13/10/13

Mudanças do paradigma eleitoral em 2013

Aqui vos deixo uma análise estatística das eleições autárquicas de 2013, da autoria do meu amigo Rui Viana Pereira. (corrigido e reformulado em 16/10/2013)
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Procuro neste texto apresentar um estudo sucinto sobre os resultados das eleições autárquicas de 2013. Antes de entrar na análise dos dados, convém chamar a atenção para algumas condicionantes (ver anexo «Considerações e notas metodológicos» para mais detalhes):
  1. Trata-se de dados e conclusões válidos apenas para as eleições autárquicas, que têm características peculiares – não é legítimo extrapolar as conclusões para o plano das eleições nacionais.
  2. Considero pouco interessante fazer apenas as contas aos votos válidos, como é costume. Por isso todas as conclusões apresentadas têm por referência o universo dos eleitores na sua totalidade. Este ponto suscita uma questão bicuda: os cadernos eleitorais são uma burla – não traduzem o universo eleitoral. Para resolver este problema, fiz uma estimativa do universo eleitoral.
  3. A organização partidária e frentista nas eleições autárquicas é mutável ao longo do tempo e do país. Este facto atrapalha o estabelecimento de critérios fiáveis de comparação e análise. Para resolver este problema, dividi o eleitorado em três blocos: o bloco dos partidos do arco do poder (PS+PSD+PP); o bloco dos partidos à esquerda do PS (PCP+BE+outros pequenos partidos de extrema esquerda); o bloco das frentes mutáveis e das listas independentes. Ao estabelecer estes três blocos torna-se possível detectar grandes tendências eleitorais.



Começando pelo problema da abstenção, verificamos que é falsa a ideia dum crescendo continuo das abstenções desde 1976 (quadro «Percentagens de voto e abstenção, em relação ao total de eleitores»). Mas há de facto um aumento assinalável das abstenções em 2013 (+7%).

Algumas conclusões podermos extrair deste quadro com razoável segurança:
  • os votos brancos e nulos aumentaram para mais do dobro em 2013; os motivos e intenções das abstenções, se quisermos ser sérios, nunca poderão ser julgados; mas os votos brancos e nulos, pelo contrário, constituem uma expressiva declaração de desagrado em relação a todas as listas concorrentes ou ao próprio processo eleitoral
  • as abstenções afectam historicamente os partidos do arco do poder, não exercendo efeito visível no quadrante político à esquerda do PS
  • em 2013 os partidos do arco do poder perdem 13% dos eleitores; essa perda resulta exclusivamente da soma das abstenções acrescidas (+7%), das frentes eleitorais não tradicionais e das listas de cidadãos (cerca de +6%)
  • o bloco de candidatos à esquerda do PS nem altera a sua quota eleitoral nem contribui para o desaire dos partidos do arco do poder
  • desde 1989 que o bloco de partidos à esquerda do PS mantém uma quota eleitoral invulgarmente estável – se quisermos teimar em que uma pequena parte de «outros» e de «listas de cidadãos» talvez constitua uma procura de alternativas (coisa muito duvidosa e que carece de prova caso a caso), então essa alternativa não passa pela zona à esquerda do PS, nem a afecta; forçoso será concluir que são os sectores provenientes dos partidos do arco do poder que andam à procura de alternativas às suas cliques dirigentes
  • os partidos do arco do poder, no seu conjunto, deixaram de ter o apoio eleitoral da maioria dos eleitores, pela primeira vez em 37 anos! – mesmo tendo em conta que parte dos «independentes» e «outros» lhes são afectos e portanto poderíamos somá-los ao bloco PS+PSD+PP.



Voltemos a examinar os dados, mas agora segundo um método diferente (quadro «Percentagens de voto nas listas, em relação ao total de votos válidos»). Este método não toma em conta as abstenções, nem os votos brancos ou nulos, que a lei eleitoral considera inválidos. Não altera nem acrescenta as conclusões expressas mais acima; tão-pouco altera a relação entre o bloco do poder e as restantes forças; mas permite-nos ver que todas as análises baseadas apenas nos votos válidos, e não no universo total dos eleitores, resultam na apresentação de números esmagadores, com um efeito emocional muito favorável ao bloco do poder.


