26/10/13

O concerto de S. Bento


Decorreu hoje em Lisboa uma manifestação convocada pelo QSLT, com concentração no Rossio e ponto final em S. Bento, frente ao Parlamento. Por razões de idade e de saúde, é para mim um sacrifício considerável acompanhar manifestações, em especial daquelas que percorrem quilómetros, com subidas e descidas, passo de caracol, paragens constantes. A manifestação de hoje foi desse tipo, apenas evitando subidas e descidas, mas à custa de uns quantos quilómetros mais de percurso nesta cidade feita de colinas. Sobram os apoiantes de sangue na guelra, fica de parte uma boa metade da população potencialmente apoiante (olhem para a pirâmide etária do país, seus broncos), bem como todos os casais jovens com crianças. Isto, numa época em que é mais fácil mobilizar um idoso reformado do que um jovem estudante de Direito...

Cheguei bastante atrasado ao Rossio - a cabeça da manifestação já tinha arrancado. Reparei que a polícia, desta vez, não tinha adoptado uma atitude ostensiva e agressiva - um mistério que se resolveria daí a duas horas.


Chegados ao Cais do Sodré, já eu estava estafado e tudo levava a crer que ainda tínhamos pela frente uma hora de caminhada. Desviei-me, tomei um atalho e fui sentar-me numa esplanada perto de S. Bento. Pelo caminho, continuei a não ver as habituais carrinhas da polícia de choque, que costumam infestar os arredores das manifestações da esquerda «irreverente». Lanchei, bebi uma imperial, observei o trânsito, escutei as conversas da mesa ao lado, lastimei os edifícios decrépitos e abandonados à espera da conclusão dos novos planos de gentrificação de Lisboa. Uns bons 30 minutos depois, vi a cabeça da manifestação assomar ao fundo da Av. D. Carlos.

Levantei-me, paguei e, tomando novo atalho, adiantei-me em direcção a S. Bento, onde me sentei numas escadinhas em face do Parlamento, do outro lado do largo. Ainda tinha de esperar muito para que a cabeça da manifestação lá chegasse. Pus-me a observar o cenário.

Os organizadores estavam instalados no primeiro lanço da escadaria à boca do parlamento, gentilmente cedido pela polícia - mais um mistério a resolver. Tão-pouco vi ali o aparato costumeiro de polícia de choque e cães; pelo menos à vista a coisa estava calma. No segundo lanço da escadaria (faz sempre lembrar o filme do Eisenstein, não é verdade?) havia as cancelas do costume. Ao fundo do primeiro lanço estava montado um palco, com o respectivo aparato técnico. Mas o curioso é que essa zona também estava defendida da populaça por mais uma fila de barreiras - os organizadores demarcavam claramente o seu território. Nesse reduto, calmamente instalados, aguardavam a chegada da manifestação os técnicos e uns quantos funcionários do BE.

Por fim, a cabeça da manifestação despontou à esquina da Av. D.Carlos, pronta a entrar em S. Bento. Vinha animada, com as pessoas a gritarem palavras de ordem. E nesse preciso instante, antes que a primeira fila entrasse no largo e se instalasse, acontece esta coisa espantosa: um grupo musical entra no palco e começa a tocar de rompante, por cima das palavras de ordem gritadas pela multidão, amplificado por uma aparelhagem poderosíssima, daquelas que inviabilizam não só todas as conversas interpessoais, mas até a tentativa espontânea de lançar palavras de ordem em massa. Os organizadores tinham tomado conta do terreno desde o minuto -1!

Posto isto, não é difícil aventar uma explicação para a atitude benevolente da polícia. A coisa estava certamente combinada desde o início. As «nossas» manifestações passam assim a ter nota máxima em bom comportamento. Estamos finalmente em condições de entrar em despique com os até agora incontestados campeões da CGTP em matéria de pacifismo, obediência civil, bom comportamento e liturgia normativa.

