17/10/13

Solidão, emoção, militância

 

Num banco de jardim sigo desconfiado o deambular desses ratos com asas que dão pelo nome de pombos, enquanto aguardo a chegada do meu amigo. Esta espera forçada pelo atraso alheio, que muitos consideram um dos pecados maiores da má-criação nacional, quero eu encará-la nesse instante como uma dádiva – um momento de ócio, por oposição a negócio.


Um filósofo cujo nome não retive disse um dia que o maior problema que se nos coloca nesta nossa sociedade digitalizada e freneticamente consumista é a ausência de intervalo, o apelo ininterrupto aos sentidos, à representação ficcional da realidade através dum ecrã metafórico de computador. Todos esses artifícios destinados a manter a nossa atenção refém de algo que não foi à partida uma opção nossa exercem um domínio permanente sobre os nossos sentidos e a nossa consciência, sem pontos de fuga nem intervalo. O cidadão comum encontra-se impossibilitado de reagir, porque na ausência de intervalo não existe reflexão; e na ausência de reflexão não existe revolta (no sentido camusiano). A sofia, ou discurso da razão, torna-se inviável.


Finalmente vejo o meu amigo aproximar-se, vindo do lado oposto do jardim. Passo a passo vou-lhe distinguindo a feição, e vejo que vem lavado em lágrimas. Mas então, que se passou?, pergunto eu aflito. Tinha-se cruzado com um velho prostrado de fome nas escadas do Metro e não se conteve.
Cada vez mais aflito com a aflição do meu amigo, aguardo uma boa meia dúzia de minutos que estanque as lágrimas. Com tantos minutos, as minhas próprias lágrimas, comiseradas com a comiseração do meu amigo, acabam por fazer coro com as dele.


Vistas as coisas de fora, o mais empedernido dos cartesianos tenderia a pensar que duas pessoas manifestando o mesmo tipo de emoção, em comunhão de hora e lugar, deverão comungar das mesmas causas emocionais. Erro, mais um, cartesiano. Nada existe no mundo mais solitário que uma emoção. Nada mais pessoal e intransmissível nas suas causas, na sua génese e no seu decurso. O meu amigo chora de compaixão pela fome de um indigente. Eu choro de compaixão pela tristeza do meu amigo. E o que o velho esfomeado sente, isso jamais nenhum de nós saberá, porque não passámos pela fome dele nem pelas suas circunstâncias. As emoções, em si mesmas, formam um mundo estanque, pessoal, intransmissível, inacessível a partir do exterior.
Mas a manifestação das emoções, essa não, não é estanque. É contagiosa. Choro com o choro do meu amigo ainda que não sabendo porquê, rio-me com ele, exalto-me com ele, contagio-me dos seus momentos de agressividade. Têm isto os grandes símios, dos quais herdámos: o contágio colectivo duma coisa que é pessoal, inacessível e intransmissível. E para que tudo isto aconteça, não é necessário conhecer os porquês nem as relações de causalidade. Acontece, simplesmente, porque faz parte da nossa herança genética.


Neste ponto se distinguem dois tipos de militantes: aqueles que reagem e caminham a par doutros apenas por contágio emocional; e aqueles que, após um intervalo de reflexão, transmutam o que é pessoal e intransmissível em causa comum de revolta (sempre no sentido camusiano do termo, que consiste precisamente em tornar universal o que começa por ser pessoal e intransmissível). Os primeiros assustam-me, porque são capazes de grandes atrocidades emocionalmente geradas: vilipendiar, ostracizar, agredir e até esventrar outros companheiros que eles julgam não comungar da mesma causa.
Devia instituir-se, nas escolas de militância, uma cadeira de intervalo e outra de gestão emocional. Senão, tudo pode correr bastante mal, com exposição de tripas e sangue.




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