26/08/13

O que é a classe média – adenda

Ensaiei no artigo anterior uma redefinição abreviada e actualizada de classe média. Fi-lo de forma sumária, como convém ao formato de um blog.

A minha motivação foi simples: ainda que se considere duvidoso o interesse de definir um conjunto de classes médias, a utilização desse conceito é corrente no vocabulário quotidiano e recorrente na propaganda ideológica de todas as cores; já que não podemos eliminar o conceito (e a propaganda), ao menos tentemos corrigi-lo e construir um conceito operacional em termos políticos.

A redefinição proposta de «classes médias» levantou numerosas objecções, fosse pela sua brevidade (que exigia alguma reflexão e «trabalho de casa» do leitor), fosse pela sua novidade. Em atenção a alguns desses objectores acrescento agora, mais uma vez de forma abreviada e parcelar, alguns apontamentos dispersos.

As tentativas clássicas de definição de «classes médias» recorrem a factores formais: clichés culturais, graus de rendimento, modelos de comportamento, etc. Alguns desses factores podem de facto estar presentes no comportamento e nas circunstâncias dos estratos sociais, e portanto têm um relativo interesse de estudo – mas nem são constantes nem essenciais. Não adianta organizar uma tabela de comportamentos e rendimentos se não for definida a sua natureza e origem estrutural. Há que saber distinguir entre o acessório e o essencial – esta distinção foi a que justificou a minha proposta de redefinição.

O critério do rendimento, por exemplo, é muito utilizado (alguns governos, como o brasileiro e o americano, até promulgaram uma definição de «classe média» baseada no rendimento familiar), mas denuncia facilmente as suas limitações – ainda que o valor dos rendimentos varie imenso ao longo do tempo, quer em casos individuais quer no conjunto duma camada social (como assistimos no passado em sentido positivo e hoje em dia no sentido inverso), isso não implica necessariamente uma pertença ou uma mobilidade de classe social; não se passa de uma classe social a outra apenas porque o Governo reteve o pagamento do 13.º mês de salário, ou porque o patronato ou os sindicatos forçaram uma alterações às tabelas salariais.

O critério dos costumes, comportamentos, atributos externos e ambições sociais também é interessante, mas tão-pouco serve para definir uma classe social; e de resto nem sequer é uniforme – se o fosse, alguns capitalistas que conheci pessoalmente deveriam ser classificados como classe média ou mesmo baixa. Os rituais de comportamento, socialização e ostentação são particularmente interessantes no domínio da etologia e da antropologia, por exemplo, mas não permitem definir nada de conclusivo em matéria de análise política.

Toda a estrutura da nossa sociedade (aliás, de todas as sociedades baseadas na exploração) depende da organização dos modos de apropriação dos meios de produção e de financiamento – e, por consequência, do sistema de apropriação de uma parte do valor das coisas, ou seja, do trabalho e da natureza. Daí nascem os principais conflitos da sociedade – conflitos sociais e políticos no que diz respeito aos indivíduos, conflitos ecológicos e de gestão dos recursos no que diz respeito à natureza. O lugar de cada indivíduo na sociedade define-se a partir da sua posição nesse sistema estruturado de exploração: qual a posição de cada coisa e cada pessoa no sistema de apropriação?

Seria ridículo, para não dizer cretino, pensar que um indivíduo pode ser definido apenas pelo seu lugar na estrutura de exploração e apropriação duma sociedade. O que o define é uma miríade de factores; uma miríade de tal forma numerosa, tendencialmente infinita, que nos deixa à beira da indeterminação: dele fazem parte os variadíssimos factores culturais do seu grupo social restrito, os do seu grupo social alargado, os da sua cultura pessoal; o seu carácter mais ou menos natural (físico, mental, etc.); o companheiro ou a companheira com quem vive; os filhos que teve ou não teve; as possibilidades postas ao seu alcance pela riqueza pessoal e pela riqueza colectiva; etc. – repito, o número de factores situa-se muito além da nossa capacidade de entendimento e sobretudo do entendimento do pensamento determinista.

