27/12/11

Inevitável era a tua tia

Alguém dizia aqui há dias que a constante de todos os discursos, comentários e opiniões da actualidade é a palavra «inevitável», «inevitabilidade».
Para tentar perceber uma das facetas e significados desta teimosa constante, proponho que revisitemos dois velhos mestres: Paul Langevin e Albert Camus.

13/12/11

Aguinha!

Agüinha! Agüinha! Agüinha!

manifesto indolor, inodoro e insípido

Camaradas:
O simples facto de as pessoas continuarem a ter sede, de insistirem em beber, demonstra que todas as actuais marcas de água não saciam a sede.
É preciso acabar com a sede de uma vez por todas!
Por isso decidimos pôr fim ao sofrimento do povo, dessedentar as massas e começar a produzir uma água mais pura que a dos outros aguadeiros, incluindo o recém-formado Partido das Hormonas. A este não dedicaremos mais do que um período: os aguadeiros hormonados não matam a sede porque sofrem de ciclos quadrados, o que faz com que a sua água tenha vértices e arranhe na garganta, provocando ainda mais sede.

Apesar de a nossa água provir exactamente das mesmas fontes doutrinárias que a dos outros aguadeiros, que são as de Hidro e de Oxi, acreditamos que

a nossa água é mais pura, mais insípida, mais inodora, mais transparente, mas sobretudo mais dura!
A nossa água é mais pura e dura porque tem um neutrão a mais que as outras todas!

Camarada, junta-te a nós e vem fazer uma água mais insípida, mais inodora, mais dura!
Viva a água dura! Morte à sede!

11/12/11

Fugiu-lhe a boca para a verdade

O ex-primeiro-ministro José Sócrates afirmou, numa conversa informal, que as dívidas soberanas são eternas; que o seu pagamento integral será sempre impossível; e que apenas resta geri-las.


Quase todos os responsáveis e comentadores políticos entraram em histeria com estas afirmações, o que não deixa de ser significativo e até divertido.

A comoção das reacções causadas pela afirmação desta verdade elementar procura justificar-se nas responsabilidades de José Sócrates na gestão da dívida durante cerca de 6 anos de governo. Esta desculpa esfarrapada e despropositada não chega para disfarçar um facto: a tirada de Sócrates abala uma estratégia política (sobejamente usada pelo próprio Sócrates) que consiste em induzir na população um medo-pânico perante as consequências do eventual não pagamento total ou parcial da dívida externa. Se esta estratégia de medo fosse anulada, provavelmente assistiríamos à revolta de largos sectores da população que de momento aceitam submeter-se a terríveis medidas de austeridade em nome... do pagamento da dívida!

A rematar as suas declarações, Sócrates afirmou: «foi isto que eu estudei em economia». Se ele estudou ou não, não sei dizer, mas lá que tem razão, não restam dúvidas - os fundadores da economia como ciência (se é que tal coisa pode existir) bem o afirmaram há mais de um século. Daí para cá, a criação de dívida soberana como processo apropriação dos recursos colectivos por parte do capital privado tornou-se uma arte sofisticada.

Depois de, ao longo dos séculos, terem sido apropriadas todas as terras comunais, todos os meios de produção individuais e comunais, e toda a força de trabalho, onde hão-de ir os grandes interesses privados sacar novos capitais? Já nada mais resta para saquear, senão os recursos colectivos elementares (a água, o ar, o sol, etc.) e os recursos colectivos construídos (a segurança social, as pensões de reforma, os meios e vias de comunicação, saneamento, etc.).

O sistema de crédito obedece a uma regra básica e incontornável: para que o credor conceda um crédito, o devedor deve oferecer alguma garantia em troca - no caso do consumidor comum pode ser o seu salário ou a sua casa; no caso duma população inteira, a única garantia possível consiste nos recursos colectivos.

Quando uma dívida é integralmente reembolsada, as garantias oferecidas regressam ao seu dono original. Ora, se o credor pretende apropriar-se precisamente dessas garantias, então estaria trabalhando contra si próprio ao permitir a criação duma dívida passível de ser integralmente reembolsada. A única forma de o credor se apropriar da garantia que pretende adquirir (por exemplo, as pensões de reforma) consiste em fornecer um crédito em espiral, impossível de reembolsar. Se o credor não encontrar forma de gerar uma dívida impossível de pagar, então desiste do negócio - não fornecerá mais crédito, porque o interesse que o movia já não pode ser alcançado. Curiosamente, esta realidade é totalmente inversa daquilo que nos é explicado pelos responsáveis políticos e pela comunicação social, que passam a vida a ameaçar-nos de que deixaremos de ter crédito se deixarmos a dívida soberana entrar numa espiral imparável.

José Sócrates tem toda a razão no que disse. Fugiu-lhe a boca para a verdade, ao menos uma vez na vida. A única coisa que lhe faltou dizer foi que existem alternativas à gestão da dívida infinita - essas alternativas passam pelo repúdio do processo de endividamento.

07/12/11

Recrudescem as máfias, a corrupção policial, os pintas e a bestialidade

Épocas políticas de direita extrema e de extrema direita, como a que se vive hoje em Portugal (e de resto em toda a Europa), proporcionam sempre o florescimento das máfias, da corrupção policial, de chulos e gandulos. São períodos em que se tornam mais fortes, por vezes bem mais fortes que a lei, os esquemas de chulice e extorsão, o exercício de poderes ilegítimos, da prepotência, do bastão, da navalha e da pistola.

Nestas épocas, todas as ilegitimidades, brutalidades e esquemas mafiosos que já antes se desenrolavam subterraneamente, de forma discreta, começam a mostrar-se à plena luz do dia, uma vez que o alastramento de práticas, favores e cumplicidades mafiosas cria uma vasta teia que se estende desde os recantos mais obscuros da vida nocturna até aos mais altos gabinetes ministeriais.

Velhas práticas e concluios entre chulos, gorilas e polícias
Stuart Carvalhais
A existência de máfias apadrinhadas pela generalidade dos membros duma esquadra de polícia é uma prática velha. Assim, por exemplo, durante décadas os bares nocturnos do Cais do Sodré, em Lisboa, faziam uma doação mensal a uma associação sem fins lucrativos dominada por agentes da polícia. O esquema era perfeitamente legal, uma vez que as doações a associações sem fins lucrativos não ofendem a lei. A cada mês um dos donos de bar percorria todos os outros bares recolhendo os «donativos»; depois ia entregá-los em nome pessoal; desta forma, uma vez que havia muitos bares, aparentemente cada um apenas doava de ano a ano, ou de dois em dois anos, o que ajudava a que tudo parecesse bastante normal.

A invenção dessa espécie de instituição chamada «seguranças», também conhecidos por «gorilas», veio alterar um pouco a superfície do esquema, trazendo para a equação os ginásios, as quadrilhas de culturistas e outros que tais. No essencial, porém, tudo permanece igual - criam-se grupos de interesses, cumplicidades e favores que cozinham uma velha receita associativa assente em três ingredientes essenciais:
  1. Uma fauna local de lumpen, chulos, carteiristas e vendedores de droga. Além de exercer o seu «ofício», esta fauna, conhecendo bem o terreno em que se move, constitui os olhos e os ouvidos dos gorilas e dos polícias; patrulha o bairro, transmite recados, informa sobre a localização de possíveis vítimas.
  2. Um grupo de controle constituído por «gorilas» e polícias que exercem ilegalmente serviços de segurança. Esta escumalha controla a fauna de carteiristas, chulos e dealers, criando-lhes condições para actuarem na área de influência do bar; saca-lhes percentagens e favores; livra-os de maus encontros com a lei; permite-lhes inclusivamente o uso de armas brancas e de fogo dentro do próprio bar (para assaltarem clientes na casa de banho, por exemplo, enquanto os seguranças vedam o acesso a essa área para que eles possam «trabalhar» à vontade).
  3. Um grupo de polícias corruptos e necessariamente capazes das mais horríveis brutalidades, que dão cobertura e protecção aos dois grupos anteriores - e, obviamente, também os chulam.


Como conseguem as máfias implantar-se?

Os factores que permitem a implantação e sucesso destas máfias são de três tipos:

1. Factores intrínsecos às máfias.
Muito simplesmente, as máfias impõem-se pela força bruta. Se, por exemplo, um dono de bar, contactado por um polícia mafioso no sentido de aceitar os seus «serviços» de segurança e protecção, insiste em recusar, pode acontecer-lhe que no fim-de-semana seguinte veja o seu estabelecimento espatifado por um grupo desconhecido de vândalos, os clientes assustados e com pouca vontade de lá voltarem, além das possíveis sevícias físicas a que fica sujeito. Na semana seguinte, sem hesitar, aceita os serviços de protecção. O problema é que, embora aparentemente se tratasse apenas de aceitar um «segurança» (que na realidade jamais se prestará a correr o mais pequeno risco pessoal para socorrer seja quem for em caso de aflição ou pacificar qualquer tipo de situação), eis que surge vindo do nada um exército de chulos, carteiristas, vendedores de coca [refiro-os por via da desonestidade e crueldade, não por via da coca], amigos e ajudantes do «segurança», etc. O bar terá de suportá-los e alimentá-los a todos.

2. Factores intrínsecos aos bares.
Por regra os donos dos bares, os gerentes e os empregados de bar são uma cambada de tontos sem qualquer espécie de consciência política, cívica ou ética. Alguns deles, aliás, emergiram desse mesmo lodaçal mafioso, onde recolheram o pecúlio com que montam o bar. Por conseguinte não lhes passa pela cabeça recorrer às instituições judiciais de protecção especial e combate à corrupção e ao banditismo; e também não sentem qualquer prurido ao verem um cliente ser espancado até à morte por razão nenhuma, como aconteceu a semana passada no Maria Caxuxa, no Bairro Alto - cujo dono do bar, inquirido sobre o assunto, nem sequer se lembrou de perguntar pelo estado da vítima, limitando-se apenas a manifestar a sua enorme aflição pelo mal que poderia vir ao negócio, se familiares e amigos da vítima começassem a propagandear o acontecimento (coisa que os «seguranças» se encarregaram imediatamente de dissuadir com avisos «subtis» e falsas testemunhas). Em suma, do lado dos donos de bar o sistema é alimentado por um elevadíssimo grau de cobardia e inconsciência cívica (a roçar a estupidez).

