O lodaçal académico
A maioria dos politólogos, sociólogos, economistas e outros melros que tais adora complicar o que é simples. Bom, na verdade, a organização social nada tem de simples, uma vez que nela nada funciona segundo uma causa determinística única, linear, da qual resulte um efeito determinado único. Mas ainda assim há imensos factores sociais que não carecem de dezenas, centenas ou milhares de páginas para serem explicados.
Um desses lodaçais teóricos é a definição de
«classes médias». Não sei nem me interessa saber donde vem esta
designação, mas reconheço-lhe pertinência. O lodaçal teórico,
porém, não tem razão de ser, pois a definição de «classes médias» é simples.
Altos, baixos e medianos
À partida tínhamos uma situação razoavelmente
simplificada: classes altas (grande burguesia); classes baixas
(trabalhadores, ou seja, pessoas cujo único bem transaccionável era
a sua própria força de trabalho, e outros tipos de desapossados); e, vamos lá, uma classe burguesa
média onde alinhavam os pequenos negociantes e
proprietários/rentistas, entre outras espécies.
Do ponto de vista do mercado financeiro, esta
separação de classes era muito clara: dum lado estavam os fiáveis, ou seja, aqueles a quem o usurário podia conceder crédito com alguma
confiança, por oferecerem garantias móveis ou imóveis; do outro
lado estavam aqueles que o banco não considerava fiáveis ou dignos
de crédito, por não oferecerem garantias realizáveis ou
penhoráveis. Simples e eficaz.
O mercado financeiro e bancário do pós-guerra
veio alterar bastante esta situação, inventando novas formas de
obter garantias e conceder crédito a vastos sectores da população
que anteriormente não eram financeiramente fiáveis. Assim é criada
uma nova camada de «classes médias», constituída por
trabalhadores que, apesar de não serem proprietários de
meios de produção, são envolvidos num sistema de crédito
financeiro em que a única garantia que podem dar (o seu trabalho,
logo o seu salário) é penhorada à partida em conta bancária, ou
por outros meios ainda mais sofisticados no que diz respeito ao seu
salário indirecto ou social.
Et voilà.
Simples e eficaz. E nada difícil de definir e entender. Qualquer
trabalhador com salário garantido acima do limite de sobrevivência
e obrigatoriamente depositado em conta bancária é classe média.
Um biscateiro, um
trabalhador que se recuse a receber o salário através do banco, um
trabalhador sazonal da apanha do tomate que recebe o salário em mão
ao fim do dia, um
desempregado de longa data, um trabalhador cujo salário esteja
abaixo de um determinado limite considerado de sobrevivência, esses
pertencem
às «classes baixas», pois
não são fiáveis nem dignos
de crédito – não estão presos pelos tomates a uma conta bancária
capaz de produzir fiabilidade e crédito no sistema financeiro
actual.
Salário mínimo – um factor indeterminado?
Como devem ter
reparado, há um elemento fundamental na fórmula acima que é
preciso determinar: «um
determinado limite considerado de sobrevivência»,
ou seja, o
salário mínimo do ponto de vista da sobrevivência, ou seja, da
reprodução da força de trabalho. Abaixo desse limite a força de
trabalho extingue-se, o que não é bom nem para o morto nem para o
investimento produtivo, embora possa ser indiferente para o capital
financeiro, consoante as
circunstâncias.
Por conseguinte
não é difícil imaginar que, do ponto de vista
financeiro, esse cálculo não
só foi feito com grande
rigor, como é
permanentemente actualizado, porque o seu desconhecimento pode
destruir o sistema de crédito e por arrasto toda a
«classe média», provocando
um cataclismo social e económico.
No entanto, o
limite salarial de sobrevivência do ponto de vista
financeiro não coincide com o
limite salarial de sobrevivência do ponto de vista do
trabalhador, porque sendo diferentes os respectivos interesses, diferente resulta a natureza
desses limites.
Ora, que eu
saiba, a produção teórica de esquerda não se tem preocupado em
criar um sistema permanente de cálculo desse limite. Talvez esta
ausência
não seja alheia às estratégias de conciliação no plano da
concertação social, local onde se espera ver
discutidos
os
valores
e actualizações
do salário mínimo.
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