Quando em vez de um indivíduo único tomamos em consideração um grupo de indivíduos, uma grande parte da miríade de factores em jogo pode ser ignorada: muitos factores individuais ou se anulam mutuamente entre si, ou não são comuns ao conjunto – embora continuem sem dúvida a exercer influência nos acontecimentos (pensar de outra forma seria reduzir tudo a uma tenebrosa visão política e religiosa da sociedade dos humanos), mas em escala reduzida. Importa por conseguinte e antes de tudo o mais descobrir o que continua a ser comum a esse grupo. E foi precisamente isso que tentei fazer ao redefinir o conceito de «classe média».

Mantenho a proposta apresentada em «O Que É a Classe Média?», embora reconheça que se pode ir mais longe e mais ao pormenor no estudo da questão.

Há no entanto um comentário de Hugo Bola, a propósito do texto inicial, que considero muito interessante e que gostaria de trazer aqui, chamando a atenção para o facto de lhe caber a ele inteiramente o mérito da descoberta de um artigo publicado em 1953 no Diário da Manhã, precisamente sob o título «Classe Média e Crédito Fácil».

Para quem não sabe: o Diário da Manhã era o jornal oficioso do regime fascista-corporativista em Portugal, mais precisamente da União Nacional; começou a ser publicado em 4 de Abril de 1931. Nele encontramos numerosos artigos que discorrem sobre as posições e medidas do governo – e até sobre estratégias, ideias e projectos de governação que não chegaram a ser implementados –, e por isso mesmo constituem um auxiliar precioso para a compreensão de certas medidas governativas da época. Embora o regime do Estado Novo tivesse o salutar hábito de apetrechar os diplomas legais com extensos preâmbulos e considerações de ordem política, ideológica e até por vezes filosófica, num tom de sinceridade intelectual e ideológica (algo que nitidamente se encontra ausente no legislador actual), os artigos do Diário da Manhã levavam mais longe o debate ideológico e filosófico (entre apoiantes do regime, entenda-se, pois a maioria dos opositores era silenciada e encarcerada), dando provas de um vigor intelectual que faria inveja hoje em dia, se conseguíssemos abstrairmo-nos das suas consequências políticas, sociais e vivenciais para a esmagadora maioria da população. A partir de 1 de Fevereiro de 1971 a fusão do Diário da Manhã com A Voz dá origem à Época, que passa então a ser o órgão de comunicação oficioso da União Nacional (que entretanto foi renomeada Acção Nacional Popular) e do regime e que será publicado até Maio de 1974. É claro que, a par dos referidos artigos de debate ideológico, o grosso das notícias consistia em propaganda e contrapropaganda do regime.

Classe média e crédito fácil

Um leitor escreve-me pedindo resposta para a seguinte pergunta: «Para evitar o empréstimo de dinheiro a juros fabulosos, não seria interessante a criação de um Banco Popular que financiasse as classes médias mediante um juro equitativo?»
Lembra ainda a possibilidade de esse Banco ser uma cooperativa de crédito.
Tem o signatário da carta em questão em vista o auxílio às classes médias. (…) Este termo classe média supõe a existência de mais duas classes – a alta e a baixa.
Em nosso entender este conceito de divisão social foi há muito ultrapassado (…)
[Diário da Manhã, 6/8/1953, autor n/id]

A partir daqui o artigo entra em considerações que visam apresentar uma certa imagem da sociedade, como se nota desde logo a partir da negação da existência de diferenças de classe. Em suma, o artigo nega a legitimidade lógica, sociológica e política do conceito de «classe média» e aproveita para fazer comparações com outros países onde o conceito era abundantemente usado, com destaque para a França. Não é casual esta escolha – tratava-se de escolher países europeus com os quais uma parte da população emigrante começava a ter crescente contacto. Os emigrantes regressavam das europas com uma noção mais ou menos clara, mais ou menos intuitiva, do que era um estado social e uma classe média nessa época.

O autor do artigo [nota: de momento não possuo a sua identificação, acrescentá-la-ei logo que possível] encontrava-se numa posição ideológica difícil, restando-lhe defender atabalhoadamente a desactualização do conceito de classes no seu todo. Mas é aqui precisamente que o artigo começa a tornar-se muito, muito interessante, sobretudo se o pusermos em contraste com o documento seminal que define os princípios e a estruturação do Estado Novo. Esse documento chama-se «Cartilha Corporativista» (na edição de 1941; na edição de 1940 intitulava-se «Cartilha do Corporativismo»); creio que terá sido escrita pelo punho do próprio António de Oliveira Salazar algures a partir de 1933 [nota: a verificar, quanto a datas e autoria; mas a clareza e lisura de escrita e da organização de pensamento que atravessam toda a Cartilha levam-me a deduzir, antes mesmo de fazer qualquer consulta, que o autor poderá ser Salazar].