3. Factores  sociais genéricos
O ambiente político de direita, como já referimos, é ele próprio um húmus de corrupção, brutalidade, ilegalidade e inconsciência cívica e ética. Os políticos de extrema direita encontram-se rigorosamente ao nível das máfias lumpen nos seus actos e nos seus métodos, apenas se distinguindo (alguns) pela gravata, visto que todos usam o mesmo tipo de carro ou de jipe.

Um exercício de escala
Os chulos e máfias de bairro quase parecem inocentes, por comparação com os grandes intermediários, as grandes superfícies e outros abutres de mercado; estes, actuando à escala dum país inteiro, forçam a aprovação de leis no parlamento nacional e europeu e criam uma força policial de tipo pidesco, chamada ASAE, para arrasarem brutalmente a concorrência do pequeno comércio. É nesta altura que convém recordar que qualitativamente é tudo o mesmo - não nos deixemos levar por argumentos quantitativos; o chulo de bairro e o chulo dos corredores parlamentares usam os mesmos métodos (corrupção e exercício de força ilegítima), buscam os mesmos fins (proveito pessoal à custa do prejuízo alheio ou mesmo da vida alheia), ostentam a mesma ausência completa de princípios cívicos e éticos - apenas as quantias extorquidas diferem imenso.

A chulice destas mega-máfias atingiu recentemente o cúmulo, quando as grandes superfícies e distribuidores descobriram que lhes sai mais barato contratar 30 advogados para aldrabarem os contratos de fornecimento e retribuição, do que pagar aos fornecedores. Assim, neste momento, existem dezenas, talvez centenas ou milhares de pequenos-médios fornecedores dentro do mercado nacional que estão a ir à falência por não receberem a retribuição dos produtos que forneceram. A desfaçatez chega mesmo ao ponto de, em vez de receberem, terem de pagar indemnizações, graças às habilidades dos gabinetes de advogados e às letras miudinhas dos contratos.

A responsabilidade do público e do cidadão comum

Se, como aconteceu há dias no Maria Caxuxa, um homem é espancado possivelmente até à morte perante uma assistência de 40 clientes e afinal nem uma só testemunha se levanta, temos de concluir que algo de muito podre se passa neste reino. A corrupção material e intelectual parece ter alastrado como peste a toda a população.

Que uma grande fatia dessa clientela (que, já agora e por sinal, tem pretensões a fazer parte da jovem nata intelectual lisboeta...) seja constituída por choninhas incapazes de tomarem uma atitude, não espanta. Mas que, ainda assim, não surja nem ou uma, nenhum, que se preste a denunciar o acontecimento e a dizer alto e bom som que uma indústria que compactua com a corrupção, a brutalidade assassina e a chulice não merece ser visitada nem alimentada... bom, nesse caso temos de reconhecer que estamos perante uma degradação generalizada dos costumes e das mentalidades.

[As excepções seguramente perdoar-me-ão o tom generalista usado - tendo consciência dos factos, saberão que não me dirijo a eles mas sim a uma realidade que certamente os importuna tanto no campo dos princípios como do negócio.]

06/12/11

O clube do consenso e da reestruturação

[fonte: Rui Viana Pereira, in CADPP]

Ora aí está – o «consenso» e a «reestruturação» tornaram-se o último grito da moda. Poderíamos mesmo baptizar esta nova moda de «consenso reestruturado».
Não há professor de economia, do MIT às universidades da Alemanha, passando por todos os grandes centros de hegemonia que ficam pelo caminho, que não fale da necessidade de reestruturar e renegociar a dívida soberana.
Banqueiros, dirigentes da UE, comentadores, politólogos e sociólogos amantes do regime, todos defendem, às claras uns, à socapa outros, a necessidade de reestruturar e renegociar a dívida dos países periféricos.

A moda do consenso arredonda a saia

Além disso, cada vez mais gente adere a uma nova moda: o consenso. Liga-se a televisão, e pimba!, lá está o último grito da moda proclamando a necessidade de alcançar o consenso, as virtudes do consenso, as qualidades sensuais do consenso. Todos os problemas, todos os sofrimentos, todas as falências seriam resolvidas na Europa, graças às virtudes medicinais do consenso (seja lá isso o que for). O Paulo Portas deve estar impante, visto ter sido ele um dos primeiros por cá a tentar vender o produto. [...]

Reestruturação da dívida – a eterna receita do capital ganha novos adeptos

Que o FMI defenda as qualidades milagrosas da reestruturação, não espanta – fá-lo sistematicamente há 20 anos na América do Sul e noutras partes do Mundo, sempre com grande sucesso financeiro (para os banqueiros que representa, entenda-se). Que os poderes públicos europeus e o Banco Central Europeu venham agora adoptar as mesmas receitas, tão-pouco espanta – as soluções neoliberais não abundam por aí, é natural que se repitam até à exaustão.
O que eu acho extraordinário é que certas figuras e correntes da esquerda portuguesa apostem cada vez mais nessa «solução». No preciso instante em que as instituições financeiras e europeias já estão a negociar nos bastidores a renegociação, reestruturação e ajuste estrutural da dívida, as referidas figuras e correntes multiplicam-se em declarações e planos para ... reestruturar a dívida!
Creio mesmo que se preparam para fazer, à custa dum enorme dispêndio de suor e militância graciosa, aquilo que os banqueiros e os tecnocratas europeus já fazem a preço de ouro: uns calculozitos para reestruturar a dívida. Todos eles concorrem no mesmo: reestruturar e renegociar a dívida, «ajustar» os planos de «desenvolvimento» – apenas uns são tontos e o fazem de borla, enquanto outros são espertos e enriquecem sem limites.
Que coisa surpreendente, tanto consenso duma assentada só!

Sejamos sérios – anulemos a dívida e todos os factores de endividamento

Como o CADPP afirma no seu manifesto, reestruturar, renegociar ou mesmo anular partes desta dívida não passa de panaceia, de curtíssima visão das coisas.
Minorar de alguma forma esta dívida para contrair outra igual logo a seguir é um voo baixo que ultrapassa a barreira do disparate.
Além disso... esta dívida ou não é nossa, ou já a pagámos há muito tempo!
Há quem defenda que é muito difícil explicar à população portuguesa a justeza de anular esta dívida. A mim o que me parece realmente difícil é, depois de um trabalhador ter andado uma vida inteira a descontar para a reforma, explicar-lhe que não pode recebê-la porque precisamos desse dinheiro para salvar da falência os bancos privados.
A crise da dívida resulta da transferência de todos os recursos colectivos, de todos os bens, de toda a força de trabalho para as mãos do grande capital privado, a custo zero.
Vamos lá exigir a anulação desta dívida, já que é urgente salvar da fome, do desespero e do suicídio milhões de trabalhadores. Mas não nos esqueçamos de eliminar os processos políticos e económicos que deram origem a esta dívida – e às próximas, se não atalharmos.

28/10/11

O falso perdão da Grécia

A Voz do Dono (também chamada comunicação social pelos mais distraídos) tem anunciado em grandes parangonas o perdão de 50% da dívida grega. É treta, como de costume.

Eu não vejo perdão nenhum. Vocês vêem?
Perdão seria criar imediatamente um mecanismo eficaz que permitisse passar rapidamente de 36% de desemprego para pleno emprego.
Perdão seria reabrir os hospitais e serviços de saúde.
Perdão seria devolver ao povo grego as ilhas, praias e monumentos vendidos ao desbarato, e acrescentar uma indemnização pelos danos causados.
Perdão seria repor sob controle do Estado e das populações os serviços essenciais (transportes, água, saneamento, gás, electricidade, petroquímica, comunicações, etc.).
Perdão seria reabrir os lares de terceira idade e os infantários.
Perdão seria repor os salários nos níveis anteriores.
...

Eu não vejo onde está o perdão, e desconfio que não é por ser cegueta - pois se as instituições financeiras e os bancos também não vêem perdão nenhum!
A prova está em que, no dia a seguir ao anúncio oficial dos mecanismos de «perdão», a banca e a bolsa reabriram alegres e felizes, em alta!, como se tivessem aspirado logo ao pequeno-almoço 5 linhas de coca!
Seria de esperar que um perdão de 50% pusesse os banqueiros aos berros em todos os telejornais e mesas redondas, 24 horas por dia, a carpirem o dinheirinho perdido. Pois não, senhor, acordaram em alta.
Hmmmmmm...

23/10/11

A rede e o subproduto



Os instrumentos da rede digital procuram produzir uma imagem das redes sociais do mundo real.

Como todas as imagens do mundo construídas pelo labor intelectual humano, estas imagens são meras ficções. Os seus perigos são os mesmos de sempre: confundir a imagem com a realidade acarreta a perda de rumo, o conflito neurótico com a realidade vivida.

Como todas as imagens, o blog baseia-se na realidade para construir a sua ficção. Continua a aplicar-se a velha máxima de que uma boa mentira, para ser convincente, deve conter uma parcela da verdade.


Os blogs são um subproduto da sociedade de consumo desenfreado.

Tal como a sociedade de consumo, o blog produz uma quantidade assustadora de poluição - no caso vertente, poluição mental.

A visão curta, com prazo de validade de 24 horas, sem um tempo de reflexão, é a vocação do blog.
Nele se aniquilam algumas tendências naturais da escrita: períodos prolongados de ponderação e reflexão; visões alargadas da realidade; exercício de memória reflexiva; extensão da memória, permanência no tempo.

Este blog, como os demais, tem pecado por desvario consumista.

Esperemos que exista ainda nos blogs uma nesga de espaço para a reflexão, embora limitada.


Já o FaceBook não contém em si qualquer nesga de espaço reflexivo. 

