamente construído é um erro dramático que Albert Camus desmontou em O Homem Revoltado – para ele remeto, abreviando. Recordo apenas que uma revisão rápida da história recente demonstra como grande parte das maiores barbaridades e crimes contra a humanidade foi cometida em nome de uma «visão» do futuro. Recordo ainda que Camus não se limita a apontar a óbvia continuidade histórica (o presente como função do passado, sem cesuras); acrescenta que, na mesma linha de continuidade, o futuro é função do presente, e que esta função é o limite de determinação/indeterminação até onde podemos ir racionalmente. Logo, justificar certas acções actuais em nome de um futuro previsto (seja ele qual for) é uma forma de fado ou fatalismo, apenas um poucochinho mais sofisticada. Paradoxalmente, toda a correcção do futuro apenas pode ser feita em nome do presente: a construção do melhor presente possível é a única garantia (ainda assim precária) do melhor futuro possível. Mais do que isso não nos é legítimo garantir sem nos arrogarmos capacidades divinas e sem condenar toda a humanidade à perda irremediável do livre arbítrio individual.

O papel central da fé

Outra coisa comum entre os vendedores de esoterismos e os vendedores de políticas é a noção de que todos nós necessitamos de aderir a uma seita ou a um guru para «mudar o futuro». Ou seja, uma vez entregues ao nosso próprio livre arbítrio, sem guia nem caudilho ficaríamos paradoxalmente encerrados na prisão do fatalismo.

Contra este determinismo fatalista opõem os vendilhões da «mudança do futuro» o determinismo sectário: se aderirmos a uma certa seita, a uma certa fé, a um certo caudilho ou a uma certa organização (seja ela religiosa, esotérica, política, etc.), automaticamente determinamos a «mudança do futuro».

Por outras palavras e com maior rigor: o que há de comum entre os vendilhões esotéricos e os vendilhões políticos é a .

Recordemos que a palavra significa etimologicamente lealdade e é correlativa de: fidelidade, confiança, fiável, fiar/fiado, confidência, desconfiar, desafio/desafiar, etc. O que todos estes vendilhões nos pedem, portanto, é que façamos uma coisa extremamente simples e confortável: ter fé, ser-lhes fiel, acreditar cegamente neles.

Recordemos, já agora, que a palavra seita designa etimologicamente um grupo de pessoas que segue atrás de um caudilho e é correlativa de: sectário, sequaz, consequência, acessível. Tem acesso a um futuro melhor quem seguir o caudilho – o que não deixa de ser evidente em qualquer câmara municipal. Mais remotamente ainda, o termo seita provém de seguir e é correlativa de: segundo, signo, observar (de modo passivo).

O broche da felicidade

Por fim, um ponto fundamental no anúncio e que quase me escapava, na pressa de concluir este artigo: «encontre a felicidade tão desejada». Temos aqui dois conceitos com uma força formidável: felicidade e desejo.

O desejo implica etimologicamente tempo livre, ócio – mas sobre isso não irei alongar-me.

Quanto ao conceito de felicidade, é uma chave central neste anúncio. É, por assim dizer, o isco, o chamariz sem o qual nada haveria a publicitar. Grave problema: este é um dos conceitos mais difíceis de definir a contento de todos.

Não é invulgar que um conceito inicialmente claro e bem definido se torne, com o correr do tempo, nebuloso, esquivo, indefinível. Esta perda de conteúdo resulta quase sempre de um uso e abuso do termo. Quando assim sucede, apenas conheço um remédio para resolver o seu entendimento: regressar ao ponto inicial.

Ora feliz tem um significado etimológico claro como água: ser fecundo. Fecundas ou felizes eram as terras, as pessoas e os animais – infelizes ou infecundas eram as pedras estéreis e, nos nossos dias, infelizes são os plásticos que poluem o nosso planeta.



Os outros sentidos que no linguarejar contemporâneo temos tendência a amalgamar na «felicidade», como «ter sorte», «ter bens», «ter amor», etc., correspondiam antigamente a conceitos e palavras distintos - não havia perigo de confusão ou indefinição. Assim, a fortuna designava aquilo que chamamos hoje «sorte». Mas a sorte não era de forma alguma confundida com a riqueza – ser cumulado de bens e riquezas era ser beato. Provavelmente a confusão moderna entre ser feliz, ser afortunado e ser beato resulta não só de já não ser necessário ter muitos filhos, mas sobretudo do império da economia, que tudo reduz à boa «sorte» de possuir muitos bens.

Por fim, a etimologia mais remota (anterior à latina) da felicidade leva-nos a uma palavra que significava «mamar» e que deu em latim felare/fellare, donde felácio.


Resumindo, quem busca a felicidade ou busca mamar ou busca ser fecundo.

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