É interessante verificar que durante os 16 anos da I República houve 8 presidentes (ou 7, pois um deles foi «repetente»), todos eles de superior craveira intelectual – nos campos das artes, da literatura e das ciências. Segue-se a ditadura militar e o Estado Novo, que duram 48 anos, com apenas 3 presidentes [nota: formalmente foram 5, mas os 2 primeiros duraram um mês cada um], todos eles fardados. Ora o que nós notamos no desenvolvimento do referido artigo de 1953 é que ele entra em contradição, a vários títulos, com o documento fundador do regime, a «Cartilha». Esta, ao contrário do artigo de 1953, fazia questão em sublinhar a existência de classes, a clara distinção entre capital e trabalho, os interesses de classe em conflito, etc. O facto de a Cartilha concluir de tudo isso que a solução era o corporativismo e a «Paz Social», intermediados pela a ideia de Nação [ponto 3 da «Cartilha», ed. 1941:11] não a impedia de compreender a mecânica fundamental de todas as sociedades capitalistas e a impossibilidade de elidir a existência das classes e da luta de classes. Quem pensa que o fascismo-corporativismo português nasce sobre bases simplórias, politicamente estúpidas ou ignorantes não faz a mais pequena ideia do que está a falar - limita-se a reproduzir banalidades sem fundamento. E por isso mesmo é espantoso verificar que os próprios guardiões do sistema (os ideólogos que publicavam no Diário da Manhã, por exemplo) em 1953 já não sabiam a Cartilha de cor e até a contrariavam nalguns dos seus pontos essenciais – aqueles sem os quais qualquer tentativa de justificação lógica e política do regime fascista-corporativista resultaria num enorme absurdo.

É verdade que muitos dos preceitos da Cartilha tiveram de ser abandonados, porque a sua execução poderia pôr em perigo os seus 3 princípios fundamentais e distintivos dos restantes regimes: paz social, nação e corporativismo (= colaboração interclassista promovida por força duma ditadura militarizada). Mas isto não basta para justificar o desnorte do artigo apenas 13 anos após a publicação da Cartilha.

A verdade é que o económico domina o social.

[ponto 7 da «Cartilha», ed. 1941:19;
o destaque a negro é do original]

Aí está um ponto fundamental, estruturante, do fascismo corporativista, e no entanto... é-nos tão familiar esta frase, não é verdade? Não podemos deixar de ter a sensação de estar a ouvir um discurso actual, seja de que partido for dentro do leque dos partidos institucionais, sejam eles poder ou oposição. Chama-se a isto, desde os tempos dos debates entre revolucionários e reformistas social-democratas no início do século XX (que deram origem a uma separação de águas histórica), economicismo. É bom não esquecermos: foi precisamente este debate que deu origem à cisão entre revolucionários e reformistas, dentro das organizações políticas então existentes.

O fim da actividade económica é a criação ou a valorização da riqueza (…) A riqueza vale pela sua utilidade social (…) Como os indivíduos, a riqueza tem o dever de servir os objectivos da vida nacional.
[ponto 7 da «Cartilha», ed. 1941:21-22;
o destaque a negro é do original]

Mais adiante a Cartilha contém uma definição central a todo o regime capitalista (e não apenas ao fascista), definição essa que está também no centro da minha acérrima divergência com todas as forças de esquerda que conheci nos últimos 30 e tal anos, no que respeita à questão do trabalho – embora, num espírito conciliador em relação às e aos namorados,  colegas de trabalho e companheiros de luta política, sempre tenha silenciado a minha divergência até este preciso momento (o que faz deste texto um marco histórico, se é que tal se pode dizer à minha humilíssima escala). Refiro-me ao seguinte postulado:

A economia corporativa considera o trabalho, em qualquer das suas formas legítimas, um dever de solidariedade social (…) Não há deveres que não correspondam a direitos. Do dever social de trabalhar resulta o reconhecimento do direito ao trabalho (…) o trabalhador é o natural e indispensável colaborador da empresa onde exerce a sua actividade.
[ponto 11 da «Cartilha», ed. 1941:25-26;
o destaque a negro é do original]