O FB cruza uma imagem virtual das redes sociais vivas com uma imagem estrita do consumismo mais exarcebado.

A natureza do FB é a mesmíssima dos produtos para consumo rápido e compulsivo: cada produto emitido tem de «comer» ou anular os produtos anteriores, como forma de sobrevivência.

Deste ponto de vista, o FB constrói uma imagem interessante da sociedade contemporânea: um mecanismo de autofagia.

Finalmente, o FB mimetiza a vida real nesta coisa curiosa: os seus consumidores estão firmemente convencidos de que não existe sobrevivência possível fora do FaceBook (ou seja, fora do consumo) - aderir ao FB, render-se ou morrer.

Espanta, por isso, que eu permaneça vivo.
Ou talvez já seja apenas fóssil e não o saiba.


20/10/11

A solução final

Solução final – versão 1 (estilo nazi)
  • problemas simples – complicam-se
  • problemas complicados – abatem-se à machadada
e pronto, acabaram-se os problemas.


Solução final – versão 2 (estilo demo-cabo-verdiano)
  • problemas simples – resolvem-se instantaneamente pelo método mais simples
  • problemas complicados – simplificam-se
  • problemas sem solução – são um falso problema: onde não há solução, não há problema
 e pronto, acabaram-se os problemas.


Guia prático para pessoas com disfunção aplicacional

É natural que algumas pessoas compreendam bem os princípios expostos acima, mas depois não sejam capazes de vislumbrar o seu modo de aplicação em cada situação prática e particular. Em atenção a esses, 2 ou 3 pequenos conselhos:

No caso da Solução Final Versão 2: o método mais simples é sempre o mais correcto, e o método mais correcto é sempre o mais simples. Portanto, se procurarmos um, encontramos o outro – e garantimos a solução do problema (excepto, evidentemente, no caso dos falsos problemas, que só existem dentro da nossa cabeça e portanto não têm solução nem problema). Exemplo:

Estamos numa reunião de trabalho e de repente entra na sala uma pessoa que se sabe comprovadamente ser um perigoso intriguista. A sua expulsão ou saneamento constituiria um método democrática e eticamente duvidoso, complexo, moroso, cheio de meandros e discussões. Não é a solução mais correcta – logo, não é a solução mais simples – logo, não é solução.
Solução óbvia, simples e instantânea: todas as pessoas boas presentes na sala se levantam imediatamente em bloco, sem dizer uma palavra, saem da sala e vão reunir para outro lado, outorgando ao intriguista em questão o direito de permanecer sentado na sala.
Simples, não é?

19/10/11

Miragens, revolução, boicote

Há cerca de seis meses que vivemos em Lisboa a miragem promissora de um mundo novo.
Há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, demasiada mesmo – tanta, que os activistas e as «vanguardas» desta terra ensolarada não têm a capacidade nem o génio de tudo gerir ao mesmo tempo: a resistência às medidas de austeridade e consequente declive generalizado para a miséria humana, a resistência à quebra de soberania imposta pela Troika e pela UE, a defesa de um Estado social ferido de morte, a defesa dos direitos humanos firmados ao longo de mais de um século e agora sonegados pela barbárie neoliberal; e, ao mesmo tempo, a procura da reinvenção de modelos e métodos de exercício da democracia directa e do poder popular.
É um tempo aflitivo de acção urgente, de guerrilha política desesperada pela sobrevivência dos mais elementares valores humanos, acumulado à necessidade igualmente urgente de repensar modelos políticos, ideológicos, éticos e democráticos, sem os quais toda a luta será vã, tudo regressará à linha de partida no final do jogo.

Como se isto não bastasse, é preciso ter a paciência de esperar que várias novas gerações que acabam agorinha mesmo de descobrir o activismo político, gerações essas desde sempre arredadas da prática e do exercício directo da democracia, completamente alheias às experiências de democracia directa realizadas algumas décadas atrás, arrogantes como todos os neófitos, façam o favor, paulatinamente, com tempo, de aprender, de reinventar a roda, de redescobrir como se faz uma assembleia, um ponto de ordem, uma equipa de trabalho, um debate fraterno entre ideias diversas reunidas por uma vontade comum, etc.
E por fim, no caso daqueles que não nasceram apenas em Maio passado para a política, mas que já há tempo participam em estruturas organizadas onde buscam apoio logístico e teórico, e que se veem agora postos perante acusações claras de imobilismo bacoco, de serem os perpetuadores de vícios antidemocráticos, é preciso dar-lhes tempo primeiro para tomarem consciência desses vícios de que foram embebidos durante anos a fio, e depois mais tempo para se verem livres deles, e por fim mais tempo ainda para se realinharem e reconciliarem com aqueles que os acusaram. É obra. É muito tempo.

Tudo isto, nitidamente, é de mais para a cabecinha das supostas «vanguardas» que por aí deviam andar à procura de um momento histórico deste calibre, no fito de criarem uma situação pré-revolucionária.

Será ainda possível que 15 de Outubro seja todos os dias?

Para além de tudo o que já aconteceu nos últimos 6 meses, a questão que se põe neste preciso momento é a seguinte: será possível que as pessoas e movimentos que organizaram o 15 de Outubro em Lisboa prossigam o seu trabalho de activismo político, que capitalizem esse extraordinário momento de manifestação de indignações, revoltas e aspirações que foi o 15 de Outubro? Ou voltaremos a ter a mesma situação de 12 de Março de 2011? – uma massa humana impressionante, indignada, que no dia seguinte se esvazia como um balão, sem rumo político?

Para que a continuidade (melhor, o crescimento) da luta possa existir, são necessárias várias condições:

  • é necessário que os partidos de esquerda, com o PC à cabeça, não realizem mais uma vez uma dessas estrondosas manobras de traição que, embora básicas e toscas, sempre conseguem ter a eficácia tremenda de desmobilizar a movimentação social; é que, reconheçamos, esses partidos continuam a ter uma influência tremenda nos movimentos sociais em Portugal;
  • é necessário que o movimento unitário gerado à volta da organização do 15 de Outubro de 2011 se mantenha – melhor, é necessário que a correcção impecável do seu comportamento futuro permita um alargamento, tornando-se um toque a rebate irrecusável, reunindo cada vez mais gente e recursos;
  • mas, para isso, é necessário que esse grupo heterogéneo (que, para facilitar, passarei a chamar aqui 15.O) redescubra um terreno comum (porque a manifestação já acabou, meus amigos, há que estabelecer novas metas) no qual se justifiquem e firmem as convergências unitárias;
  • o que, por sua vez, só pode acontecer com a reinvenção de novos métodos de confronto ideológico pacífico – porque já se provou neste 15.O que o confronto ideológico de esquerda, paradoxalmente, nos pode levar muito mais longe que o monolitismo ideológico.
A cizânia dos grupelhos, tanto velhos como novos

A cizânia é uma praga invisível a olho nu que faz apodrecer as espigas de trigo e destrói a ceara inteira. É precisamente a colheita de 15 de Outubro que está em perigo, que vai apodrecendo rapidamente, sendo de recear que por fim reste apenas uma gigantesca bosta.

Neste preciso momento toda a convergência, toda a energia política gerada pelo 15.O está refém da cizânia entre dois grupos de grande peso nesse processo espantoso que fez desembocar 100.000 pessoas em frente do Parlamento, e que lhes despertou a consciência para o absurdo da dívida nacional, para a necessidade da sua suspensão e investigação, e para a força que o movimento social pode ter.

Dum lado temos alguns militantes vindos de organizações estruturadas (partidárias ou outras).
Doutra banda temos um conjunto de pessoas ditas independentes ou apartidárias, boa parte delas bastante inexperientes, que dizem procurar novas formas de exercício da democracia directa (ou «verdadeira» ou «real», como dizem com a sanha valorativa que os tem caracterizado).
Ambos os grupos são imiscíveis, não se podem ver sem entrarem num ataque desconcertante de histeria colectiva. Atacam-se com uma fúria fraticida raramente vista nos últimos 30 anos de história do movimento social português. Julgam-se perfilados em lados opostos duma barreira totalmente imaginária.

Quem está de fora desta luta sanguinolenta (e note-se que esta metáfora do sangue está à beira de se tornar realidade, creio mesmo que já se terá tornado realidade à socapa) nota, estranhamente, que ambos os grupos se acusam exactamente da mesma coisa – golpadas, traições, infiltrações, estalinismos e fascismos.
Têm, aliás, boas razões para o fazerem de parte a parte, porque as atitudes objectivas que têm tomado – golpadas toscas (conscientes ou inconscientes, tanto faz, o resultado é o mesmo), purgas, agressões verbais e físicas, insultos, calúnias e acusações infundadas, denegrição do bom nome, etc. – não são coisa aconselhável a sessões juvenis e infantis, e todas elas apontam o caminho do Tarrafal ou do Gulag.

Tendo feito uma vez a transcrição de alguns diálogos, verifiquei que, se neles substituísse alguns piropos pseudo-políticos por frases comuns de tasca, do tipo «és uma puta», «foste para a cama com o inimigo/vizinho», «repete lá isso que eu rebento-te já aqui as beiças» e outras carícias do género, não só o tom geral se mantinha, mas até o sentido profundo do discurso permanecia incólume. Não se trata, de facto, de verdadeiras divergências políticas (até porque ambos os grupos aplicam métodos semelhantes de acção, portanto pode existir divergência retórica, mas não existe divergência política), mas sim de destilar um ódio profundo vindo não se sabe donde. É um caso clínico.
Para compreender o sentido profundo dos diálogos que se desenrolam nas arenas onde estas duas turmas se defrontam, é preciso não prestar atenção às palavras (oh, como as palavras podem ser enganadoras!), mas sim às posturas físicas que as acompanham, à gestualidade, ao tom e melodia da voz, aos esgares faciais.