Por fim, o quadro «Percentagens de voto nas listas em relação ao total de eleitores (estimados)» ajuda-nos a perceber melhor a evolução eleitoral dos partidos. Desta vez separei o PS dos restantes partidos do arco do poder (PSD+PP); separei também o PCP dos restantes partidos à sua esquerda.

Às conclusões anteriores podemos acrescentar as seguintes:
  • os partidos no governo (PSD+PP) sofreram um trambolhão eleitoral histórico – o bloco PSD+PP encontra-se há 20 anos em perda contínua de apoio eleitoral, mas conseguindo sempre suplantar o PS; pela primeira vez sofre um desaire que o coloca abaixo do PS
  • o PCP não consegue recuperar da queda de 1989, embora se mantenha mais ou menos estável daí para cá
  • o BE e demais partidos à esquerda do PCP seguem um percurso descendente sem remissão
  • tendo em conta a conclusão anterior de que as abstenções afectam essencialmente o bloco do poder, e o facto de todas as linhas seguirem uma tendência descendente mais ou menos estável excepto a do PS, este quadro vem agora sugerir que o PS parece ser o partido mais afectado pelas abstenções nas eleições autárquicas, uma vez que a sua evolução procede por altos e baixos.

Não restam dúvidas de que estamos perante uma mudança de paradigmas eleitorais. Mas esta mudança parece não levar a lado nenhum. O que mais impressiona neste quadro é que, perante um conjunto de linhas continuamente descendentes (excepção feita ao PS) e segundo a teoria do baloiço democrático, seria de esperar encontrarmos uma linha ascendente beneficiária dessas perdas – e no entanto ela não se vislumbra em parte alguma. A perda geral de apoio popular sugerida pelo aumento de abstenções pode, como alguns afirmam, revelar um descrédito no regime de democracia parlamentar e burguesa. Mas eu diria que, além disso, releva da ausência de um projecto político mobilizador à esquerda do PS.


Lisboa, 13/10/2013
Rui Viana Pereira


Considerações e notas metodológicas

A estimativa do universo eleitoral
  • Estimativa de eleitores = População média anual residente maior de 18 anos
    Estes dados foram obtidos do INE («População média anual residente, série longa», que nos dá o número de residentes por idade, e não por grupos etários). A estimativa é necessariamente grosseira, pois a margem de erro dos dados do INE é demasiado larga (segundo alguns autores pode chegar aos 5% da população total), mas não temos outra fonte à disposição.
    Independentemente do problema das margens de erro do INE, a minha estimativa irá pecar por excesso – seria necessário retirar os estrangeiros sem direito a voto, os incapacitados para o sufrágio segundo a lei eleitoral, etc. Para o efeito específico das eleições autárquicas, não somei aos residentes os cidadãos emigrados.
    Logo à partida, para o caderno eleitoral de 1976, que é o primeiro ano de eleições livres, encontramos um desvio entre o total da população com 18 anos ou mais e os cadernos eleitorais na ordem dos 148 mil a mais nos cadernos (2% da população total residente. Talvez possamos considerar este desvio inicial insignificante se tivermos em conta a margem de erro dos dados do INE; esse desvio, porém, vai aumentando, até chegar em 2013 a cerca de 873 mil (8% da população residente total). Perante tão grandes desvios, que vão aumentando de forma consistente, deduzo que os cadernos eleitorais estão repletos de eleitores duplicados por efeito das migrações internas, imigrantes de língua portuguesa e estrangeiros que já cá não vivem, um cemitério de eleitores já falecidos, etc.
  • Estimativa de abstenções = Estimativa de eleitores – Total de votos