A conjugação das definições de «riqueza» e de «direito [e dever] ao trabalho» revela, só por si, não só toda a estrutura essencial das sociedades capitalistas, mas também a origem de todas as minhas dúvidas e divergências a respeito dessa famosa palavra de ordem de toda a esquerda: direito ao trabalho. A incrível habilidade deste postulado consiste no seguinte: ao evitar esmiuçar a definição de riqueza, o texto permite que o leitor, entregue a si próprio por não lhe serem fornecidos mais esclarecimentos, cometa o erro fatal de associar «o direito ao trabalho» ao conceito de riqueza tal como os economicistas o definiram há muito: riqueza é tudo e apenas tudo quanto pode ser expresso ou convertido em medida monetária – isto é, activos e passivos, isto é, PIB. Lutar pelo direito ao trabalho (dito assim, sem mais) é, portanto, lutar pelo direito a ser explorado! Este é um ponto central de toda a esquerda desde há décadas, o que faz dela um aviário virtual ou potencial de fascistas-corporativos – como de resto se prova historicamente, a começar, com grande destaque, pelos maoistas e a acabar na esquerda de cariz social-democrata.

No referido artigo do Diário da Manhã considera-se mais adiante que não é avisado fornecer crédito financeiro às então chamadas «classes médias» (professores, advogados, funcionários públicos de escalão médio-alto, etc.), porque isso iria colocá-los numa perigosa situação de viverem «acima das possibilidades dos rendimentos pessoais» [id., ibid.]. Para bem compreendermos esta posição, recordemos que nessa época, em Portugal, ainda não existiam os instrumentos bancários e financeiros que actualmente conhecemos; a maioria dos proletários e dos pedantes proletarizados ainda recebia o salário em mão, na forma de dinheiro vivo. Por conseguinte a redefinição de «classes médias» que proponho no artigo anterior não era ainda aplicável, no caso português, nessa época.

Mais adiante no mesmo artigo de 1953 o autor torce o nariz à solução cooperativa, contrariando assim mais uma vez algumas das normas corporativas/cooperativas da Cartilha.

Este caso é muito interessante por demonstrar a contradição a que os ideólogos do sistema tinham chegado: gostariam de continuar a defender o elaborado sistema de princípios ideológicos e regimentais da Cartilha, mas a realidade económica, social e política obrigava-os a descambar o regime para uma versão ditatorial muito mais crua que o previsto.

O interesse desta constatação estende-se muito para além dessa época, porque nos incita a aplicar o mesmo método de comparação entre a formulação ideológica e a realidade institucional e respectivas formas ditatoriais nos dias de hoje. Tentarei pegar nessa ponta da meada em artigos futuros.


Notas finais:
  1. A «Cartilha Corporativista» é hoje dificílima de encontrar e consultar, apesar do seu interesse histórico – a lixiviação da memória colectiva portuguesa continua em grande forma... Aparentemente o documento desapareceu do único site onde pude encontrá-lo até hoje. Tentaremos a breve trecho parqueá-lo algures e torná-lo aqui disponível.
  2. Do artigo do Diário da Manhã deixo também uma cópia, por agora incompleta, esperando poder resolver essa limitação no futuro próximo.
  3. Por trás da redefinição de «classes médias» por mim proposta, existe um tema implícito, que certamente terá passado despercebido: o virtual (ou potencial em acto) e o seu papel nas novas soluções económicas e financeiras do capitalismo da segunda metade do século XX. Esta questão passou invisível aos olhos dos economistas políticos [ressalvo aqui o meu limitado conhecimento, que me pode induzir em erro, da multidão de autores marxistas]. Mais uma vez, como é tradição, a ficção científica e a arte de vanguarda parecem ter-se adiantado ao estudo da realidade: souberam ver a importância do virtual na época actual, bem como as suas implicações políticas, sociais e económicas; retratam-no, descrevem-no, usam-no. E não apenas na prática artística – até do ponto de vista teórico a quantidade de estudos sobre o papel do virtual na arte e na sociedade deixa os teóricos economicistas e os marxistas a perder de vista. Sobre este tema, o virtual nas últimas décadas, é igualmente necessário que volte aqui um dia à carga, pela importância e actualidade deste tema.


[o presente artigo foi corrigido de alguns dos seus erros de escrita em 28/8/2013]

Sem comentários:

Enviar um comentário