No meio desta guerra feroz ficam os «entalados» que ainda não foram purgados – uns «independentes», outros «organizados», tendo todos em comum duas coisas: a bondade de carácter e a ausência de ódio fraticida, e a noção clara do momento histórico que vivemos e da necessidade urgente de fazer guerra ao inimigo verdadeiro: a banca, a política neoliberal, os poderes públicos nacionais e europeus.
Estes «entalados», não podendo, por uma questão de princípio e de honra, praticar a única solução imediatamente evidente (ou seja, purgar os vândalos ali em luta e dar-lhes uma carga de pau correctiva), encontram-se numa situação absolutamente desesperada – vêem a urgência do momento histórico, vêem a estupidez incomensurável da cizânia, vêem quão fácil seria definir neste preciso momento os terrenos e objectivos comuns do processo unitário, mas... não encontram um método politicamente aceitável de travar a ferocidade bélica que objectivamente está a sabotar o processo de luta.

A falta de arte e engenho

Outra limitação do processo de luta, como já referi, é a falta de génio. É claro que sempre é possível avançar na luta mesmo sem ter à frente das hostes um conjunto de génios políticos – à falta de melhor, o avanço faz-se lento, arrasta-se, embora desperdiçando oportunidades de ouro. Vejamos um exemplo avulso:

Durante a assembleia popular realizada a 15 de Outubro em frente do Parlamento, aconteceu subitamente que alguém veio ao microfone noticiar que a presidenta da Assembleia da República tinha mandado recado dizendo que estava disposta a ouvir sugestões e reivindicações. Se era isto verdade ou boato ficou por apurar; mas para o caso esse pormenor não importa.
Entretanto gerou-se dentro da multidão um movimento de cidadãos que teimou em invadir as escadarias de acesso ao Parlamento, justificando o acto pelo seu simbolismo (de assalto ao poder). Nisto se desperdiçou uma boa hora de esforços e energias mentais, para gáudio da comunicação social mais reaccionária.
Não houve um único «dirigente» político que fosse capaz de pegar no microfone e dar esta resposta à presidenta da AR:
O que nós queremos não é assaltar a sede simbólica deste modelo de poder público que desprezamos. O que nós queremos é que os Srs. deputados saiam desse local simbólico de poder corrupto e baixem a este local simbólico de poder futuro, o poder popular reunido em assembleia na rua, e que no nosso próprio terreno ouçam as nossas acusações e reivindicações.

Nada. Nem uma palavra. Apenas dissenções e discussões sobre se nos deveríamos sentar ou levantar, subir as escadas e andar à porrada com a polícia ou prosseguir calmamente a nossa assembleia.
Nestas pequenas coisas, nestes relâmpagos de improviso perante a realidade sempre surpreendente, se distingue o génio político do cão de fila conformista.

25/09/11

Spartakus: a revolta dos escravos

[Post publicado por Leonor Areal no 15outubro.info e censurado pelo que resta dos promotores originais da manifestação em Lisboa, por considerarem o vídeo citado no post demasiado bélico; além disso vêem-se as maminhas de vários personagens.]

Portugal foi ocupado pelas forças do Neoliberalismo. O império das grandes empresas financeiras tenta destruir os direitos dos Portugueses, comprar as suas lucrativas empresas públicas muito baratas e canalizar o dinheiro dos seus impostos para pagar tributo aos Bancos Alemães, Americanos e Chineses. Portugal é ocupado e destruído lentamente, para ser reduzido a uma escravatura lenta e insidiosa.

Todo? Não.

Um grupo de valentes guerreiros resiste ainda.




Vídeo de Miguel Gomes

10/09/11

Manifesto anti-SIS e protesto

Basta de SIS! PUM basta!
O SIS pinga ranho do nariz.
O SIS cheira mal dos pés.
O SIS está cheio de pides.
Os pides estão cheios de sis.
O SIS tem um armazém cheio de notas de vintes.
O SIS dá ASAE e não gosta de broas de Avintes.
O SIS papa jornalistas ao pequeno-almoço e ao jantar caga bufos.
O SIS está entre nós, traz na mão uma filhós, mas é só para disfarçar, porque ele quer é ouvir a nossa voz.
O SIS foi inventado pela vizinha do lado, que passa a vida à coca da conversa dos condóminos.
Quando o SIS era pequenino caiu de cabeça numa pia parlamentária e ficou com disfunção urinária.
O SIS tem cartão de crédito com um número secreto que ele próprio esconde no recto.
PUM no SIS!
Quando o SIS chora, a gente ri. Quando o SIS ri, PIM no SIS!
Morra o SIS morra!
Uma geração que consente deixar-se espiar pelo SIS é uma geração que nunca o foi, é um coio de choninhas, de indignos e de invisuais.
Se o SIS não tivesse sido inventado, a Terra giraria ao contrário, o trigo cresceria para baixo, as rodas seriam quadradas, mas ao menos o Sol brilharia para todos nós.

O SIS é chunga!
O SIS é avoengo, bacoco e gonorreico.
A vós egrégios avós, a nós dêem-nos voz, e morra o SIS, morra! PIM!
E ainda há quem lhe estenda a mão, e lhe lave a roupa suja em mesas redondas televisivas, mal moderadas por jornaleiros re-mediados.
O SIS não está no Facebook porque o Facebook ainda não aceita redes de inimigos.
Se o SIS é português, eu quero ser líbio.
O SIS é PIMBA!

Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável – e então gritará connosco a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado.

MORRA O SIS, MORRA, PIM!

08/09/11

A censura aperta

De repente tornou-se evidente, mesmo para os mais cépticos, que estamos a viver uma época de grande cerco censório e crescente repressão.

Passado um período inicial de surpresa e estupor, em que os poderes públicos europeus levaram o seu tempo a perceber o papel crucial dos novos meios de comunicação digital e das redes sociais nas acções de protesto e resistência civil, a censura e as escutas foram reinstauradas.

Os governos e serviços secretos europeus acordaram para a realidade há algum tempo – sobretudo depois das revoluções no Norte de África – e deixaram de brincar em serviço.

A censura camuflada, oficialmente não existente, é muito difícil de expor e denunciar perante a maioria da população. Sem dúvida era mais fácil no tempo da ditadura, quando a censura e a polícia política eram institucionalizadas, criadas por decreto e chamadas pelos nomes, sem rebuço.

O número de activistas sujeitos a escuta telefónica desde o 12 de Março (ou antes) é assustador. Aliás, uma só escuta que fosse já seria assustadora quanto baste.
Nos últimos meses vários sites (pacíficos) de esquerda em diversas partes da Europa foram bloqueados e perseguidos.
Nos últimos dias têm-se acumulado as provas de censura nas páginas do FaceBook e de blogs dinamizadas por pessoas ligadas aos movimentos sociais em Portugal. Algumas dessas páginas foram suspensas sob a acusação (totalmente infundada) de spam – quando na verdade se limitaram a fazer eco de artigos de jornal onde certos assuntos eram denunciados. Este blog que estão a ler viu esta semana os seus últimos artigos censurados nos feeds doutros blogs. Muitas páginas funcionam mal, ficam misteriosamente offline durante longos períodos, etc.

Noutros casos, por exemplo quando se publicitam convocações de manifestações de protesto, as datas são alteradas. Tentamos corrigi-las, voltam a ser alteradas. É um processo de censura sofisticado – alterar em vez de bloquear.

Assim, por exemplo, numa certa página, a data de convocação da MANIFESTAÇÃO DOS PROFESSORES em Lisboa, marcada para o ROSSIO, DEZ DE SETEMBRO, foi sucessiva e misteriosamente alterada para o dia seguinte.

Trata-se duma subtil mistura de censura e contra-informação, como mandam os manuais de antiguerrilha criados pela França durante a guerra de independência da Argélia e ainda hoje actuais (aliás, nessa época até os agentes secretos americanos foram tirar cursos a França).

É de crer que a nossa resposta a este novo tipo de ditadura terá de recorrer por um lado ao uso dos novos meios de comunicação digital e em rede (inestimáveis), temperado com uma enorme dose de imaginação para ludibriar a censura, como se fazia antes do 25 de Abril de 1974; por outro, a velhos métodos mais ou menos artesanais de propaganda e comunicação, adaptados aos tempos modernos.

É urgente que os movimentos cívicos e de resistência montem os seus sites de forma autónoma, fora de plataformas altamente controladas como o Blogspot e o Facebook; e que as pessoas interessadas em lê-los instalem redes virtuais seguras (que permitem evitar a maioria das intromissões do Estado e das grandes empresas) – infelizmente, tornar um computador pessoal seguro exige bastantes conhecimentos técnicos.

Está na altura de começarmos a fazer cursos intensivos, clandestinos, de segurança – como nos «velhos tempos».

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P.S.: 24 horas depois da publicação deste artigo, os feeds do blog voltaram a funcionar.

07/09/11

SIS e outros postos offline

O grupo de acção Lulz Security Portugal teve a gentileza de colocar offline alguns sites.

Agradecemos encarecidamente e aguardamos que este pequeno aviso seja seguido de medidas ainda mais drásticas - ainda que seja difícil igualar o ataque das medidas de austeridade impostas ao povo português.

Cópia da página do Lulz Security Portugal:

Lista de sites que gentilmente foram colocados offline
(05/Set/2011)


http://www.idn.gov.pt/index.php - Instituto da Defesa Nacional
 
http://www.sis.pt/index.html - Serviço de Informações de Segurança
 
http://www.ceger.gov.pt - Centro de Gestão da Rede Informática do Governo
 
http://www.psd.pt/ - Partido Social Democrata (em presidencia actualmente)
 
http://www.cds.pt/ - CDS PARTIDO POPULAR
 
http://www.ps.pt - Partido Socialista
 
http://bolsa.sic.pt - Bolsa de Valores
 
http://www.parlamento.pt - Parlamento 



Vídeo de apresentação do Lulzsecportugal:

05/09/11

Passos Coelho tira incêndios da cartola

O primeiro-ministro lançou ontem (04-09-2011) um forte aviso «àqueles que pensam que podem incendiar as ruas» e trazer «o tumulto» para o país e em jeito de ameaça avisou que o Governo não permitirá esse caminho e saberá decidir quando necessário.
(Ver notícia na fonte.)
As declarações do primeiro-ministro deixam entrever o seu verdadeiro carácter político. O Offxore até lhe ofereceu um bigodinho.