Fiquei de tal forma perplexo com tudo aquilo, que ainda me mantive 4 minutos a ouvir os músicos. Custava-me a acreditar que uma manifestação de protesto tão urgente como esta fosse transformada num festival superbock para consumo corrente; retive a esperança de que a seguir a esta música de boas-vindas fosse dada a iniciativa aos manifestantes. Qual quê! Sem interrupção iniciou-se a segunda música. Levantei-me e fui para casa, com um terrível sentimento de frustração - tinha ido na expectativa duma manifestação de protesto e combate, saiu-me na rifa um concerto com músicas de «intervenção» (intervenção programada, não intervenção do povo). E mais: um concerto daqueles com um tal nível sonoro que eu, como sonoplasta e músico, fujo a sete pés, para não danificar os ouvidos, que são o meu instrumento de trabalho e não podem ser substituídos por peças sobressalentes.

As aparelhagens de som como instrumento do poder

As limpezas étnicas e o uso
de armas de fogo estão hoje
fora de moda. Nada como
uma boa aparelhagem de som
para esmagar minorias
Desconheço a existência de estudos (o que não quer dizer que não existam) sobre a utilização dos sistemas de som no exercício e no reforço do poder nos dias de hoje em Portugal, seja esse poder de que tipo for. Na verdade, não é preciso fazer nenhum estudo, nem são necessárias habilitações académicas de espécie alguma, para analisar o uso dos sistemas de som por quem detém o poder - qualquer pessoa medianamente inteligente pode observar os factos e extrair conclusões.

Tradicionalmente utilizava-se nas manifestações o megafone - um instrumento de potência acústica relativamente modesta, que não cilindra completamente a voz dos manifestantes mas os incentiva a soltar a voz, com especial benefício para os mais tímidos. Actualmente, cada vez menos megafones se vêem e cada vez mais se usam carros com colunas cujo som demencialmente potente toma a voz ao público - não só cilindrando-a, mas até desencorajando-a.

As aparelhagens sonoras esmagadoras começaram por ser utilizadas como arma pelos órgãos do poder instituído, há já bastantes anos. Aliás, já na Antiguidade Clássica os arquitectos dos templos recorriam a truques muito sofisticados (mais até, nalguns aspectos, do que os da actualidade) para controlarem e sugestionarem os fiéis [1]. Em situações tradicionais de festa popular ou pagã (por exemplo, o Carnaval de Torres, para dar um exemplo típico em que a iniciativa popular, associativa e espontânea era essencial à natureza do acontecimento e implicava um momento de suspensão de muitas normas vigentes durante o resto do ano), as câmaras municipais passaram a instalar uma rede de altifalantes nas ruas, de modo a esmagar e impedir toda a iniciativa popular. Por regra esses altifalantes berram das 9h da manhã até à meia-noite.

Não é precisa grande carga de reflexão para, observando vários exemplos concretos deste tipo de situações, concluir que a música transmitida pelos altifalantes não constitui um sinal de festa, mas sim um instrumento de poder e dominação pela força bruta (a força da potência acústica, neste caso). Acrescem a isto alguns dados científicos pouco conhecidos do público - por exemplo, o facto de níveis de pressão acústica muito elevados, em especial na zona dos graves, abrandarem a actividade cerebral. Este expediente é utilizado há várias décadas pelas grandes lojas e cadeias de roupa e outros artigos de moda, de forma a reduzir inconscientemente a capacidade de raciocínio e critério do consumidor.

Este tipo de truques está agora a ser adoptado pelas direcções das organizações de esquerda, como forma evidente de controlar os sectores que pareciam ainda há pouco tempo querer fugir ao seu controle. E é claro que os técnicos da polícia, se forem competentes, conhecem o truque e os resultados da sua utilização: uma domesticação canina da população, diminuindo assim os «riscos» de confronto.

Não voltam a apanhar-me noutra. Passo a aplicar o mesmo critério que uso para o comércio, para as festas organizadas pelo poder  e para o capital em geral: se o som produzido pelo poder/organização é demasiado alto e abafa a minha voz e o meu discernimento, passo de largo e vou à procura doutra loja.


Notas:
[1] Sobre este e outros aspectos da utilização do som em arquitectura e em situações sociais e rituais como meio de controlar e sugestionar, ver os numerosos estudos do Laboratoire Cresson, feitos por equipas multidisciplinares (arquitectos, sociólogos, etnólogos, historiadores, engenheiros de acústica, etc.).

(corrigido de alguns erros em 2-11-2013)

1 comentário:

  1. a final despois do conserto hoube descurso: http://obeissancemorte.wordpress.com/2013/10/27/a-partir-dos-1030-passos-escuta-es-um-filho-da-puta/

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