O problema dos dados da CNE (Comissão Nacional de Eleições)
A CNE, juntamente com o Ministério da Administração Interna, tem a seu cargo uma série de funções necessárias ao exercício e fiscalização do acto eleitoral.
A fiscalização dos cadernos eleitorais parece ser nula ou insuficiente. Segundo os cadernos eleitorais existiriam neste momento 9,5 milhões de eleitores. Isto corresponde a 90% (!!) dum universo de 10,5 milhões de habitantes. A minha estimativa aponta para 8,6 milhões de eleitores, ou seja 82% da população, o que me parece muito mais coerente com a pirâmide etária do país.
Temos depois o problema da publicação detalhada dos resultados eleitorais, a cargo da CNE. Estes resultados, nas semanas seguintes ao acto eleitoral, apareceram no site, depois desapareceram, o site e a base de dados estiveram alguns dias fora de acção, depois regressaram mas sem resultados... enfim, uma bagunça total. Mas mesmo em relação aos resultados definitivos dos 37 anos anteriores o panorama é desesperante: os dados fornecidos pela CNE parecem ser minuciosos, mas são impraticáveis – ser-me-iam necessários dias de estudo e trabalho para os coligir de forma útil.
Tive por isso de recorrer aos mesmos dados fornecidos via Pordata, que indicam a CNE como fonte mas são apresentados de forma bastante organizada e compreensível. No entanto... não sabemos como foram organizados e calculados – recorde-se que se trata de 3 eleições diferentes num só acto eleitoral (presidente da câmara, assembleia municipal, freguesia), podendo portanto haver diferentes formas de organizar esta informação num só bolo.


Os limites da análise estatística e as dificuldades específicas das eleições autárquicas
A análise estatística dos actos eleitorais é um campo minado a que geralmente tento esquivar-me.
Para mais, os pressupostos das eleições autárquicas diferem bastante dos restantes âmbitos eleitorais. Quanto mais pequeno é o meio eleitoral em causa, tanto mais pesam as relações e favores pessoais, as quezílias entre famílias, as relações de alcova. No domínio das autárquicas, cada pequeno círculo eleitoral é um caso específico que deveria ser estudado à parte, e todas as generalizações são falaciosas, excepto talvez no caso das grandes cidades (que não são assim tantas em Portugal).
Mas no caso das eleições autárquicas de 2013 a intuição dizia-me que algo de novo tinha acontecido e portanto valeria a pena fazer um esforço para estabelecer critérios de análise aceitáveis.
A construção de listas de candidatos ao poder local é errática, com formação e desmantelamento sucessivo de alianças locais. Isto inviabiliza a adopção de critérios de comparação, dificultando a visão de conjunto. Tentei remediar a situação agrupando as listas candidatas em classes genéricas: uma para os partidos do arco do poder (PS + PSD + CDS/PP), outra para os partidos à esquerda (PCP + BE + outros), outra para os restantes.
O aparecimento nestas eleições de múltiplas listas de cidadãos fora do baralho partidário não facilita os critérios de análise. Muitos comentadores embandeiraram em arco, vendo aí uma prova da contestação ao domínio partidário e ao caciquismo, mas há que ser cauteloso: alguns dos chamados «independentes» são na realidade originários dos partidos do arco do poder (zangados com os seus patronos ou tentando fugir ao desgaste político-partidário resultante das medidas de austeridade), mas nem por isso deixam de defender políticas neoliberais. Para levar em linha de conta o fenómeno «independentes» seria necessário fazer um estudo fino dessas listas em todo o país, caso a caso, separando-as por grupos – não pude fazê-la, portanto tomarei a cautela de não tirar daí grandes conclusões e de as manter separadas dos restantes grupos.
O bloco de votos designado «outros» é também ele demasiado incaracterístico para ser integrado nos blocos principais – além de incluir pequenos partidos, inclui também frentes eleitorais formadas a título excepcional num ou noutro lugar (veja-se o caso da Madeira). A sua separação em subgrupos tornaria os quadros ilegíveis, reduzindo tudo a um amontoado gigantesco de números sem sentido.
Por fim, uma observação a propósito do trabalho do MAI e da CNE: fica a ideia de que as instituições governamentais não estão muito interessadas em fornecer dados para uma análise séria da realidade. Cumprem a lei publicando os resultados eleitorais, mas não fazem qualquer esforço para tornar essa informação cientificamente legível aos olhos da população não especializada em estatística.


Estatística eleitoral e especulação
Como já disse, prefiro não arriscar a formulação de especulações baseadas em estatísticas eleitorais. Mas não posso negar que todos estes dados me suscitam várias interrogações: será que as direcções políticas e os departamentos de marketing político analisam os dados da mesma forma que o faço aqui, derivando daí as suas estratégias de aliança e guerrilha partidária?; será que, por exemplo, os partidos à esquerda do PS insistem na sua estratégia abstrusa de namorar o PS exactamente por causa dos dados aqui revelados?; etc.

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