Recordemos o seguinte:
  1. Ninguém andou a incendiar as ruas. De que cartola tirou o primeiro-ministro esta ideia peregrina?
  2. Até agora a única pessoa que ameaçou tomar atitudes violentas foi o primeiro-ministro.
  3. Os movimentos sociais portugueses, os promotores do Manifesto 15 de Outubro e os apoiantes da manifestação na mesma data têm afirmado à exaustão a sua determinação pacífica.
  4. Se, excluída qualquer intenção violenta por parte dos movimentos sociais, Passos Coelho insiste em fazer ameaças de repressão, temos de concluir pelas tendências autoritárias do primeiro-ministro.

31/08/11

Manifesto

15 de Outubro 2011 – A Democracia sai à rua!

PROTESTO APARTIDÁRIO, LAICO E PACÍFICO
- Pela Democracia participativa.
- Pela transparência nas decisões políticas.
- Pelo fim da precariedade de vida.

Somos “gerações à rasca”, pessoas que trabalham, precárias, desempregadas ou em vias de despedimento, estudantes, migrantes e reformadas, insatisfeitas com as nossas condições de vida. Hoje vimos para a rua, na Europa e no Mundo, de forma não violenta, expressar a nossa indignação e protesto face ao actual modelo de governação política, económica e social. Um modelo que não nos serve, que nos oprime e não nos representa.
A actual governação assenta numa falsa democracia em que as decisões estão restritas às salas fechadas dos parlamentos, gabinetes ministeriais e instâncias internacionais. Um sistema sem qualquer tipo de controlo cidadão, refém de um modelo económico-financeiro, sem preocupações sociais ou ambientais e que fomenta as desigualdades, a pobreza e a perda de direitos à escala global. Democracia não é isto!
Queremos uma Democracia participativa, onde as pessoas possam intervir activa e efectivamente nas decisões. Uma Democracia em que o exercício dos cargos públicos seja baseado na integridade e defesa do interesse e bem-estar comuns.
Queremos uma Democracia onde os mais ricos não sejam protegidos por regimes de excepção. Queremos um sistema fiscal progressivo e transparente, onde a riqueza seja justamente distribuída e a segurança social não seja descapitalizada; onde todas as pessoas contribuam de forma justa e imparcial e os direitos e deveres dos cidadãos estejam assegurados.
Queremos uma Democracia onde quem comete abuso de poder e crimes económicos e financeiros seja efectivamente responsabilizado por um sistema judicial independente, menos burocrático e sem dualidade de critérios. Uma Democracia onde políticas estruturantes não sejam adoptadas sem esclarecimento e participação activa das pessoas. Não tomamos a crise como inevitável. Exigimos saber de que forma chegámos a esta recessão, a quem devemos o quê e sob que condições.
As pessoas não são descartáveis, nem podem estar dependentes da especulação de mercados bolsistas e de interesses financeiros que as reduzem à condição de mercadorias. O princípio constitucional conquistado a 25 de Abril de 1974 e consagrado em todo o mundo democrático de que a economia se deve subordinar aos interesses gerais da sociedade é totalmente pervertido pela imposição de medidas, como as do programa da troika, que conduzem à perda de direitos laborais, ao desmantelamento da saúde, do ensino público e da cultura com argumentos economicistas.
Os recursos naturais como a água, bem como os sectores estratégicos, são bens públicos não privatizáveis. Uma Democracia abandona o seu futuro quando o trabalho, educação, saúde, habitação, cultura e bem-estar são tidos apenas como regalias de alguns ou privatizados sem que daí advenha qualquer benefício para as pessoas.
A qualidade de uma Democracia mede-se pela forma como trata as pessoas que a integram.
Isto não tem que ser assim! Em Portugal e no mundo, dia 15 de Outubro dizemos basta!
A Democracia sai à rua. E nós saímos com ela.

Subscritores (à data desta publicação):

26/08/11

Infantilismos políticos (1)

É certo que comparações, metáforas e analogias não demonstram coisa alguma; podem até condicionar erroneamente a visão das coisas. Por outro lado, são geralmente uma boa forma de estimular a imaginação, especialmente quando se esgotaram já todos os outros meios de comprensão e explanação das coisas. Por isso vou arriscar-me a comparar a acção política e cívica a um jogo de xadrez.

Tal como no xadrez as peças não se movem sozinhas se não houver um jogador, assim também os movimentos sociais fenecem se não existir acção política direccionada. A acção política apenas tem futuro quando: 1) faz jogadas; 2) é capaz de imaginar e prever algumas jogadas de avanço.

Tal como no xadrez existe um tempo limite para efectuar as jogadas, passado o qual a derrota é automática, assim também na acção política a incapacidade de resposta aos acontecimentos implica a derrota política automática e a morte dos movimentos sociais. As pessoas acomodam-se com facilidade.

Seguindo esta analogia (embora, repito, as analogias possam ser traiçoeiras), um exemplo típico foi a manifestação de 12 de Março de 2011 – seguida da morte súbita do movimento social por falta de antevisão dos passos seguintes a dar. Os 400.000 portugueses que saíram à rua a 12 de Março foram automaticamente derrotados a seguir, por falta de plano de acção. A única coisa que restou de tudo isso foi a fama mediática de um pequeno número de pessoas que a convocaram – melhor que nada.

Continuando a seguir a analogia, temos o caso extremo da maioria das organizações da esquerda portuguesa de há muitos anos a esta parte – gritam «xeque-mate!» sem chegarem sequer a fazer a primeira jogada. Resultado: não só se tornam um alvo do ridículo, como estão derrotadas à partida.

O estudo dos movimentos cívicos, operários, e revolucionários ao longo dos últimos 150 anos demonstra uma coisa irritante talvez, mas inegável: apenas é possível obter vitórias quando entram em cena um conjunto de jogadores de alto gabarito. A história fornece uma lista aparentemente infindável destes jogadores – Lenine, Trotski, Kemal Atatürk, Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Fidel Castro, etc., já para não citar os de extrema direita. Mas se olharmos bem para o mapa da História e para a forma como eles se distribuem no espaço e no tempo, concluímos que afinal não foram assim tantos. E quando eles desaparecem sem serem substituídos por outros, os movimentos sociais caem no vazio e a História ou o Tempo parecem dar um passo atrás.

O que têm estes jogadores de especial? O que é que lhes permite pôr o tabuleiro em movimento e proporcionar vitórias? É simples: 1) não gritam «xeque-mate» a cada jogada e fora de tempo; comer um simples peão de xadrez e gritar «xeque-mate!» implica a desclassificação automática; 2) não ficam parados à espera que aconteça qualquer coisa; pensam nas jogadas e fazem-nas através da acção política concreta, não se limitando a produzir lindos textos teóricos; 3) quando fazem uma jogada, ela não é mais do que a preparação de muitas outras pensadas antecipadamente; por isso cada jogada não é um acto vão, tem um significado e um objectivo preciso; 4) sabem exactamente quando é preciso atacar e quando é preciso defender; 5) sabem que às vezes uma defesa activa implica um ataque fictício ou aparentemente inútil, mantendo o adversário ocupado; 6) embora saibam que o xeque-mate tem de ser feito atacando uma peça bem específica, são pacientes: não se importam de perder tempo, atacando outras peças aparentemente secundárias, minando o campo adversário; estes ataques parecem apontar em direcções disparatadas, mas por detrás de tudo isso existe um intuito firme e constante, ainda que pouco evidente: fazer xeque-mate ao rei.

Desgraçadamente, há muito tempo que não surgem em Portugal jogadores deste calibre no campo da esquerda revolucionária. Em compensação, prolifera uma plêiade de «críticos» (como eu...), de treinadores de bancada – o tabuleiro encontra-se intacto e imóvel, por falta de jogadores capazes de porem as peças em movimento.

Um caso concreto de jogo político: a movimentação social por uma auditoria cidadã

Nos últimos meses tem havido bastante debate, nos meios activistas, acerca da proposição (ou não) de um processo capaz de pôr em marcha a movimentação social sob a bandeira duma auditoria cidadã. Existem numerosos opositores a esta «jogada». Os argumentos contra são de carácter bastante ideológico, abstracto, podendo ser resumidos mais ou menos assim: a dívida soberana não é um problema de fundo, sistémico; é uma consequência do sistema político e económico em que vivemos; o que interessa não é atacar a consequência, mas sim a causa – os fundamentos do sistema; logo, propor uma auditoria cidadã é uma perda de tempo e desvia as atenções da questão de fundo. Em suma, trata-se de saltar directamente para o xeque-mate, dispensando as 40 jogadas intermédias.

No entanto, uma vez que não é de forma alguma possível atacar de frente o âmago do sistema (encontra-se ainda num terreno por minar, num bastião defendido por uma fileira de peões, bispos, torres e cavalos), estes activistas cruzam os braços e não fazem qualquer tipo de jogada – limitam-se a esperar por um milagre e entretanto vão gritando exaltadamente «xeque-mate!», sendo automaticamente desclassificados. (Também os há mais tíbios, que se limitam a gritar «xeque!».)

A mim, pelo contrário, parece-me que a proposta de auditoria cidadã (ou «investigação da dívida», como lhe venho chamando ultimamente em atenção a quem mal-entende a expressão «auditoria») seria uma jogada defensiva suficientemente poderosa para fazer tropeçar aqueles que vêm atacando furiosamente a democracia, o estado de direito, a dignidade humana, enfim, os interesses da maioria da população.

Entretanto, está prevista a participação nacional na manifestação internacional convocada para 15 de Outubro próximo. Independentemente desta acção de massas vir a ter 100 presenças ou 100.000, se ela for inconsequente, se não for em si mesma a preparação do passo seguinte, resultará numa derrota grave. Ora um dos passos seguintes a dar poderia ser a congregação de esforços unitários e movimentações sociais para pôr em marcha uma auditoria cidadã. Veremos o que os movimentos cívicos são capazes de produzir.

23/08/11

E pur si muove!

A voz-do-dono volta a fazer das suas!

«Apesar dos apelos de Pedro Passos Coelho para que sejam evitadas convulsões sociais[1], os organizadores do protesto Geração à Rasca já agendaram uma nova manifestação para o dia 15 de outubro[2], data limite de entrega do Orçamento do Estado[3].» [fonte: tvnet; DN]

[1] Convulsão = termo emprestado da medicina, que significa aqui metaforicamente agitação social. Mas o que mais chama a atenção nesta frase é a expressão «apesar». Este singelo «apesar», referido aos apelos dum primeiro-ministro, denuncia uma visão tão próxima do absolutismo monárquico que até causa arrepios. A este «apesar» apenas se pode responder: E pur si muove! [a sociedade].

[2] Os escrevinhadores da voz-do-dono que lavram estas sentenças deviam ser mergulhados preventivamente em pez fervente e cobertos de penas, sendo de seguida obrigados a cacarejar em vários tons e registos para gáudio do público leitor. A questão é esta:
A manifestação de 15 de Outubro não é promovida apenas pelos «organizadores do protesto geração à Rasca», mas também por um vasto conjunto de organizações cívicas.
Ou seja, as principais notícias aqui em causa, que seria crucial destacar (à parte a convocatória da manifestação em si mesma), são:
  1. o facto inusitado de, ao fim de 40 anos de teimoso sectarismo generalizado, um conjunto alargado de organizações cívicas portuguesas ter finalmente descido da presunção extática e decidido sentar-se à mesma mesa, fazendo frente comum contra todas as ilegitimidades, défices democráticos, injustiças e golpes de Estado em curso; não é coisa pouca este passo cívico – deveria merecer honras de notícia desenvolvida a duas ou mais páginas e registo para a posteridade; 
  2. o facto de um conjunto alargado de organizações cívicas portuguesas não especializadas na cena internacional ter percebido que a ditadura financeira e respectivas medidas de austeridade são um problema internacional, e não apenas um acidente no Portugal dos Pequeninos.

    [3] A voz-do-dono, mais uma vez, ecoa a má-fé do mestre. Na verdade, a convocatória desta manifestação não tem relação directa de causa e efeito com o orçamento do Estado português (nem poderia ter, é uma manifestação internacional!); trata-se duma coincidência; como todas as coincidências pode ser levianamente usada por quem estaria melhor a escrever horóscopos do que notícias da actualidade. Aliás, trata-se duma coincidência sem graça nem espírito. Para o caso dos aprendizes de voz-do-dono terem de voltar a mencionar o assunto, aqui sugiro mais umas quantas coincidências a 15 de Outubro:
    • Portugal finalmente reconhece a integração dos territórios de Goa, Damão e Diu na União Indiana, pondo fim ao delírio imperialista (1974)
    • prisão de Alfred Dreyfus e início de uma saga anti-semita (1894)
    • Friedrich Nietzsche vem a este mundo, para grande benefício dos comentadores de rodapé e dos candidatos ao terrorismo niilista de princípio de século, e para grande prejuízo do juízo claro da humanidade em geral (1844)
    • Mata Hari é executada por espionagem
    • etc.
    Desde que devidamente mencionado por uma qualquer voz-do-dono ou um qualquer personagem mediático, ou até uma qualquer vidente de circo, qualquer um destes acontecimentos pode tornar-se altamente significativo no quadro da convocação de uma manifestação internacional de protesto contra o défice democrático, os planos de austeridade para o povo em benefício das instituições financeiras, a destruição do estado social e solidário, o desvario imperial franco-germânico e a violência brutal aplicada recentemente por todos os aparelhos repressivos dos Estados europeus contra a legítima manifestação dos seus cidadãos nas ruas e na Internet.

    Só um passinho mais, por favor

    Como já disse, a grande novidade é o facto de um número significativo de movimentos cívicos estarem a encontrar meios comuns de acção. É cedo para embandeirar em arco, mas se tudo continuar a correr bem, estaremos a assistir a um momento histórico na vida do movimento social português.

    Contudo, os movimentos cívicos ainda não conseguiram compreender o papel da voz-do-dono na cena política actual [para quem não leu os meus artigos anteriores: «voz-do-dono» = «comunicação social mainstream»]. O debate que ocorre neste momento em bastidores entre as organizações cívicas envolvidas no processo unitário de convocação da manifestação de 15 de Outubro demonstra que não existe uma noção clara do papel da voz-do-dono na manutenção de um poder antidemocrático e censório. Continuam a acreditar na ficção académica de que a comunicação social actual é um instrumento neutro, universal, à disposição de toda a gente. Julgam que a suposta utilização da voz-do-dono é apenas um problema técnico; que, com aquilo que a própria máquina de construção da voz-do-dono chama «técnica de relações públicas», é possível levar a voz-do-dono a servir de via de comunicação com o público. Em suma: estão completamente às escuras sobre a natureza política actual da voz-do-dono e continuam a acreditar inocentemente nas balelas técnicas que lhes impingem há décadas.

    Falta a consciência política de que a voz-do-dono será sempre fiel ao dono, e que a construção de um meio de comunicação social alternativo e independente é uma tarefa indispensável e urgente. Sem isso, todos os activistas permanecerão durante os próximos anos a falar consigo mesmos, dentro duma sala fechada, e a serem toureados por um poder político que faz de conta que os ignora, deixando o encargo de combater a movimentação social aos bandarilheiros da voz-do-dono.

    12/08/11

    Golpe de Estado

    É necessário ler o texto completo do Memorando de acordo entre a Troika e o Governo português para compreender até que ponto a soberania nacional é trucidada. A finança privada, através do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE), leva a cabo um ataque cerrado contra a soberania nacional e o funcionamento democrático das instituições.

    Eu sei que o Memorando é um documento longo, de leitura penosa; mas os seus itens são de tal forma explícitos, o descaramento das medidas impostas é de tal ordem, que não posso deixar de incitar veementemente à sua leitura, para que tudo se torne claro aos olhos do leitor e este meu resumo da situação não lhe pareça um artigo de opinião arbitrária. Após a leitura do Memorando, e passada a surpresa inicial de quem porventura ainda tivesse ilusões sobre a natureza do acordo, nenhuma dúvida pode restar sobre o que está em causa.

    Ora o que está em causa no Memorando da Troika é um golpe de Estado palaciano, por via executiva. O conjunto de golpes contra a legitimidade democrática escritos preto no branco no Memorando constituirá certamente um espantoso caso de estudo nas aulas de História dos nossos netos. Estão em causa:
    • o preceito constitucional de que a economia deve subordinar-se aos interesses gerais da sociedade – o Memorando justifica a imposição de medidas de austeridade, a perda de direitos laborais, o desmantelamento da saúde, do ensino e da cultura com argumentos estritamente económicos;
    • o preceito internacional de que um Estado só deve endividar-se quando os montantes emprestados sirvam directamente os interesses da população, o seu bem-estar, o pleno emprego e a melhoria dos meios de produção, logo, dos meios de pagamento – o Memorando impõe medidas que subtraem o bem-estar das populações, aumentam o desemprego, servem a banca privada em prejuízo do público e acarretam uma quebra do produto interno (incluindo a cessação de crédito à produção);
    • o preceito de que a celebração de um acordo de empréstimo pressupõe liberdade de decisão do devedor – o acordo com a Troika foi feito sob chantagem de corte de crédito e de escalada dos juros;
    • o preceito constitucional que estabelece o Estado social, tendo este aspecto total prevalência sobre considerações estritamente económicas, em especial os interesses económicos privados– o Memorando prevê o desmantelamento do Estado social e a utilização das tributações sociais para salvar a banca privada;
    • o preceito (constitucional e internacional) do Estado de direito, segundo o qual um Estado deve decidir sobre as suas leis e tribunais de forma soberana, não podendo os seus tribunais ser preteridos ou de alguma forma forçados por potências estrangeiras ou privadas – ora o Memorando força a alteração do funcionamento dos tribunais portugueses e a alteração da legislação nacional;
    • o preceito (constitucional e internacional) de que um país apenas pode abdicar de uma parte da sua soberania se a instituição que representa directa e democraticamente a população (ou seja a Assembleia da República, por maioria de dois terços) assim o votar expressamente, e ainda assim apenas na condição, prevista nos tratados da ONU e nas convenções de Viena, de essa decisão não implicar perda de independência política – o Memorando prevê a venda ao estrangeiro de partes do território nacional (incluindo zonas protegidas nacional e internacionalmente); partes do acordo prevêem a subordinação do Governo e dos resultados eleitorais a poderes estrangeiros públicos ou privados;
    • o preceito constitucional de que os recursos naturais (por exemplo a água nas suas diversas formas de proveniência natural) são inalienáveis, não podendo ser cedidos, concedidos ou vendidos – o Memorando impõe a privatização (para empresas estrangeiras) de vários recursos naturais, incluindo a água;
    • o preceito de que os sectores estratégicos (por exemplo a energia, as comunicações e correios) não podem ser alienados e devem permanecer sob controle soberano do Estado – o Memorando impõe a extinção das golden shares do Estado em empresas estratégicas, a privatização dos correios, da produção de energia, das cadeias de televisão estatais, das empresas que garantem a transmissão de dados, a distribuição de água, de gás, de electricidade, além de outros mecanismos de perda de soberania, planeamento e redistribuição dos rendimentos;
    • o preceito de que o Governo português deve manter-se independente, tomando as suas decisões executivas em plena liberdade soberana – o Memorando impõe que o executivo português governe sob tutela de representantes externos ou da finança privada;
    • o preceito de que a tributação deve ser um instrumento de redistribuição dos rendimentos – o Memorando impõe alterações à política fiscal, com vista a um agravamento da má redistribuição dos rendimentos e portanto das desigualdades sociais;
    • etc.

    Face a esta situação, torna-se evidente, à luz dos convénios internacionais, que o acordo com a Troika é ilegítimo e deve ser denunciado e anulado por um futuro Governo que não seja conivente com os interesses representados pela Troika.

    Um autêntico saque medieval, autorizado por um governo usurpador

    O resultado imediato do conjunto de medidas do Memorando é o de um autêntico saque, na melhor tradição medieval das incursões armadas:
    • transferência maciça dos capitais nacionais para o estrangeiro;
    • transferência dos recursos nacionais e naturais para o estrangeiro;
    • transferência do controle dos sectores estratégicos da economia e do bem-estar social para o estrangeiro e para a finança privada;
    • transferência dos custos das aventuras desastrosas da finança privada para os contribuintes;
    • transferência dos poderes legislativo, executivo e judicial para o estrangeiro.
    Um governo que pratica este tipo de actos, que atenta desta forma contra o interesse da população, contra o Estado de direito, contra a Constituição, não pode deixar de ser considerado usurpador. Talvez a figura do usurpador já não pertença à lista de figuras de direito actual (os juristas que me esclareçam, por favor); mas, do ponto de vista político, bem como do ponto de vista moral, um governo que atenta desta forma contra o interesse dos cidadãos, num Estado supostamente democrático e de direito, deve ser considerado usurpador, à semelhança dos governos ditatoriais.

    A perda de soberania institucional vem somar-se a outras perdas de soberania há tempos em curso

    Às transferências anteriormente referidas acrescem:
    • perda de soberania alimentar, em resultado de políticas anteriores ao longo de décadas, agora cumuladas pela nova legislação internacional e europeia – que dá às multinacionais direitos de propriedade sobre elementos da Natureza e o monopólio das sementes;
    • transferência da propriedade da terra e da água para os bancos privados e os investidores estrangeiros, por efeito combinado dos pontos anteriores e de numerosas outras medidas políticas e económicas (um pouco à semelhança do que se passou nos EUA durante a crise de 1929).
    Esta e outras perdas de soberania são desde longa data arquitectadas por interesses privados, multinacionais e financeiros, e postas em prática com a conivência de sucessivos governos.

    O Memorando é apenas o culminar duma política de longo curso

    Não nos iludamos quanto à intervenção súbita da Troika em Portugal. A actual situação, embora acelerada e levada ao extremo pelos efeitos da crise financeira mundial de 2007-2008, foi minuciosamente preparada por sucessivas políticas neoliberais (ora por governos do PS ora do PSD), durante cerca de 30 anos.

    Puxemos pela memória e recordemos os sucessivos discursos do poder, na última década, sobre a «insustentabilidade» do Estado social – sempre seguidos de cortes no Estado social e medidas de austeridade. Graças a uma campanha cerrada de comunicação social e marketing, o povo português acabou por aceitar a ideia falsa de que os impostos que paga não chegam para sustentar a segurança social... embora cheguem para salvar e recapitalizar, com centenas de milhões de euros, os bancos privados, as empresas socializadas que vão ser privatizadas ao desbarato, os prejuízos das PPP, etc.

    A privatização de sectores estratégicos não é uma moda inaugurada pela Troika – é apenas a recta final duma tendência neoliberal posta em marcha por sucessivos governos neoliberais PS-PSD.

    Aliás, o problema da economia portuguesa (independentemente do seu estado anterior) começa com as negociações para a adesão à União Europeia. Recordemos que se hoje temos o sector produtivo primário e secundário moribundo e uma pronunciada falta de auto-suficiência alimentar, a situação era bem diferente no início da década de 1980. A UE pagou indemnizações ridículas para que a frota de pesca fosse queimada, para que as águas territoriais portuguesas fossem exauridas pela pesca de arrasto estrangeira, para que a agricultura e a agropecuária fossem queimadas, deitadas ao mar, suspensas e substituídas por culturas que não servem a auto-sustentabilidade alimentar mas dão proveito à indústria de transformação multinacional. A entrada de Portugal para a UE está na origem da crise económica e do endividamento; a circunstância da crise económica mundial apenas vem agravar uma situação que já existia.

    A UE, desde o início, é responsável pela má redistribuição dos rendimentos, pela transferência de recursos e capitais da Periferia para o Centro, e pela protecção neoliberal da finança à custa dos trabalhadores.

    As falsas soluções para a crise da dívida

    Vários sectores políticos portugueses, alguns deles ditos de oposição parlamentar e governativa, advogam a reestruturação da dívida, ou a renegociação da dívida, ou a realização de um referendo popular para a realização de uma auditoria institucional. Todas estas propostas constituem falsas alternativas à crise da dívida.

    Em primeiro lugar, pedir aos actuais poderes políticos que renegoceiem, reestruturem ou auditem a dívida actual e os acordos com a Troika é o mesmo que pedir a um juiz que julgue em causa própria – foram eles que puseram em marcha todas as políticas neoliberais agora reforçadas e aceleradas pela Troika; foram eles que negociaram e assinaram os acordos de endividamento; estariam a condenar-se a si mesmos ao calaboiço, se expusessem a ilegitimidade da dívida e a incapacidade óbvia de a reembolsar.

    Em segundo lugar, é preciso termos presente que a reestruturação ou renegociação da dívida por governos submissos acarretou sempre, em todos os países do Mundo, um reforço da espiral de endividamento e um agravamento das condições de vida da população.

    Por fim, é preciso ter presente que a médio e longo prazo o problema não se resolve alterando prazos de pagamento ou taxas de juro – é necessária uma política totalmente diferente, que ponha o interesse das populações, a justiça fiscal e participação democrática dos cidadãos acima das considerações de ordem económica. Caso contrário, o problema repete-se, com uma crise da dívida a seguir a outra crise da dívida.

    A necessidade de investigar a dívida

    A única proposta que pode ajudar a inverter a espiral de endividamento é uma investigação da dívida levada a cabo pelos cidadãos (também chamada auditoria cidadã). Esta solução, se for baseada numa ampla movimentação social, é a única forma de obrigar os poderes públicos a arrepiarem o caminho que vêm seguindo desde a década de 1980.

    A auditoria cidadã consiste basicamente em fazer três perguntas que irão nortear uma investigação da dívida e do processo de endividamento:
    • quanto devemos?
    • a quem devemos?
    • porque devemos?
    As duas primeiras perguntas são eminentemente técnicas, mas a terceira (a mais importante no presente e na prevenção do futuro) tem consequências políticas; implica, nomeadamente, investigar onde foram aplicados os montantes dos empréstimos. A investigação não deve pressupor conclusões de qualquer espécie – esta é uma condição necessária para que a auditoria cidadã se torne um instrumento agregador de todos os movimentos e forças sociais indignados com a situação actual, independentemente dos seus interesses sectoriais ou da sua agenda política.

    O processo de endividamento ao longo dos anos tem-se mantido numa obscuridade antidemocrática. A auditoria cidadã torna-se por isso um instrumento privilegiado de reposição da vida democrática. Em última análise, o défice financeiro resulta do défice democrático. Só a participação dos cidadãos na investigação do processo de endividamento pode garantir boas soluções futuras.
    Mas mesmo isto não basta para garantir soluções que não nos remetam ao ponto de partida. É necessário reivindicar uma Europa diferente – equitativa, democrática, transparente, solidária. A manutenção de uma Europa a dois tempos, com um Centro que domina e explora de forma bárbara os países da Periferia, não constitui qualquer espécie de progresso, mas sim uma escravatura.


    [Nota 1: Na página electrónica do Rossio Contra a Dívida pode ser descarregado um manual para a investigação da dívida. À data de publicação deste texto o manual encontra-se ainda em fase de rascunho, aguardando a colaboração de especialistas das diversas áreas para se tornar um instrumento de trabalho completo e acabado. No entanto encontra-se desde já à disposição do público e aberto a comentários e colaborações.]

    [Nota 2: na realidade existem dois documentos assinados pelo Governo português, correspondentes aos acordos com o FMI e a Troika:


    Ver também:

    08/08/11

    Determinismo, voluntarismo, criticismo, tolice

    Determinismo

    Os acasos da vida imperam. Com quem nos cruzamos, com quem nos damos, com quem trabalhamos é sempre coisa imprevista, embora a visão determinista do mundo pretenda que donde vimos e quem somos determinaria quem conhecemos e onde vamos.

    Eu, por exemplo, vindo de um bairro de peixeiras e estivadores, fugindo a vida toda da escola e abominando os meios académicos, deveria ter seguido um certo rumo aproximadamente lumpen, segundo as boas previsões deterministas. Nada disso. Fui parar precisamente aos lugares que mais detesto.

    O determinismo é uma espécie de cagança do fatalismo. O determinista acredita inocente e envergonhadamente no fado e depois redime-se inundando-nos com fórmulas matemáticas, físicas, marxistas, ... – enfim, uma seca, uma numerologia religiosa, fanática; um cientifismo incapaz de compreender a ironia de Pitágoras, esse génio que inventou duma assentada todas as coisas e todos os opostos – a matemática e a numerologia, a autocracia e o feminismo, e muitas outras coisas, como convém a quem quer reinventar o mundo.

    Voluntarismo

    O voluntarismo está tão destinado ao falhanço como o determinismo. Ou será que provêm ambos da mesma raiz?

    A minha vontade nos últimos anos foi sempre a de encontrar gente com quem pudesse actuar no terreno social, na prática. E depois, um dia, se me sobrasse tempo, teorizar a coisa – por desfastio e ocupação de velhice. Nada disso. Por mais que tente e queira e peça, apenas me saem teóricos e críticos de bancada com quem não consigo fazer uma única campanha de agitação e propaganda.

    Criticismo

    Vivemos uma época insuportavelmente dominada pelos críticos.
    A última grande moda, pelo menos em Portugal, consiste em promover críticos de música a críticos de filosofia.

    A crítica abunda, inunda, aborrece. Na TV, nos jornais, nas páginas de Internet, a quantidade de política que se faz é diminuta – mas a quantidade de crítica da política excede os limites do universo. Para quê fazer política, se podemos sentar-nos no sofá a beber uma cerveja e a criticar a política com uma escalfeta debaixo dos pés?

    Passados poucos meses ou semanas depois de alguns acontecimentos notáveis (refiro-me à manifestação de 12 de Março, às assembleias populares do Rossio, etc.), em vez de se dar seguimento à coisa no campo da experiência e da prática, já anda meio mundo a fazer análises críticas ao «fenómeno» (qual fenómeno, se ainda a procissão vai no adro?) e até, pasme-se, a promover efemérides!... de coisas que aconteceram há 8 semanas?...

    A introdução da Internet em Portugal coincidiu com a morte de um velho paradigma e o nascimento de outro em seu lugar. Portugal era um país de poetas. É natural isto num país pobre – para ser poeta basta uma pessoa ir sentar-se no café, pedir um lápis emprestado ao empregado e usar o toalhete para começar a escrever. A inspiração pode vir depois. Os meios de produção e orçamentação da poesia são mínimos, ao contrário da pintura ou do cinema.

    Seria de esperar que a introdução da Internet aumentasse exponencialmente o número de poetas em Portugal, uma vez que a Internet é uma espécie de toalhete universal e inesgotável. Nada disso. Transformámo-nos todos em críticos. É o novo paradigma português. E vai por graus, como na academia e nas sociedades secretas: começa-se por ser crítico de futebol, ou arte, ou política, e acaba-se por ser crítico de filosofia. A escalfeta, porém, deve ser mantida ao longo do processo de graduação – nada mais perigoso que um crítico resfriado.

    Tolice

    .......................................

    Nada disso.

    03/08/11

    Cortiça Rodrigues

    No passado dia 21 de Julho, Eduardo Cortiça Rodrigues deu uma entrevista de cerca de 20 minutos à TSF onde fez aquilo que melhor sabe desde os seus tempos de associativismo estudantil: flutuar ao sabor da maré, com braçadas de cinco minutos sem pontuação onde tudo se baralha politicamente e nada de útil se conclui.

    Este grande flutuador, que em dado momento da sua vida achou que o esquerdismo não lhe traria créditos profissionais e portanto mais valia matar o partido a que pertencia e mudar-se com armas e bagagens para o PS, parece estar à beira de voltar a aplicar a receita, marchando a passo firme para o Partido de Paulo Portas.

    Eis algumas pérolas da entrevista:
    • Cortiça Rodrigues acha que não ficaria bem com a sua consciência se tomasse partido [entre os dois candidatos à liderança do PS]
    • Cortiça Rodrigues acha que o PS tem de honrar os acordos que assinou com a Troika e ao mesmo tempo opor-se às medidas que desequilibram a balança fiscal
    • Cortiça Rodrigues acha que «em nome da esquerda houve classes sociais em vários países que ganharam privilégios que eram perfeitamente impossíveis de manter no mundo em que vivemos, [por exemplo] os funcionários públicos»
    Bem, foram 20 minutos de disparates flutuantes deste jaez, não vos quero maçar mais. Mas há uma tirada que não posso deixar de transcrever:
    • «a esquerda foi apanhada em contra-pé por uma globalização muito rápida mas que é positiva porque permitiu que milhões de pessoas saíssem da pobreza e passassem a ter acesso a um conjunto de bens de consumo» [refere-se aos países do Terceiro Mundo, à China, etc.]
    Só há um pequeno problema com esta maravilhosa declaração da bem-aventurança na Terra - os números da realidade nua e crua:
    • Distribuição dos rendimentos entre Centro e Periferia:

      Terceiro Mundo PECOT Países ricos
      população em 2009 78% 7% 15%
      PIB em 2009 23% 5% 72%
      PECOT = países da Europa Central e Oriental, mais Turquia

    • Evolução da miséria à medida que a bem-aventurança da globalização progride:

      Número de pessoas que vivem com menos de 1 US$ por dia (em milhões)

      1981 1990 2004
      África subsariana 214 299 391
      América Latina e Caribe 42 43 46
      Sul da Ásia 548 579 596

    • Para onde foi o dinheiro que desapareceu dos nossos bolsos?
      Número de multimilionários em 2001: 497 / Activos combinados: 1,5 biliões de dólares
      Número de multimilionários em 2007: 1125 / Activos combinados: 4,4 biliões de dólares
      Número de multimilionários em 2008: 793 / Activos combinados: 2,4 biliões de dólares
      Número de multimilionários em 2009: 1011 / Activos combinados: 3,5 biliões de dólares
      Número de multimilionários em 2010: 1210 / Activos combinados: 4,5 biliões de dólares

    • Comparação entre o estilo de vida ocidental e o Terceiro Mundo:
      Gastos anuais para 67 milhões de cachorros e gatos domésticos na França  = 4.500 milhões de dólares
      Orçamento anual da RDC (65 milhões de habitantes) = 3.900 milhões de dólares
      [RDC = República Democrática do Congo-Kinshasa]

    Finalmente, gostaria de lembrar que Eduardo Cortiça Rodrigues tem um diploma de economista (farinha Amparo?) e também já foi primeiro-ministro de Portugal, e em nosso nome, armado da sua máquina de calcular aparentemente avariada, terá participado em reuniões internacionais para decidir dos altos destinos do país e, quiçá, do mundo.

    15/07/11

    O Estado social é uma inerência

    Creio que já o disse algures, mas tenho de repetir: o Estado social não é uma opção; é uma inerência.

    Talvez haja quem pense que o Estado social é uma modernice inventada há pouco tempo.Biiiiiiiiiiiiiiiip!!!! erro!

    O ser humano é um animal frágil; gregário; inteligente (mais ou menos).
    Consegue sobreviver à sua própria fragilidade precisamente por ser gregário e inteligente. Caso contrário ter-se-ia extinguido há centenas de milhares de anos.

    Durante séculos as aldeias portuguesas de montanheses e de pescadores tiveram: doença, tornados, cheias, fome, aflições de parto; ânsia de música, de baile e de festa; necessidade de ensinar aos seus infantes os ofícios e tarefas da aldeia. Como julgam vocês que essa gente conseguiu sobreviver a tanta necessidade, a tanta doença, como foi que não morreram famílias inteiras de fome quando as cheias destruíram a horta familiar, como sobreviveram milhares de viúvas de pescadores, com seus catraios, quando o mar lhes roubou o pai-pescador?
    Simples: essas comunidades sempre viveram em estado social.

    O estado social das aldeias antigas não se organizava duma forma megalómana, como acontece hoje em cidades com dezenas ou centenas de milhar de habitantes. Baseava-se numa solidariedade de proximidade.
    A viúva carregada de filhos e subitamente privada de sustento sobrevivia graças à solidariedade das vizinhas; as pedras que impediam o arado de lavrar o torrão de terra eram desviadas pelo esforço colectivo de todos os homens da aldeia e respectivas juntas de bois. E assim por diante.

    Não existe absolutamente nada de novo na solidariedade social dos Estados modernos – a não ser o facto de o auxílio de proximidade se tornar quase impossível nas metrópoles, em virtude da natureza organizativa e cultural destas.
    Mas esta diferença de natureza organizativa em nada, rigorosamente nada, muda a natureza humana. Para esta mudança acontecer seria necessária uma mudança genética radical – o ser humano haveria de transformar-se em milhafre, ou coisa que o valha. Não, o ser humano da megametrópole permanece igual ao frágil, gregário e inteligente habitante das cavernas paleolíticas. Logo, sujeito à extinção, se o colocarmos fora dum ambiente de solidariedade social.

    Só a estupidez mais renitente pode imaginar que algum ser humano possa subsistir sem solidariedade social.
    O estúpido renitente (desculpem a falta de delicadeza, mas este é um daqueles casos raros em que não consigo encontrar eufemismos ou expressões paliativas para designar as pessoas em causa) ou nega em absoluto a necessidade de solidariedade social (= estado social) ou advoga substitutos privados – hospitais privados, ensino privado, maternidades privadas, seguros privados, etc.
    São bem conhecidos os argumentos sobre a desigualdade daí resultante – 1) apenas terá acesso aos serviços privados quem tenha dinheiro para os pagar; 2) uma vez que quem tem mais dinheiro não contribui para os serviços sociais, preferindo pagar os serviços privados, a prazo os serviços sociais estão condenados à extinção por falência de verbas.


    A natureza da solidariedade social baseia-se num sentimento de generosidade graciosa. Pode haver interesse. Claro que há interesse – ajudo o meu vizinho sabendo que mais tarde ou mais cedo vou necessitar da ajuda dele, e que essa necessidade é fatal, não tem alternativa.
    Sempre que se acode à doença de um vizinho, sempre que uma aldeia inteira acorre a puxar as redes de um pescador em dificuldades, isso implica um custo social. Garante igualmente um ganho social: a sobrevivência colectiva, pois doutra forma a comunidade inteira extinguir-se-ia no prazo de uma ou duas gerações.

    A natureza do negócio privado é outra, oposta; não é generosa nem graciosa, porque apenas visa o cálculo e o lucro individual.

    O estúpido renitente, ao defender a substituição do Estado social pela iniciativa privada, não se limita a ser estúpido; se assim fosse, isso seria apenas problema seu. Infelizmente é muito mais do que isso – ele comete um horrível crime contra a humanidade. Põe a humanidade inteira em grave risco de sobrevivência. É pior que um criminoso de guerra, pois um criminoso de guerra é responsável geralmente por milhares ou mesmo milhões de mortes – mas dificilmente será responsável pela chacina da humanidade inteira.

    Os políticos do PS, do PSD, do CDS, a finança privada, os jornalistas com eles coniventes, toda essa gente que tem lutado em maior ou menor grau pela diminuição do Estado social é uma caterva de perigosos psicopatas que um dia terão de ser julgados no tribunal das Nações pelo mais horrendo dos crimes contra a humanidade: a chacina da solidariedade social.